10/25/2007

Partido, o erro é meu

A vida gira em torno de eixos muito simples.

Domingo. Brasília é uma tarde parada entre carros e o quase silêncio de seus reflexos na pista. Mas trancado no quarto eu finalmente mergulho na moça que me cativou o dia inteiro com uma cumplicidade displicente. Ela se liquefaz num rio que me suga para suas águas turvas. O quarto é um aquário e somos sua matéria-prima densa.

Ou uma tarde qualquer. A invasão mascarada sob condomínio fechado, a gaiola para os abutres de garganta seca é silenciada por uma luz singular. Um sol que não fere a vista, mas desce sobre o dorso das coisas e suaviza em tudo levemente dourado. Pela primeira vez, a cidade aérea tem profundidade. Meu irmão olha a paisagem. Minha mãe olha meu irmão e a paisagem. Eu, pela janela, vejo a varanda, minha mãe, meu irmão e a paisagem.

Há ainda a manhã se expandindo em azul-marinho dentro de outro quarto, quando Giovana abre a janela e o dia apenas começa, e o azul invade a tonalidade de seu rosto, dos seus braços. Os porta-retratos, até então escondidos no escuro, ganham os contornos de uma vida desconhecida.

Existem outros momentos, situações dispersas como túmulos na areia da praia. Ou a certeza de que a parede quente do apartamento aprisiona gritos, em voz baixa. Ou em frente ao muro, próximo ao mar noturno, a memória melodramática de um moleque mijando e chorando ao mesmo tempo.

Nada disso é perdido pelo Semprevigilante Oito-Olhos. O renegado Oito-Olhos e sua coleção de crianças mortas. Mas num dia de muita chuva eu jogo uma semente alucinada em sua consciência universal. Eu sou uma semente alucinada na consciência universal, mas ela não precisa de mim e segue seu curso. Ao contrário, eu é que me alimento dela como um autêntico parasita.

A poesia é um fruto delicado oferecido às garras de rapina da consciência universal. Por isso, ó senhora cansada e moralista, não renegue a merda da consciência universal, simplesmente. Não parodie a palavra merda. A merda está cheia de sementes alucinadas na consciência universal. A classe média fantasia-se de consciência universal em seu ninho de abutres mas abriga em seu refugo algumas sementes alucinadas.

O que fazer ó deuspai barbudo ó filho guerrilheiro impoluto ó espírito crítico se o máximo que sou é este miasma da história? Já joguei dardos na cara do cartaz do presidente. Já corri atrás da Perestroika no Itamaraty. Mas tudo isso ao lado de presidiários libertos, punguistas, trapaceiros, realejos, amoladores de facas, todos liderados por um velho saltimbanco.

Se eu aprender a rezar para o deus que deve estar por perto, já que o pressinto como um pássaro em minhas veias me ensinando que tudo pode ser leve porque todos têm o poder de voar e fazer sangrar a dita consciência universal, estes serão os elementos que me darão força para apostar numa nova fraternidade. O resto é o fluxo indiferente da vida, um peso morto que anda por aí e carrega meu nome sobre o mundo.

Um comentário:

Aldemar Norek disse...

Esta relação entre cidade,vida e poesia tem uma força incrível. Até porque a cidade é uma representação de pensamento tão forte como a poesia, embora eu confie mais na poesia e sua inutilidade, sua (possível) não vinculação com os valores do(s) sistema(s) - mas ela pode ir lá, mexer o balde de merda e voltar com outro olhar.
Gostei muito tbm do panorama de dentro da casa, que é enfim onde a gente tenta viver e arrancar alguma coisa mais que ser um peso morto andando por aí, carregando o próprio nome sobre o mundo.

Este estar sobre o mundo, uma vez imaginei o mundo como um animal (um cachorro de rua?) e a gente seria a população de lêndias na pele do bicho. O problema é o dia em que o sacana se sacudir...quem não estiver bem agarrado....