4/24/2009

O Professor Crédulo – Parte 4 (final)

Pois bem, cheguei à sala de professores. Assim como uma aula é sempre a repetição da mesma, uma sala de professores é sempre a mesma sala, com poucas variações.
É um ambiente vil, mesquinho, pequeno em tamanho e em pessoas. O cheiro de giz e de café, quando existe, é o perfume de uma sala de professores, mesclado com o perfume das paredes, cujo bolor é milenar. É um ambiente onde não se percebe e não se é percebido. Pode-se ficar ali um dia inteiro sem ser percebido. Além disso, há jornais: da semana passada, do mês, ano, década passada. O jornal do dia está sempre em outra sala, que não é a de professores, que irá após uma semana, pelo menos, para a sala de professores. Pode-se ler um jornal de vinte anos atrás para ficar sem ser percebido na sala de professores, nos intermináveis minutos entre uma atividade e outra do sacerdócio de professor. Verdadeiras pesquisas históricas podem ser feitas ali – não vou falar das experiências médicas, psicológicas e jurídicas que podem ser feitas neste belo lugar. De qualquer maneira, a sala de professores é um lugar cinza e desinteressante, comparado às reuniões.
Assim como uma aula é sempre a repetição da mesma aula e uma sala de professores é sempre a repetição da mesma sala de professores, uma reunião é sempre a repetição da mesma reunião, com poucas variações. Vou dar um exemplo didático, para não perder o costume: quem entra em um shopping, entrou em todos. Do mesmo modo, quem já foi professor deu sempre a mesma aula, entrou sempre na mesma sala de professores e participou sempre da mesma reunião. Só o endereço muda. Tanto das salas de aula quanto das salas de professores quanto das reuniões. Vou falar do que entendo ser uma reunião, dar apenas a partitura-base do canto de terror.
A primeira coisa que é inerente a uma reunião é decidir o que será discutido na próxima. Até aí, nada de novo. Mas, não contente em dizer isto, digo que nada se decide numa reunião; uma reunião, por vezes, sequer decide o que será decidido na próxima reunião, pois uma reunião não é o lugar onde se decide. Não se decide, porque não se faz nada numa reunião. Não se faz nada e não se deixa fazer nada numa reunião. Não fazer, não deixar fazer. Eis o lema de qualquer reunião. Poderia parar por aqui, mas vou continuar meu canto de terror. Ao mesmo tempo, não se diz nada numa reunião, porque nada do que se diz pode se tornar algo a ser feito, pois não se faz e não se deixa fazer nada a partir de uma reunião. Quando existe algo importante a ser dito, nada se diz, pois tudo o que é dito, por mais importante que seja, é esquecido ou deixado para a próxima reunião. Só as ofensas são lembradas e estas são o real assunto de uma reunião.
Falando em ofensas, elas começam com os encontros e com os cumprimentos anteriores à reunião. Os cumprimentos delimitam as fronteiras dos amigos, dos conhecidos, dos quase-desafetos e dos desafetos. Há três modalidades de cumprimento numa reunião: os feitos entre amigos, com doçura, cordialidade e um rosto alegre, trocando livros, dicas e combinando festas após a reunião; os feitos entre conhecidos, que são mais tímidos, com uma dose contida de cordialidade, com comentários sobre o tempo ou algum fato curioso, reservando neste curto cumprimento uma pequena dose de falsidade, pois não pretendem se encontrar depois da reunião; os feitos entre quase-desafetos são muito tímidos, quase fugidios, como um beija-flor. Se você não olhar naquele segundo, o cumprimento passa e você fica durante e após a reunião sem falar com aquela pessoa (talvez nunca mais volte a falar com ela, dependendo do que for falado na reunião). Claro, só há três modalidades de cumprimento, porque os desafetos não se cumprimentam. Há os desafetos declarados e os não-declarados. Os não-declarados procuram subterfúgios dos mais infantis para não se cumprimentarem: atender o celular desligado, falar de repente com outra pessoa, abrir a pasta e olhar papéis, ler um livro de cabeça para baixo, esconder-se embaixo da mesa para procurar a caneta imaginária que caiu, etc. Tudo para dizer que não tinha visto o desafeto não-declarado. Este é um cômico jogo de empurra-empurra: “eu não vi, você não pode dizer que eu tenho algo contra você”, etc. Mas aprendemos, pela boa pedagogia, pelos séculos de moral e bons costumes da nossa boa e velha civilização, que tudo é pessoal. Por isso, há o estatuto dos desafetos não-declarados, que são a maioria numa reunião qualquer. Quanto aos declarados, não tem graça descrever. Odeiam-se mutuamente e todos sabem disso. Apenas viram motivo de gracejos entre os amigos e conhecidos e, na falta destes, entre os quase-desafetos, porque só as ofensas são lembradas e estas são o real assunto de uma reunião.
