12/05/2013

Minha diferença está no que sinto. E o que sinto não é de ninguém. Nem de mim. Minha inspiração vem dos altos montes, dos violinos e dos violões que vem do horizonte de meu desejo – que é o desejo de todo mundo ao mesmo tempo. Não, não sou alguém que sabe o que o mundo quer, mas sabe o que o mundo sabe, sem saber que sabe... Todo mundo pensa estar em um mar de possibilidades e de juventude que nunca assumiu estar, mas a força que temos quando dizemos sim é única. Única porque não nos deixamos vencer por todas as coisas que nos falam, de que estamos errados, ou que somos loucos ou ingênuos. Ingênuos somos se não acreditamos no vento que ouvimos, que, no fundo, é o som de nossa própria voz, ecoada em um amor que quer abraçar o mundo com uma vontade que não acaba mais. Vontade que não é um mero arroubo ou todos os arroubos ao mesmo tempo, porque o tempo nunca é o limite do que somos, mas o não-limite que podemos ser – e seremos, e somos...

11/22/2013

Viagens Alucinantes

                             De manhã
                               Luz lâmina fria
                                   Em meus cabelos

                                   De tarde
                                   Vento feérico
                                   Nos olhos

                                   De noite
                                   Frente ao espelho
                                   Escuro reflexo.


                                   Tudo o que se sabe fere
                                   O que desabe:
                                   Eu,

                                   Inverossímil filosofera


11/13/2013


Com a mente cheia de fungos
corro até a esquina
testemunhar a novidade da semana:

por onde começa
a explosão do planeta.

*
Alma de polias rangentes
engrenagens enferrujadas rodas dentadas teias de arame
farpado pó de luas mortas com gosto de sangue na boca
dentes muito finos e compridos roendo a covardia
dos nossos tempos, gente de luto escorrendo
ralo abaixo, gente sem pulso girando e girando
pro fundo do poço

que bela merda essa tua vida hein

um sol negro sabe o nome e nos chama –

fiquem tranquilos conterrâneos da desistência
sigam a estrela vermelho-pálido agarrada como uma tarântula
na minha nuca, sou anêmico mas meu sangue tem luminol :

eu vou à frente e ensino o caminho,
é simples como saltar de um trampolim,
tudo de que vocês precisam é um exemplo.

*
*
Poeira e pedra
pedra e poeira rumino
com gosto de pinho sol

desgosto de duas luas
de celulose agonizando à faca cega

uma sobe outra desce
uma desce outra sobe
dois olhos por dentro das veias
lentes de fuligem pra ver

o ir e vir o ir e vir o ir e vir
o ir e
vir da dor:

sou meu próprio açougueiro
cavo meu corpo de bolor e terra úmida
com uma enxada enferrujada que eu mesmo invento.

- matou-se tomando um litro de pinho sol
e ganhou o epitáfio jocoso de boca de bidê.
           



11/04/2013

Fecho os olhos
            cada globo ocular é uma lua
            atravessada de sulcos e cicatrizes:
            arranhões
                        traçando, a sangue coagulado,
                        raízes para um jardim de flores dentadas
que me tramam o peito, por dentro:
           
assim que durmo quero acordar,
assim que acordo quero dormir,
é sempre o mesmo estado de coma:  
                        inoculam-me óleo de estrelas mortas
                        pelas vias respiratórias.

                        um vento gelado
                        trava-me o tórax, dizendo:
                        ao menos que seja rápido
                        que o futuro seja rápido como uma sombra
                        que a indiferença interrompa a destruição
                        como uma elipse involuntária dissolvendo astros negativos
                        ou que o futuro não chegue
                        e que o presente passe rumo a não sei que outro tempo,
qualquer alívio ou desastre.

                        por enquanto sou como aquele planeta que deveria existir entre Marte e Júpiter
                        no espaço do pensamento
                        e nunca foi encontrado.


             

10/25/2013

De um trago
                        bebo o trevo amargo:
                        - O mar, cor de
                        verde tequila.

                        Trago o mar em mim,
                        sal na respiração,
                        corais marulhando na voz.

                        Em tudo percebo
marejar a monstrumaravilha.

                        Meu sangue é verde
                        verde marear.

                       
*
           
                        Mar, cor de
                        cobre
                        espuma do delírio
                        livra-me
                        da praia, fogueiras
                        caem da lua, em gotas.

                        Estranhos
                        olhos de feras
                        habitam teu ventre,
dentes – ondas
mastigam sanidade de turista.
                       
