11/19/2006

dois em um

(I)

















Em São Paulo persiste um ruído
que arde.

Ele cega.
Tira o paladar.


Ele te faz caminhar a esmo
pelas vielas de calçadas
velhas,
com grama rala entre as pedras.

Ali,
mora um barulho encanado,
branco,
seco,
que te faz estátua de sal.


Em vida.


(II)

Da música que existe em nós
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Ele fala e eu escuto, atenta. Sua boca se move em variações circulares, ocas. Seus olhos arrebentam-se em mil sóis, no branco de um céu de inverno. Faz frio. Penso em suas mãos, há pouco. Eram quentes. Ele fala mais uma vez de seus feitos, de seus amores, de seus grandes e enormes planos. Aos poucos, esqueço tudo aquilo que ele diz: ouço apenas a música que se desenha entre as mesas e as cadeiras. Ele repete erres e esses de um jeito tão doce... suspiro, como uma criança com sono. Ele sorri. Nossos cheiros se tocam no ar, e o vento gelado que entra pelas frestas das janelas, cristal transparente, estala em seus dedos. O som de sua voz preocupa-se comigo: você entende? Concordo com um movimento de canto de boca, e ele fecha os olhos. Aproveito para registrar o contorno de seu rosto, a cor de seus cabelos, o áspero da barba. Ainda sinto sua aspereza em meus lábios. Passo a língua neles e eles ardem. A música diminui o ritmo, abaixa a intensidade. Seu olhar foge numa menina que chora, na mesa ao lado. Fixo o meu em seus braços, e me lembro do dia em que ele me abraçou pela primeira vez. Gosto deles, da textura da pele, da força que vem deles. Meu frio aumenta. A janela ao meu lado embaça com minha respiração ofegante, nem vejo mais os carros lá fora, nem as pessoas passando, nem a chuva que começa a cair. A imagem dele me amando naquele dia volta e abaixo a cabeça segurando a boca, japonesa. Ele me encara: você entende? Não falo nada. Apenas ouço a música. Ele se levanta e vai embora, me deixando sozinha, afundada em minhas mãos trêmulas e meus cabelos soltos, sem entender.

5 comentários:

Daniel F disse...

Cortante, Eliana. Lâmina epistolar.

Haemocytometer Metzengerstein disse...

No fundo é tudo música.

Eliana Pougy disse...

Conseguiram ouvir o Yo-Yo Ma? Eu amo violoncelo.

Masé Lemos disse...

muito bom!

Anônimo disse...

puxa, eu quero ouvir o tal yo-yo-ma, não ouvi nada
Anderson