Após os encontros e cumprimentos, todos decidem sentar-se. A criação de ilhas na sala de reuniões delimita a hierarquia das amizades e dos poderes numa reunião. Sentar ao lado do chefe nunca é a mesma coisa que sentar perto da porta. Quase sempre, sentar-se ao lado do chefe é ser quase um chefe. Sentar ao lado da porta é visto como um mau sinal. Não sei por que, mas é isto que ouvi sobre os lugares das reuniões. A partir das ilhas criadas, a sala fica com alguns lugares ocupados entre as ilhas, pois o amigo de um pode ser o desafeto de outro. Sempre há ligações entre as ilhas criadas numa sala de reuniões, pois todas elas, no fundo, são uma única ilha. Neste caso, só existe um arquipélago para os moradores. Todos os outros veem apenas uma única ilha numa sala de reuniões. Só há uma única ilha na sala de reuniões porque não há lados, todos os lados são interligados e todos falam mal uns dos outros, não importa o lado. No final, uma sala de reuniões é a prova cabal de que todos, sem distinção, pertencemos a um mesmo mundo e somos iguais, independentemente das ilhas e dos lados em que julgamos estar.
Dá-se início, portanto, à reunião. A pauta é sempre uma pauta extensa, pois há muito o que dizer aos outros sobre as reuniões: que são difíceis, que há muito trabalho, que há sobrecarga de coisas para fazer, etc. Mas só para quem nunca foi a uma reunião. Porque os que foram a pelo menos uma reunião na vida sabem, que não se faz e não se deixa fazer nada numa reunião, por mais extensa que seja a pauta.
Às vezes, em meus pensamentos calhordas, canalhas e sem graça, imagino que a reunião deva ser uma experiência científica controlada por autoridades no assunto, que medem regularmente o ponto mais baixo da existência humana. E o recorde está aumentando dia após dia! Jamais o Guiness teria coragem de registrar isto! Ah, aviso que não adianta medir este ponto de baixeza em supermercados, filas de banco, puteiros ou similares, até mesmo numa guerra. Só numa reunião é possível aferir este nível de baixeza humana, pois é necessária uma reunião prévia para se começar ou acabar uma guerra. As reuniões são mais indecentes que as guerras, sem sombra de dúvida.
O conteúdo das ofensas em uma reunião pode ser imaginário, real, virtual, não importa. Mas, sempre o que for falado por uma pessoa numa reunião será aplaudido pelos amigos, receberá um gesto aprovador dos conhecidos, ouvirá um “fazer o quê” dos quase-desafetos, será ignorado pelos desafetos não-declarados e será contrariado pelos desafetos declarados. Portanto, a troca de ofensas numa reunião existe apenas entre desafetos declarados. O restante é comentado de modo sub-reptício pelos demais (a metáfora, neste caso, coube como uma luva; só numa reunião uma pessoa pode, nitidamente, rastejar). Se, por exemplo, houver discordância, por menor que seja, entre amigos ou conhecidos, cria-se um mal-estar geral. “Como é possível? Você devia obediência aos amigos, isto é uma ofensa! Não sou mais seu amigo!” Por isso, só o número de desafetos não-declarados aumenta após uma reunião. Já falei que acredito nos ensinamentos daquele homem religioso que fala sobre o “Esclarecimento”. Pois é. Um dia, achei que poderia falar alguma coisa importante numa reunião. Ser crédulo é um pecado inominável. Fui ignorado e só conquistei desafetos não-declarados após aquela reunião. Agora, tudo bem. Aprendi que, não importa o que for falado numa reunião – sempre em virtude da boa pedagogia, dos séculos de moral e bons costumes da nossa boa e velha civilização – tudo é e será levado para o lado pessoal. Afinal, só as ofensas são lembradas e estas são o real assunto de uma reunião.
Só uma reunião para recarregar as baterias e sair chutando o mundo com uma raiva enorme de ter nascido e se tornado professor. Neste momento, lembro-me que minha vingança, pelo fato de ser obediente, caiu apenas sobre mim. Só nós somos culpados pelo rumo que damos a nossas vidas.
Depois de uma reunião, faço a promessa dos bêbados durante a ressaca. Desisto! Não aguento mais! Nunca mais faço isto! Volto correndo para casa, destruído, ressentido, ofendido e simplesmente puto da cara. Cabe aqui uma observação (em tom científico e jocoso): isto tudo é perfeitamente normal para um professor, seja ele crédulo ou não. Afinal de contas, em uma reunião ele apenas está entre iguais, com poucas variações. Pois um professor é sempre a repetição do mesmo professor, com poucas variações. Sendo ele covarde ou corajoso. Tendo ideias próprias ou não. Tendo complexo de Aquiles ou não. Preparando ou não suas aulas. Sendo um canalha ou uma pessoa previsível e confiável. Recebendo ou não cumprimentos de colegas e de alunos. Todo professor é sempre a repetição do que julgamos ser um professor e suas atribuições, porque sou apenas a repetição dos professores que tive, com poucas variações.
Chega! De hoje em diante, não quero mais falar somente como professor. Não quero mais ser crédulo, canalha, esclarecido, idiota ou qualquer coisa que seja. Quero existir como alguém além da minha profissão. Por ora, sem sono, nada posso fazer, senão usar as únicas drogas lícitas a que tenho acesso: álcool e livros. Encho a cara, leio algo reconfortante e caio na cama, com a certeza que tudo foi um pesadelo e que amanhã será um novo dia.

2 comentários:

Daniel F disse...

Pra mim a sala de professores é mesmo o pior de tudo. Conversas sobre a melhor marca de arroz, intrigas etc. Uma vez eu e um amigo fizemos uma coisa divertida, a gente desconfiava que estava bebendo água da torneira, porque o garrafão do filtro estava meio empoeirado. Então a gente resolveu fazer umas marcas no garrafão e, bingo!, o garrafão nunca era trocado. Esse aí é o tipo de diversão possível ao filhadaputa do subsolo...

Eliana Pougy disse...

Que tal usar drogas ilícitas? Pode ser uma saída. ;)