4/23/2009

O Professor Crédulo – Parte 3

O mundo externo de um professor é precedido pela preparação dos planos de aula, pela preparação da preparação dos planos semestrais, anuais, plurianuais. Planos e preparações. Preparações prévias de planos. Aí está um mundo agradável. Os conceitos, as explicações, as explicações dos conceitos, compreender e explicar os conceitos de explicação e compreensão... Ah, se o mundo fosse apenas a preparação das aulas! É aí que os tóxicos em forma de livros fazem seu efeito mais profundo. Ficamos extasiados com a inteligência humana e esquecemos até os motivos que nos levaram a esta tragicômica profissão. Em um mundo no qual palavras não significam coisas e que coisas não têm nada a ver com palavras, teorizar é um luxo, um preciosismo. Só aqueles que desejaram muito este cotidiano podem dar-se ao luxo de, simplesmente, teorizar. Ora, nada pode dar errado na sala de aula! Toda a preparação de anos – às vezes décadas – não pode ser descartada! Entretanto, a preparação de uma aula é a criação de uma ilha, seja ela deserta ou não. Todas as ilhas são pouco acessíveis. Por mais que me esforce para preparar uma aula didática, regrada e acessível, sinto que alguma coisa vai dar errado. Perco sono. Coloco sinônimos, encho de exemplos, intercalo citações grotescas, faço pausas programadas no tema principal para entreter o público. Sim, o professor é teatrólogo de si mesmo. Está tão preocupado com o que diz e, principalmente, como diz, que se esquece que há um programa mínimo de curso a vencer. Merda de currículos, ementas, disciplinas! Gostaria de apenas representar! Mas termino com um belo programa de preparação prévia do que pode vir a ser um plano de aula, pensado nos mínimos detalhes.
Enfim, arrumo-me e vou, finalmente, ao meu mundo exterior, de cabeça erguida, certo de que farei uma boa aula. O mundo exterior assusta logo de início. O mundo é mal, as pessoas são más... Onde fui me meter? Quero voltar para casa, lá é que sou feliz! Não posso! Tenho que dar aula, pois sou o professor. Esta é a pior parte: enfrentar o olhar dos alunos, as ironias, os gracejos, o reparar em cada detalhe de meu corpo, de minhas roupas, de meu gesticular, de meus gaguejos, para fazer disso o pão-de-ló da festa. Não suporto isto! Quero voltar! Não, mais uma vez, não! E apresso o passo para chegar logo. Gostaria de ser professor sem precisar dar aulas. Por outro lado, não teria ninguém para me ouvir... Bem, vamos rápido. Mas antes, fico em um lugar próximo fazendo qualquer coisa para chegar com um atraso controlado de 5 a 10 minutos à sala de aula. Claro, preciso dizer quem manda. Quem manda sempre faz os outros esperarem, não espera por ninguém. Bem, é chegada a hora. Não parece ser tão ruim. Alguns alunos cumprimentam esporadicamente. Chego à mesa, faço o ritual de colocar o material na mesa e começo a falar. Falo loucamente por minutos, horas seguidas. Tenho medo que descubram minhas fraquezas, por isso falo. Desenfreadamente. A extroversão é a melhor forma de se esconder. A timidez revela, de cara, quem você é, assim como o que você pensa sobre si e os outros. Os extrovertidos não suportam a timidez alheia, pois sentem isso como uma ameaça a sua vaidade. Portanto, usam da sua verborragia para rebaixar os tímidos, não os deixando falar e fazendo piadinhas do pouco que falam. Por isso o mundo é dos extrovertidos. Eles são profissionais da aparência. E tudo neste mundo é aparência. Onde está a essência? Sabe-se lá! Como não sou extrovertido de nascimento nem de criação, preciso tornar-me extrovertido para me esconder do julgamento alheio e botar a culpa do mundo nos tímidos, como se não fosse um deles.
Ah, pois, as aulas. Não falarei dos conteúdos, pois uma aula é sempre a mesma aula, com pequenas variações, não importa o tema. Lembro-me de poucas coisas sobre as aulas.
A primeira, é que ninguém presta atenção no que falo, porque, quando há dúvidas, são sobre a data da prova, sobre a hora da chamada, sobre o conteúdo da prova, etc. Meu disfarce de extrovertido é simplesmente uma tragédia! Não engano ninguém! Sou mais um inútil tentando falar alguma coisa. E todos pensando nas questões burocráticas da disciplina, fazendo a contagem regressiva até o momento em que podem se livrar de mim.
A segunda, é que sempre existe, entre o meio da sala e o fundo, alguém com um olhar de desdém, desafiando toda minha formação e intelectualidade – oh! – tentando me testar, saber qual o limite do meu incômodo e da minha insegurança. Quase sempre este observador desdenhoso tem êxito. A não ser que eu tenha um ataque de sinceridade, faça uma observação tangencial ao conteúdo da aula que o surpreenda. Sua cara muda. Fica, de repente, sério. Das duas uma: ou achou-me inteligente ou tornei-me igual a ele. Nas duas opções, assim como em todas as anteriores, ele ganha. Sou também um profissional da insegurança.
A terceira, talvez a pior delas, é avaliar. Avaliar é uma tarefa que exige uma hipocrisia refinada, pois ninguém avalia ninguém: apenas inspiramos todos a continuarem seus estudos e a confirmar aquilo que já sabem. São muito raros os ataques de sinceridade de um professor ao avaliar. Não vou citar os casos de plágio de trabalhos e os casos de cola de provas porque são sempre os mesmos. Não é necessário ser professor para narrar isto. No entanto, quando o professor reprova alguém, seja por faltas, seja por notas, tem que se explicar mil vezes, dizer que não é pessoal, etc. Mas sempre será encarado como algo pessoal, porque aprendemos, pela boa pedagogia, pelos séculos de moral e bons costumes da nossa boa e velha civilização, que tudo é pessoal. Quando faz alguma atividade interativa, que envolve a participação dos alunos, o cenário é digno de uma comédia. As piores avaliações consistem em fazer o aluno falar. Pelo amor de deus, não! As pessoas preferem a morte a ter que falar em público. Ora, em um mundo que privilegia a covardia, falar em público é tarefa de alguns poucos escolhidos que devem nos representar. Para que falar? Se o professor insiste em fazer esta besteira, a comédia vira tragédia: ver a dificuldade dos alunos em falar, seus tiques, repetições de palavras e gestos, é um espetáculo para estômagos fortes. Cheguei à conclusão que, quando faço os alunos falarem, é só para satisfazer minha canalhice, minha fama de mau. Não há como avaliar o que os alunos falam, assim como avaliar qualquer coisa é uma tarefa impossível. Quem sabe o critério seja pessoal, mesmo...
A quarta coisa é simplesmente a seguinte: quando saio do espaço da sala de aula, os mesmos alunos que me cumprimentaram quando entrei não me reconhecem mais. Será que não se lembram de mim, estão cansados ou simplesmente me odeiam? Talvez nenhuma das respostas acima: ser aluno é tratar o professor como um empregado, que está vendendo um serviço e, quando muito, oferecendo vantagens. Nada além. Não sou amigo dos alunos porque dou aulas a eles. Pelo contrário. É apenas uma questão de conveniência cumprimentar um professor. De qualquer modo, para que cumprimentar um professor? É só mais um idiota que teoriza. A escola da vida é muito melhor que os livros. Para que teorizar? Só a prática interessa! Esclarecimento? Que merda é esta? E saio com meu orgulho ofendido, mas pensando que, ao menos, atingi-os com minhas palavras. Oh, quanto poder! Fora da sala de aula e das preparações, quando vou ao supermercado ou à biblioteca, meus alunos fazem de conta que não me veem, pelo simples prazer em fazer o jogo de quem manda. Se os faço esperar – porque sou um profissional em fazer esperar – eles me ignoram. E, me ignorando, também mandam em mim, assim como durante a aula, quando me perguntam se a chamada foi feita ou qual a data da próxima prova... No fundo, sou um professor obediente porque fui um aluno mais obediente que meus próprios alunos. Bem, agora vou em direção à sala de professores, tenho uma reunião a seguir. Logo contarei como é este ambiente, pois meu único prazer é fazer esperar.

