A história do Brasil em 4 monólogos:
No primeiro, Graciliano Ramos fantasiado de prefeito lê um trecho de seu relatório. No último, Dyonélio Machado travestido de Dr Oito-Olhos avalia a situação, lendo o seu Uma Definição Biológica do Crime. No meio, Vidas Secas e O Louco do Cati.
1. Cuidei bastante da limpeza pública. As ruas estão varridas, retirei da cidade o lixo acumulado pelas gerações que por aqui passaram; incinerei monturos imensos, que a Prefeitura não tinha recursos suficientes para remover. Houve lamúrias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado no fundo dos quintais, lamúrias, reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que viram bichos nas praças.
2. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, o prefeito de Palmeira dos Índios saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. Baleia saiu depois sem destino, aos pulos. Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo.
3. Agora: só poderia ser um cachorro fantástico. Bem que sentira sempre a sua sofreguidão canina, quando engolia o seu tassalho de carne... os seus silêncios invencíveis de cão... uma vez que fora encerrado num quarto – como um cachorro! Entrava como um cão na crise da sua vida. Avançando, num trote e ladeado, ia pondo os olhos nas flores – mas uns olhos muito deslavados, de cão. Nem valia a pena lutar – ou fugir, como sempre vinha fazendo, como o fizera ali ainda no meio do campo, na véspera, diante do vulto negro que tinha uma capa negra – e que lhe lembrara aqueles outros homens vestidos de preto, de dólmãs pretos onde luziam reflexos metálicos de botões, ou de dólmãs pretos ensopados de sangue.
4. Em todos esses casos, fica comprovado que o delito entre os animais, como no homem, é o efeito de ‘tendências individuais’, não representa o resultado de um ‘instinto específico e geral’, manifesta-se num ou dois indivíduos dentre cem da mesma espécie, sofre o impulso de vários móveis psicológicos ou patológicos. Mesmo o modo de execução do crime oferece a variedade que se encontra entre os delinqüentes humanos: animais existem que empregam a violência, outros a insídia, alguns se contentam com a simples eliminação da vítima, muitos levam a sua ferocidade até a sevícia do cadáver e ao canibalismo. A própria cumplicidade consciente e criminosa entre vários indívíduos de uma mesma espécie animal já foi observada. Encontram-se, com efeito, verdadeiras associações de malfeitores entre os animais. Figuier narra o caso de três castores que se associaram para matar um quarto companheiro; e exemplo semelhante é fornecido por outras espécies, segundo Darwin. Para completar o quadro, nem falta mesmo a punição, praticada já em germen entre animais de um desenvolvimento social mais acentuado, como se verifica entre os símios, segundo o testemunho de Brehm, ou entre as cegonhas, de acordo com o que nos conta Figuier.