Sou uma coisa meio azulada. E não é porque não sou sua, nem de quem quer que seja (inclusive aquele que escreve), que não trago comigo uma emoção autêntica. Passo levemente minhas mãos translúcidas pelo seu rosto e você pensa que se trata do seu jeito único e pessoal de ver as mazelas ou os encantamentos do mundo. Mas tudo bem. Chamo isso de “minha generosidade”: apagar-me em benefício alheio.
Não me escondo nas sombras que vazaram dos seus olhos. Pense na sombra como um contorno que dá textura real ao Inferno leve e melancólico que te consome. É que pra conversar no inferno, fazer-se entender sobre o inferno, o cachorro e a criança se lambem, resmungam, olham-se fixamente nos olhos. Pra falar no inferno, o cascudo às vezes é a palavra necessária.
Estou aqui muito antes de você nascer, e sobreviverei às suas pálidas ilusões de “marcar presença” no mundo. Pense numa espiral azulada que se concentra num turbilhão. Pense na força, voracidade e violência de um turbilhão faminto, cheio de facas afiadas, que se desfaz aos poucos ou que desaparece inesperadamente. Um turbilhão com todos os nomes possíveis, o seu, que me lê, e também o daquele que neste momento me escreve. Trata-se, você bem vê, de uma leveza estranha: capaz de operar um deslocamento nas coisas com sua palidez azulada (a professora de história explicou um dia: as letras Ordem e Progresso são azuis, como azuis são as ruínas de um hospício abandonado). É uma leveza capaz de ferir, de conhecer seus ínfimos êxtases e de manter-se em perplexidades passageiras. Uma leveza atravessada pela multidão assombrosa de anônimos, apaixonados, caçadores e visionários. E você (te ensinaram este nome) chama o turbilhão de “meu íntimo eu”.
Agora, se você não está entendendo aonde quero chegar, pense na bandeira de uma nação qualquer, manchada com sangue de ketchup, formando uma espécie de tapete vermelho de boas vindas na entrada de um cemitério.
Um comentário:
Adorei isso, Daniel. O Marcelo é genial. Ô fauna que foi esse lançamento..... demais!
Postar um comentário