2/12/2008

Eu, Daniel, Saramago e as Pequenas Memórias





Ao meu Avô Ermelino,
aos avôs de Daniel e Saramago



Cai a chuva, o vento desmancha as árvores desfolhadas, e dos tempos passados vem uma imagem, a de um homem alto e magro, velho, agora que está mais perto, por um carreiro alagado. Traz um cajado ao ombro, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente caminham os porcos, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. O homem que assim se aproxima, vago entre as cordas de chuva, é o meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de privações, de ignorância. E no entanto é um homem sábio, calado, que só abre a boca para dizer o indispensável. Fala tão pouco que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende algo como uma luz de aviso. Tem uma maneira estranha de olhar para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede que tem na frente. A sua cara parece ter sido talhada a enxó, fixa mais expressiva, e os olhos, pequenos e agudos, brilham de vez em quando como se alguma coisa em que estivesse a pensar tivesse sido definitivamente compreendida. É um homem como tantos esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria que não pôde ser nunca. Recordo aquelas noites mornas de Verão, quando dormíamos debaixo da figueira grande, ouço-o falar da vida que teve, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia, do gado que criava, das histórias e lendas da sua infância distante. Adormecíamos tarde, bem enrolados nas mantas por causa do fresco da madrugada. Mas a imagem que não me larga nessa hora de melancolia é a do velho que avança sobre a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. A não ser a morte. Este velho, que quase toco com a mão, não sabe como irá morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes de seu último dia terá o pressentimento de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória não o ressuscitar no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a eterna interrogação dos astros. Que palavra dirá então?




(José Saramago, As Pequenas Memórias)

4 comentários:

Daniel F disse...

Oi Anderson,

muita beleza e muita verdade. fiquei comovido com a lembrança.

Um grande abraço,

Daniel.

Anderson Dantas disse...

Olá, Daniel. É incrível que a figura do avô tenha sido tão importante para nós e para outras pessoas. A figura do agricultor ignorante que se torna sábio. Mesmo em seu silêncio possa dizer tanto ou às vezes tudo. Em meu livro SCHATTEN que enviei aos epistolares tem um poema dedicado ao meu avô na página 66, RAPSÓDIA NEGRA, que guarda semelhanças com essa passagem do Saramago. Embora, tenha escrito meu livro há vários anos, provavelmente as imagens poéticas tem um quê de simbólico pela semelhança histórica de um e de outro. Abraços a todos os epistolares.

Anônimo disse...

oi Daniel
soh passei pra agradecer esse seu post.. procurava ha tempos esse trecho (li o livro, e passei pro meu computador as partes que mais me tocaram, no fim, o pc quebrou e perdi tudo...) que tanto me faz lembrar do meu avo.

adorei o blog
beijoos

Anônimo disse...

esqueci do nome...
me chamo giovanna!