3/10/2008

nº 71

(Voulez-vous danser? de Fabian Fornarolli, 2004)



Abrir janelas na página, sucessivas,
em cascata e surfar de uma para outra até
recolher as migalhas de sentido espalhadas
na superfície das coisas.
A ficção do cético é o abismo, ele
é uma cama doce, como para o místico
o pavor e o êxtase envolvem a alma e o corpo em curvas difusas
de embriaguez contínua. O passado reduzido
a arabescos vertidos
sobre uma seda que nunca se esgarça
e nem acaba, nem mesmo quando
os calígrafos enlouquecem e aferram suas penas
sobre a trama de fibras como se transferissem
para o objeto o foco
e não à sua mão que ainda dirige a tinta
sobre a tela, a sua luz, a sua
escuridão, o seu calor, a sua
urgência.
(das "Notas Marginais")

5 comentários:

Daniel F disse...

Oi Aldemar,

acho louco mesmo isso, essa aproximação entre ceticismo e misticismo. Os dois são muito difíceis e ao mesmo tempo banalizados pra cacete, como escapismo e autoajuda. Mas pra mim nada chega mais perto do choque das coisas e da reação natural da nossa burrice muito humana que os dois, "enfrentados de frente", como se diz por aí.

esta aí está entre as Notas de que eu mais gosto.

Abraço,

Daniel.

Eliana Pougy disse...

O que tem em comum entre o ceticismo e o misticismo é a tal iluminação, de um lado alcançada pela razão, de outro, pela fé. E essa iluminação é algo das entranhas, um raio na cabeça, uma ânsia de vômito, um quase-orgasmo. Tem a ver, sim, com essa marca da mão na seda. Bem legal.

Aldemar Norek disse...

Puxa, bacana receber este retorno de vocês. É muito bom pra mim.

Mas entre sujeito e objeto (nesta "fissura" de "escrever" o mundo), todos dois postos sobre a seda, onde vocês acham que deveria estar o foco? Despersonalização absoluta ou neo-romantismo? Ou um meio de caminho, se possível fosse?
Abração, beijos.

Aldemar Norek disse...

Agora, concordo pelnamente com você, Daniel, sobre o potencial de aproximação do "choque das coisas" (que expressão mais visceral, não?) do que o ceticismo e o misticismo, no plano das idéias - é que ainda tem o corpo e suas demandas, fora toda a sua complexa relação que ele tem com isso que chamam 'alma', como aconteceu com o John Donne, místico e devasso ao mesmo tempo, ou com o maluco (ou espertíssimo, convenhamos) do Aleister Crowley. Este aproveitou a passagem por este manicômio....

Daniel F disse...

Oi Aldemar,

não sei, Aldemar, sinceramente. só o que acho é quando eu penso que estou escolhendo ser "eu mesmo", na certa estou optando por algum modelo que vem de fora e antes, esperando o olhar aprovador do outro que foi colocado no pedestal. Uma das minhas autoras favoritas é a Hannah Arendt, ela diz uma coisa assim: quando eu penso sobre quem eu sou, eu já me divido em dois, um que pergunta e outro que responde: logo sair em busca da própria identidade é uma tremenda burrice. Você vai sempre encontrar outro. Só acho é que não tem receita, a iluminação pode vir de qualquer jeito (só estão excluídos os que não pensam ou que não rezam de verdade). Pra estes é uma coisa que diz o Oito-Olhos que encaixa: "eu sou cheio do meu estilo, meu estilo é cheio de si", egoarquia totalitária capitalista caralhuda etc.

Abraço!

Daniel.