1/27/2008

A arte de não ver com olhos livres em 3798 palavras (Ou Aula sobre Abaporu na Pinacoteca)

- Ver o vermelho (pra explicá-lo)

- O vermelho representa

alguma coisa: vasos

sanguíneos,

sensualidade, fogo ou

buceta em flor depois da foda:

o sangue pode estar em transfusão

ou saindo por um corte

que por sua vez

pode ter sido por faca

garfo, lança ou espada:

o fogo pode estar

diminuindo

mas é um fogo imaginário

em tudo isso há

um núcleo de vermelho

decifrado.


- A essência da tela

posta em questão

está escondida

na haste vermelha.


- A metade de cima

é o que seria um shoppingcenter

pra vocês (na sua imaginação)

a de baixo é uma praia

de paulistanos,


- Modernidade, atraso

missão civilizadora

bandeirismo, escritores

em Ouro Preto, essas coisas

estão espalhadas

nas partes verdes do quadro.

- Aliás, pensando bem,

deixem de fora a buceta sublinhada

no início do passeio

não era esse o projeto

modernista

que enquadra.


- Em dúvida

cruzem a rua

e confiram

Gilberto Freyre e a relação

entre a família patriarcal

e o açúcar, congelados

em microondas.


- O bicho tem uma boca pequena,

não dá pra saber

se domina a língua

portuguesa.


- Ver com olhos livres

não é ver como se queira,


- Caros visitantes

todos os olhos são armados

o de fulano com uma bazuca

o de beltrano com um alicate de unhas

o de cicrano com a colubrina

vamos então espicaçar

o Abaporu

o bicho tem que se explicar,

e sim senhor

dar uns passos pra trás

e coçar a barba

faz bem.


- O direito de existir

é o que está em pauta

ele deve se comportar

como o canibal patriótico,

é o que se prescreve

num caso como este.

- Se ele foi adestrado?


- Continuando meus queridos

este pé inchado

pode ser de bebedeira

vejam os olhos de ressaca

do animal,

mas claro que estou

simplificando pra vocês,

é o inefável

da anedota e o registro

não é do pitoresco.


- Pode ser que ele tenha

pisado um formigueiro

antes de ser flagrado

pela artista genial

num hotel de Florença

ou sob a estátua de Stalin


- Mas tem que ser alguma coisa

nada é que não dá, por que

a moldura é prateada?

- E se for alguma coisa

você deve dizer logo

(virando-se pro bicho)


- Como quem cala consente

adianto que:

verde é natureza &

vermelho é fogo,

de fogo vem ar

de ar vem água

de água vem terra

de terra, umbigo,

daí pra língua é um passo

e a mente retorna

ao fogo.


- Ver-se na pintura

não pode se perder,

o animal ou se domestica

ou que morra de fome

no fundo do mar (vai

fazer companhia

pra Dom Quixote

em bronze no porão

do museu).


- E você aí garota

calma não precisa chorar

esta paisagem é só São Paulo

vai lá fora e veja por si mesma.


- Não, o animal não está se mexendo

como um peixe confinado

num aquário muito pequeno,

não ele não está sumindo


- Deve ser a depressão de fim de férias.


- Não, ele não vai sair do quadro.


Um comentário:

Eliana Pougy disse...

Hahaha! Adorei!