3 comentários:

Daniel F disse...

Ok, esperarei ansiosamente. Na minha opinião, a próxima parte poderia ser escrita como um conto de terror, daqueles bem carregados e até de mau gosto, tipo gótico do século XIX, Lovecraft essas coisas.

Abraço!

Daniel.

Eliana Pougy disse...

Não sei... sou amiga de meus alunos, gosto de vê-los falando, eles conversam comigo, surpreendem-se, aprendem coisas novas e, pasmem, paricipam de avaliações coletivas em que todos aprendem uns com os outros! Simplesmente não acredito nos métodos tradicionais. E não os sigo. Eu digo abertamente aos meus alunos que faço experiências com eles. Afirmo que cada semestre é de um jeito e que pode ser que dê certo mas pode ser que não dê. E eles entram no jogo. E fico muito, mas muito brava, com quem fica apático. Esculacho, provoco, chamo pra briga. Sei lá. Eu me tornei professora porque gosto de gente. Gosto de gente, mesmo cheia de imperfeições. Acho que sou uma professora incrédula!

Álogos disse...

Eliana,

este texto é mais um relato tragicômico do que não dá certo. Falo de um tipo de professor bem comum, que é aquele que culpa o mundo por ser professor. Que não faz nada para mudar. Mas que acredita na humanidade, embora tenha experiências terríveis. Por isso, a inspiração em Dostoievski é clara. Em nenhum momento, é claro, afirmo que ser professor é estar condenado ao fracasso. Este é apenas o monólogo das idas e voltas do pensamento de um professor que, apesar de tudo, quer algo diferente. Seria ele o úlitmo homem? Veja a última parte.

Abraço.