4/19/2009

O Professor Crédulo - Parte 1

Não sou uma pessoa confiável.
Talvez eu seja um canalha.
Tiro esta conclusão sobre mim porque tenho opiniões próprias. As pessoas, educadas pela boa pedagogia, pelos séculos de moral e bons costumes da nossa boa e velha civilização (mais velha do que boa, em todos os sentidos), adoram formar seus pequenos grupos. Ora, não há senão pequenos grupos. A nossa ciência, por mais que dê importância ao universal, ao coletivo, à mentalidade de cada época, às grandes nações e aos grandes fatos, não consegue fazer com que os seres humanos se entendam. Portanto, só conseguimos ter razão e gozar do nosso poderzinho que nós mesmos nos demos (Deus não nos deu nada) em pequenos grupos. Um pequeno grupo se faz com uma simples regra: há os que mandam e os que obedecem. Sartre disse, com êxito, que só interessa obedecer quando se sonha comandar. Esta máxima é o primum mobile de toda forma de convívio humano. Sinceramente, acho esta máxima abjeta, vil, mesquinha. Não estou citando Sartre porque incorporo esta ideia. Longe de mim. Nem sou leitor de Sartre. Mas acho que esta frase resume cem por cento das formas de convívio até hoje exercidas pela humanidade. Não há exceção a esta regra. Se você quer entrar em um grupo, você deve pressupor ou a vontade de mandar ou a humildade em obedecer. Obedecer, obedecer, obedecer. Este é um dos objetivos mais procurados pela humanidade. Fico pensando, em minha canalhice, que há pessoas que perdem noites de sono pensando em como fazer com que mais pessoas obedeçam a suas ordens e interesses. Devo ser muito canalha ao pensar estas coisas. Como posso eu, reles mortal, animal político e social, pensar que obedecer não seja uma virtude? Afinal, é necessário ter uma longa trajetória de obediência para poder comandar. Ora, digo eu, é necessária uma longa trajetória de obedecer para continuar a obedecer, pois os que mandam em uma máfia qualquer não começaram limpando o chão do estabelecimento. Quem começa assim, alcança no máximo a gerência da máfia: nunca manda. Eu não sou confiável porque não me iludo com as promessas do mando a partir da obediência. Há, há, há. Logo para cima de mim com esta? Mas as pessoas cultivadas pela boa pedagogia, pelos séculos de moral e bons costumes da nossa boa e velha civilização, acreditam tanto nisto, que acham que um dia vão comandar. Há, há, há, mais uma vez. É muito divertida a tragédia humana. Criamos sistemas absurdos de mando e obediência porque somos submissos, sentimos prazer em obedecer, sonhando em comandar. Sonhamos em comandar pensando que realmente comandamos. Mas Pessoa me disse, bem baixinho, que “precisar de dominar os outros é precisar dos outros. O chefe é um dependente.” Comandar é a grande armadilha da submissão. Quem comanda, também se submete. Até mais do que aqueles que obedecem abertamente. No fim das contas, somos todos obedientes. Mais do que cachorros, que não têm um pingo de amor-próprio. Temos cachorros achando que nós os dominamos. Eles é que nos dominam. Até o último suspiro.
Sou tão intoxicado pelos livros que li e leio – não consigo parar de ler porque não consigo parar de pensar – que acredito numa coisa chamada “Esclarecimento”, lida das palavras de um homem muito religioso, que chamam de filósofo. Talvez ele mesmo não acreditava no que escrevia. Bem, isso eu não sei, mas o que sei é que este homem muito religioso disse que podemos fazer uso do nosso próprio entendimento sem a ajuda de ninguém. Que não estamos condenados à alternância eterna entre o mando e a obediência (ou à eterna obediência). Este homem muito religioso, calmo, tranqüilo, me intoxicou. Não consigo mais ter o cinismo, a abjeção, a mesquinhez, em simplesmente obedecer, quando não concordo com alguma coisa. Isto me torna uma pessoa nada confiável. Canalha. Perigosa.
Não vou fazer chantagem emocional aqui, dizendo que estou certo. O ser humano é um animal obediente, e não um animal político. Não nutro confiança que o ser humano, em seu humanismo construído por séculos, saia desta condição por decreto. “A partir desta data, é permitido a todos o uso de seu próprio entendimento. Todas as disposições em contrário estão revogadas”. Não creio nisto.
Tenho complexo de Aquiles: acho que é preciso ser corajoso e ter sua própria opinião das coisas, mesmo que seja necessário, para isso, enfrentar as enormes muralhas dos pequenos grupos. Grande tragédia. Esqueci de ler a Ilíada a tempo de saber que Aquiles tem uma vida muito curta. Pela sua impertinência. Não adianta ser herói. As graças não serão recebidas, nem em vida, nem após a morte, nem nunca. Os que serão lembrados são aqueles que, pacientemente e com um grande sacrifício, obedeceram até chegar o momento de depender dos outros. Só os chefes são lembrados. Minha vaidade de herói perdido é simplesmente hilária. Não consigo sequer fazer com que as pessoas não me olhem de soslaio. Mas elas olham de soslaio, viram as costas, em sinal de luto. “Para mim, você morreu.” Isto é um grande peso para mim, pois não consigo ser covarde e escravo. Acho que devo ter ouvido e visto muitos contos de fada na minha infância. Não consigo ter a velha e boa hipocrisia, própria da nossa boa e velha civilização, para simplesmente ser mais um no grupo. Portas fechadas, meu caro. Mas esta é a minha tragédia. Não a desejo para ninguém. Ter este tipo de postura não me torna ninguém melhor do que os outros; não tenho ego para isto.
Sou apenas uma pessoa nada confiável.
Um verdadeiro canalha, que os outros olham de soslaio.

3 comentários:

Aldemar Norek disse...

Bem, depois de ler isto a gente fica esperando a parte dois.

E conclui que esta é ma civilização SM.

Quanto à dependência do dominador, só um cego não vê.Um dominador precisa de um dominado. Ou uns.

O começo me lembrou um pouco Notas do Subsolo: "Sou um homem doente, etc". Mas isso é bom.

Ainda não cheguei em Adorno e Horkheimer, mas vou chegar lá, apesar das análises do Adorno sobre música serem em geral furadas. Ninguém pode acertar todas.

Sobre os pequenos grupos, tenho um verbete no Pequeno Dicionário de Aproximações, postado aqui, em que toco no assunto.

Bem, enfim, gostei.
abração.

Álogos disse...

Aldemar,

valeu pelas observações. Como coloquei acima, a ideia era mesclar o discurso sobre o filho-da-puta com as memórias do subsolo. Nada melhor do que um professor crédulo para encarnar as duas figuras ao mesmo tempo.

Vou dar uma olhada no verbete sobre os pequenos grupos.

Grande abraço.

Álogos disse...

Acabei de olhar o verbete, que suponho ser Elite. Muito bom. Acho que expressa bem o que tentei escrever.

Abraço.