12/29/2007

A madeira e a memória

1.

Engraçado como objetos de madeira
retêm a memória.
Coisas de plástico, por sua vez,
não têm calor nem profundidade,
vivem num presente opaco e vazio
coisas de plástico deviam se chamar esquecimento.

- Mas felizmente meu passado é de madeira.


Vejo o porta-recados feito por meu avô
por exemplo

(ele que só fazia objetos claros e úteis,
nada de gracioso pra espantar otários
ou de encantador pra seduzir espantalhos).

Ele se foi, meu avô,
mas na madeira rígida e funcional
percebo seu olhar severo
suas mãos duras, de artesão.

A madeira preserva a memória de uma lucidez
que não está mais entre nós.

E sei que mesmo depois que minhas mãos,
que tocaram aquelas mãos nem tão duras assim,
também se consumirem,
os objetos de madeira permanecerão,
como testemunho de alguém
que os pensou, projetou, prensou,
doando-se ao mundo em coisas úteis e duráveis, de madeira.

Somente em seu leito de morte
descobri que meu avô sonhava com barcos
que para além de seus traços rígidos de artesão
meu avô também dormia no mesmo leito de rio
no mesmo entreato de sonho e vigília
em que seu neto vivia.


2.

Meu avô
à beira da morte
estava à beira de um rio

- o Araguaia –

Quando morria, meu avô
via no quarto um aguaceiro só
e me avisava:

“na pescaria noturna
não esqueça o farol
que meu barco
só se tranca por fora
e só se abre por dentro ”

Depois disso
as margens se apagaram
na escuridão líquida e viva.


3.

Hoje, vejo na madeira um pensamento maduro.
quando a toco sinto um resto de calor
que ela reteve,

o que me leva a uma conversa com o porta-recados,
sobre memória:

Presta atenção, madeira,
meu tataravô era um saltimbanco
um cigano, um andarilho
no vasto Império Austro-Húngaro
num distante século XIX.
Dono de um teatro brincante
usava trapos coloridos
e um anel de guizos.

Meu trisavô não quis manter
a tradição da família
e por isso partiu
como um judeu errante
pra longínqua América do Sul.

Meu avô perfez a segunda negação
ao não deixar às suas filhas
o nome do velho saltimbanco Tomanick
ficando um pouco mais distante
do Império, já extinto,
adotando pra família o sul-americano Barbosa,
de caçadores de índios.

Mas o que ele sabia e não sabia
(sabia pelo que de si fazia
e não sabia pelo que esquecera)
era a sina de saltimbanco e andarilho.

- Você está me ouvindo, madeira?

Isto porque, primeiro, meu avô foi criança prodígio,
pianista em meio à prataria,
depois, guarda da fronteira
no longínquo Paraguai,
ainda trabalhou em ferrovias
teve uma ou duas sorveterias
(e as crianças de então,
adultos de hoje,
nunca tinham visto sorvetes coloridos).
Contador, administrador e pescador
nas águas turvas do Araguaia,
vivendo em mais de cem cidades
percorrendo o centro vertiginoso
da América do Sul
e teve tempo pra fazer papel de rude saltimbanco
numa curta passagem como ator de circo.

Agora, penso que eu talvez seja a terceira negação:
em frente a esta tela colorida
pensando numa Hungria que vi no cinema
numa América do Sul dos livros de história e poesia
sem saber desta história

onde a verdade começa, onde termina a mentira.


3 comentários:

Anderson Dantas disse...

Daniel, este teu poema é comovente. Pois comecei a escrever efetivamente após a morte de meu avô materno. Ele era o que eu chamava "o poeta da parábola", poeta de nenhum verso, mas poeta das atitudes mansas, suaves, corajosas e duras. o poeta do ato.

Anderson Dantas disse...

além do que, Daniel, eu adoro a madeira. tem este conforto quente de quem a manuseia e a memória líquida de quem nunca se esquece ...

Daniel F disse...

Oi Anderson,

dá um certo alívio saber que a poesia que escrevi possibilita um encontro como este aqui, que existe alguma coisa de comum nos meus mitos pessoais. O meu avô do poema também é do lado materno, e por estes dias tenho pensado e sentido muito sobre a passagem das gerações.

Abraço,


Daniel.