7/27/2014

Anotações de um suicídio não cometido



É meia verdade supor que uma estrela não sente a dor de seu próprio apagamento.
Retirar-se da nebulosa de mel azul acolhedor para o espaço infinitamente aberto
            de dentro, na própria estrela.

As flores e animais miraculosos ainda caminham e arranham seu dorso inerte, anestesiado, a poeira vermelha, as nuvens ácidas, são imagens de poeira vermelha e nuvens ácidas, a estrela é o rastro meramente mental de uma dor que se apaga –

            ainda assim, é um erro dizer que a dor inexiste na estrela que volta sua luz para dentro de seu breu mais profundo, o próprio escuro de seu autoeclipse que ela mesma cava, cava e não há lugar

não há lugar

para uma estrela dessas num tosco planetário plástico de material adaptável:

gás de cozinha,
gás de cozinha
para dentro dos pulmões.

*
Cometas gritam meu nome, não esse que vocês conhecem, mas um nome podre. Eles passam a noite se espatifando contra a janela, movidos por uma atração irresistível
e gritam e brilham quando se quebram no vidro, querendo invadir meu quarto, assassinos. Eles nascem no espaço mais distante, caindo da boca de uma estátua de pedra. A estátua vagueia depois de todas as constelações, braço estendido apontando para o mar crônico depois do além-ocidente: não dê um passo além daqui, desse mar de gás. 


*

O sentimento aziago rasgou o céu com sua longa cabeleira de fogo. Minúsculas, pedras de gelo caem atiçadas por ácido sal – o sangue arde como limão sobre feridas. Ver alguém esmurrar a mesa gritando a palavra amor.
*
Olhe dentro dos olhos. Estrelas mortas estendem tentáculos, famintas. Luas de planetas desabitados procuram, em vão. Eu estive à beira da morte. Eu sobrevivi, mas por puro medo do nada. Existe um sono muito profundo nos isolando dentro da vida. Sonho constantemente que percorro labirintos, espaços que se desdobram, enovelam-se, é como nadar em águas de breu entre corredores fracamente iluminados.
Os seres de outros planetas que trazemos por dentro se parecem com peixes e assim é você que me lê incognitamente em meu pensamento: uma desilusão que puxa o ar inútil à beira-mar, pelas guelras. Não estou aqui com a finalidade de ser reconhecível, não acredito em padrões de verossimilhança. Portanto, acenda uma vela bem perto dos meus olhos, como faziam os legistas antigos que moravam em castelos. Ponha-se à escuta, mas cuidado com o tentáculo que procura se infiltrar, atravessando o caminho que vai da matéria orgânica do teu ouvido ao nosso coração mais abstrato. Não chore, não lamente o lodo que se acumula nas paredes. Despeça-se, despedace em si esse planetário inútil.
Vamos beber do vinho verde de tantos sonhos desfeitos, apenas porque a vida é rude demais. Alucinarei alguns momentos perfeitos, alguém velando meu sono, fechando a porta cuidadosamente, descendo a escada, levando, num aquário, peixes tão pequenos e brilhantes quanto sonhos mortos petrificados em palavras.   

            *
Liberte-me. Não é difícil, é tão simples quanto autorizar uma eutanásia: tudo em mim é corroído. Fora a dor constante, sou eu por onde respiro. Noite passada um demônio, matéria-prima de janelas fechadas por dentro do pavor, lambia minha boca com sua língua áspera de cachorro. Eu torcia meus braços de pano e sombras escorriam deles, gotejando medo. Eu implorava por luz, eu chamava, inutilmente, pelo auxílio de anjos inexistentes, mesmo que feitos no óleo de automóveis. Contra a minha vontade, meu rosto fazia caretas de ódio. Convença-se: não tenho nada a perder.  

