de repente você acorda
há menos de cinco minutos pensava que desta vez sim
conseguiria dormir
mas de repente você acorda
- puta que pariu
observe o rebanho que mastiga o capim
e o som dos dentes e da saliva no verde: rio fluindo
rio de pedras polidas fluindo no esquecimento.
- merda, por que sou gente?
você não consegue dormir porque sabe que se esconde
numa fortaleza, tão complicada e delicadamente construída,
que se tornou sua prisão desconhecida em que você trafega como um rato
a porra de um rato com memória
a porra de um rato com nome próprio.
a infantaria ainda não foi inventada você tem que se virar
com estes canhões enferrujados e um crucifixo
- fodeu!
eles estão lá fora mais maneiros e manjados que você
desta vez você se fodeu.
você vegeta como um cão de guarda entre os muros de pedra
- e só agora te avisaram.
eis o plano de fuga:
o Imperador ordena, não a dor, a dor de cada um
que se foda dançando entre os dentes, a dor, o grito que silencia,
o silêncio que se grita foda-se, o Imperador ordena
tome conta dos seus pertences, do seu álbum de fotografias,
guarde com zelo o nome da família, vele pela memória de Mazagão,
pegue a maldita canoa e saia pela porta minúscula que se insinua
à beira-mar. e não exulte você não vai afundar no Lethes.
você vai é parar no meio de ruínas
numa cidade bolorenta sangrando à virgem que se arrombou
num terremoto daqueles, uma puta caçada por Sacerdotes,
uma órfã sem eira nem beira, um convento derrubado,
a porra de uma cidade fodida é pra onde você vai.
e não se misture com seus habitantes
até nesta merda de mapa você só está de passagem.
eis o plano de fuga.
- e só agora te avisaram.
depois agora você vai se cagar no meio do mar
rumo aos trópicos aqueles mesmos
em que centauros comem o verdadeiro fruto proibido
lá permitido (as mangas-rosas altas e saradinhas)
terra das grandes cachoeiras e dos carimbos.
- mar, que belo e verde!
só se for na beira da praia, lá dentro
a pura monotonia os dentes da maresia
que absolutamente não canta saltam do verde e liso mar
e ferem seus olhos lambem seus dentes apodrecem sua boca
uma cloaca, lábios de labirintite.
- me fodi de novo.
oh, quanto sal, são lágrimas de um boçal.
finalmente você chega à nova morada:
madeira podre infestação de formigas casas caindo
chuva torrencial medo dos canibais que inexistem
mesmo assim te mordem roem dentro de sua cabeça
e você ainda a preserva, a porra da memória.
- Dona Maria a Louca mudou de idéia
reconhece em você a triste, tristonha marionete nas mãos do destino
esta bosta de metáfora com luvas negras e frases-feitas desenhadas
há de liberá-lo, pode ir, o mundo é seu.
- e só agora nos avisaram!
- e só agora nos avisaram!
- vulgar monstro delicado, meu irmão!
é preciso agir rápido, aproveitar-se do começo
num ponto qualquer, qualquer incidente serve,
o veto e o decreto de uma Rainha pirada que seja.
esta pode ser a hora de esquecer-se
sempre agora ritualizar-se
destinar-se.
5 comentários:
Caramba, Daniel, isso dá um puta romance!
é sim, também acho. a base já é um livro de história muito bom, o autor é Vidal Laurent - acho que ele é arquiteto, estuda urbanismo. Mazagão tem muito a ver com Brasília, e esse lance de desterritorizalização, e imigração em massa, mas também pode ser lida como metáfora pra (des)subjetivação, e a questão da Soberania, do Poder Soberano. Poucas histórias que conheço são tão ricas. Se eu tivesse ou tiver a competência pra tanto (não tenho) o romance poderia sair. Taí pra quem quiser. O negócio é se concentrar na densidade da narrativa, sem se deixar levar por essa riqueza mítica - assim, no sentido de não fazer "romance de tese" como meu comentário aqui dá a entender.
daniel
dou força pra você encaar este romance historico, é projeto pra uns 4 anos, poxa vale a pena, vc escreve muito bem, para de modestia!
alias, vc conhece o Nação Criola do José Eduardo Agualusa?
Oi Masé, tudo bem? Não conheço, vou procurar. Não é modéstia (esse vício eu não tenho :) ), Masé, é apenas reconhecimento depois de tentativas que não deram certo - a não ser quando contei com encontros com outra escrita mais criativa, não soube dar densidade a uma trama. Vou pensar no assunto, de todo jeito, porque vale a pena. Acho que não gostaria de escrever um romance histórico, prefiriria manter o motivo histórico, mas com mais liberdade, sem o rigor da pesquisa etc e tal. Os romances históricos que conheço são meio cansativos, aquele esquema naturalista, cronológico, cansa... Sei lá, mas acho que o gênero deve ser mais rico, minha ignorancia vem do fato de eu geralmente evitar filmes, romances históricos. Aliás, quase não tenho livros de história...rs. Um beijo
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