            *
Olhe dentro dos olhos. Estrelas mortas estendem tentáculos, famintas. Luas de planetas desabitados procuram, em vão. Eu estive à beira da morte. Ele sobreviveu, mas por puro medo do nada. Venho tendo momentos horríveis, os piores de uma vida de marionete. Nem são momentos, para ser mais preciso. O tempo é um mar coagulado, crônico, que nos comprime. Se estamos vivos, é apenas uma questão de método. Você não sente? O perfume feito de butano e propano? O mar que anestesia para tudo, menos a dor, infiltra-se pelas veias e não há alívio no fato de as ruas refletirem a cidade – invertida numa topografia de ponta-cabeça onde asas de um anjo poderiam se formar no traçado do óleo despejado pelos carros, onde alguém te diz que uma desilusão verdadeira é melhor do que qualquer falsificação.
Mas é mentira dizer que a morte de uma estrela é indolor. Certamente, o conselheiro não conhece o desespero, o verdadeiro e franco desespero – se conhecesse, saberia que a ilusão mais tosca (como a de ver anjos no óleo despejado pelos carros) é preferível a todas as geometrias daqueles que, com réguas a tiracolo, ensinaram que a natureza é mero acúmulo casual de pedras e gás.
Quer-se ver de perto alguém que não seja consumido como um fogo frio, uma luz voltada para dentro de si mesma e por isso mais escura que o poço mais profundo, que não se esvaia para dentro de si mesmo como a matéria podre que se acende num fogo-fátuo parteiro de cometas com suas mensagens sinistras de guerras banais e sempre as mesmas.  
*
Nada é mais cômodo do que ser amado e não ter que amar em troca. É como jamais ser garçom, nunca de núncaras, diria a estátua pichada do drummond. Não ter que acreditar no que se diz, nem mesmo ao ponto de ter que se duvidar se se acredita no que se diz. Porque o que nos despedaça nas palavras é a crença, o instante rasga o véu como um relâmpago e nem somos deuses para tanto, quando qualquer discurso é uma sentença. Prometer-se a si mesmo que só serão feitas promessas vagas, como atravessar a rua com um folheto de horóscopo a tiracolo. Um homem pálido caminhava sob as chamas esverdeadas dos castiçais entre paredes de lodo, luas eram desenhadas no teto do apartamento, retratos de cavernas e canais subterrâneos mastigados davam ensejo a calendários servidos frios na hora do vinagre familiar. Chapéus eram jogados pelas janelas e o sol esmiuçado se cozinhava em banho-maria, vomitando cometas e aves de mau agouro.   
*
Da matéria viscosa e seca dos sonhos desfeitos de humanos e alienígenas, emanam cometas. A pele de cristal dos céus também infecciona e grita heresias contra o sol. Mas de seu vermelho sanguíneo dão saltos, dançando, tranças brilhantes, acesas, que levam as mentes desesperadas em nova viagem pelo espaço vazio. Perto disso (da imaginação pólvora cósmica deflagrada em desejo) como são pálidas as promessas dos fogos de artifício. Quem não curte a cena é o Rei usurpador cuja metade do corpo é podre e que por isso clama por contemplação desinteressada. O Rei corre aos seus aposentos em busca de sua arma de fogo. Tudo menos ouvir as vozes desenhadas no rastro ardente que canta o amor num pontilhado de tranças que atravessam o céu.
Dar tiros em cometas: é a tarefa de quem não acredita no amor e assim fica congelada a imagem do Rei cuja metade do corpo é podre: de pé na varanda, apontando seu revolver contra o céu.          
*

E se eu, como esse Rei usurpador, tivesse o seu revólver? A facilidade então seria uma solução mais simples, dando forma definitiva à realidade. Eu diria para ele, Rei podre, atire em meu próprio coração que todos os cometas desaparecem como que por encanto. Eu não estaria escrevendo isso e tendo que refazer meu planetário com estas palavras, à procura da matéria-prima luminosa da vida. 


7/19/2014

Agora, rápido! não tem ninguém
            olhando

            é o custo benefício de toda porta excessivamente
            pesada
            deixa a palavra na ponta da língua um peixe
            ao anzol é a chave
            e uma hora desmaia
            como respira por fora de tudo, alheio ao bom senso
            e cava mais fundo a terra seca e vermelha
            das minhas mãos
            quem sabe outro planeta de ossos partidos
            e trinca a memória
            se a boca fosse detector de mentira às avessas.

            sempre desconfiei de alienígenas
            entre tantos bichos e afetos
            esquisitos flutuando por aí, no sangue
            na água salgada,
            e certa poeira de romantismo na contramão
            do ponto sem nó
            e retorno.

            Agora chega
            que estão olhando pra gente
            faz de conta que não se conhece.


7/11/2014

Pelo menos não tenho que fingir

Pelo menos não tenho que fingir

Brasília amanheceu sob névoa de amarelo nunca antes visto, o fogo desnaturado se aproxima e nesse ar de inseticida – quando fala sua língua lembra uma centopéia agonizante, como é triste esse jeito de sorrir, não é um sorriso forçado, não é isso, mas um sorriso de ambigüidade, sente-se por trás das pupilas uma névoa amarela de melancolia prévia a tudo, anterior mesmo ao despertar, a voz vem como se tivesse que passar através de uma máscara de gás, e as flores do ipê vão caindo, sendo pisadas, maceradas sobre o asfalto e como as pessoas se cumprimentam, vão embora, você tem esse tom de pétalas mortas por agente laranja no cabelo e sorri tristemente no panorama, sob essa gravidade na respiração algumas coisas não deveriam mas voam, asas pesadas, outras se arrastam, marionetes soltas, sem noção de movimento, aguardam, esperam, cansam-se e resolvem limitar-se a que o tempo passe. Inevitavelmente passará, deixando em seu rastro uma névoa amarela de velocidade em armas químicas, progresso, monumentos corroídos e um almejado dom de invisibilidade por sobrevivência, total anestesia para o corpo colonizado,
deve contudo existir outro ritmo, pulsações, um estado de alarme implícito na fluidez mortífera de nossa atmosfera, do seu ar de abandono, sob um fingimento tão normal.

*


Com toda facilidade, criamos escamas e estamos prontos ao mergulho, furando o asfalto, deitando raízes, traços de sangue pelo chão e fertilizamos o tempo esponjoso, o tempo morto, o irreversível, a atmosfera indiferente do subsolo que tomou conta de toda a cidade e que as pessoas respiram com ar de insignificantes: sem raiva não brotaria nenhum fruto apreciável, principalmente o fruto mais obscuro, com polpa de estrelas, de fogo alquímico, com agulhas de tatuar cumprindo seu papel de sementes anunciando: abençoada seja toda ira criadora.