Desenho círculo de anjos
                        voando como insetos
                        ao redor do mau olhado
                        de oito-olhos:
                       
liberdade fere
                        e refere –
e desejo livre.
                       
                        Memória do mar
                        no primeiro desdobrar-se
                        do coração em lucidez
                        na primeira lágrima
                        em prismas de areia.
                       

                        

10/17/2013

Sol negro

A luz do sol
            perturba:

            Injete bílis negra
            até a raiz das penas amarelas
            contra a transparência vítrea
            da vida, do ardor nos olhos
            até a escuridão se enovelar
            ao redor do tempo –

            por dentro dos túneis da cidade
            dos vasos sanguíneos,
            da capilaridade do terror –
           
            Um redemoinho
            em forma de coração
            com poeira
de sol carbonizado.

*
Encubra o sol
das tuas pupilas na praga-nuvem e na praga-vento
interrompido por um denso raso
ou fino profundo,
empalidecido até a brancura:

que o sol se sufoque de todo o céu.

*
Que o sol se refugie
além da chuva mais forte
como um trem descarrilado
em flashes tremendo vagamente
através de todo o ar
e fluxos de duplas incríveis de fogo vermelho-violeta
bifurcadas ou em zigue-zague,
ondulando no mesmo instante
e duradouras no olho por pelo menos meio segundo:

Mas que seja um preto seco véu
que nenhum raio de luz do sol possa penetrar
ao sol alimentado pelo betume de todos os caminhos
ao sol holofote abstrato que vai te engolir na rua sem saída
através do imutavelmente sombrio abril,
por meio do desanimado maio
e escurecido no junho da manhã,
ou depois da manhã:

cinza

envolto assim.

E isso é uma coisa nova, e muito terrível.

*
O novo sol
parece, em parte, como se fosse feito de fumaça venenosa –
existem, pelo menos, duzentas chaminés de fornos num quadrado de dois quilômetros em cada lado de mim.
Mas a mera fumaça não sopraria para lá e para cá dessa forma selvagem.
Ele olha mais para mim como se fosse feito de almas dos mortos, os que ainda não estão fora, aonde eles têm que ir, voando aqui e acolá, duvidando, eles mesmos, do lugar.
Você sabe, se é que há coisas como almas
e se algumas delas assombram lugares onde foram feridas, deve haver muitas acima de nós:
sem chuva para falar e nenhum vislumbre de azul











10/13/2013

A POESIA ESCRITA POR MULHERES























A POESIA ESCRITA POR MULHERES


Tua delicadeza feita de garras
serve suaves lianas que envolvem
o corpo, o pensamento e seus sepulcros
num abraço de cisne e de serpente.

Consideras com cuidado a carne: é tenra,
pensas, é tenra, dizes delicada
e acrescentas que tem a soberbia dos deuses
e veste a inocência da lã;

é tenra, dizes, enquanto as mãos
passeias de enfermeira pela pele
e os dentes entremostras, aguçados,
naquilo que entenderei como um sorriso

- desses que são a última lembrança antes do sono,
o primeiro calor após se ajeitarem as cobertas,
a mão deslizada pela testa
              antes de me cravares a dor aguda e luminosa da morte.


(Jorge Wanderley, Adiamentos - 1974)

10/11/2013

                                   Lembranças
                                   de relógio parado
                                   casa entre lagos
                                   mãos sobre a grama
                                   pássaros em círculo.

                                   Tecendo lembranças,
                                   a farsa da memória.
                                  
                                   Farsa de memória é sangue
                                   do tempo:
                                   o real nos pulsos suicidas

                                   das lembranças.

10/06/2013

Kiss me to build a dream on (sobre a foto daquele que não era Herzog)

Kiss me to build a dream on


            Na sala, uma mesa redonda ocupada por um grupo de indivíduos distintos. Uma comissão da Comissão Especial para a Vigência da Inteligência. Cada um deles exibia o orgulho por estar ali, eles não tinham se dedicado tanto à toa  - aliás, por uma promessa que lhes fora feita quando ainda nem sabiam que diabos era uma escola. Desfrutavam da vitória após terem sido aprovados em concorridíssimo concurso, montado por outra comissão de especialistas em selecionar os mais capazes, os mais aptos, os mais confiáveis, após análise detalhada das curvas de desempenho num requintado exame de conhecimentos específicos. Pelo menos viviam numa sociedade aristotelicamente meritocrática, em que os iguais reconheciam seus iguais.
            Naquele momento, eles analisavam uma fotografia projetada na parede da sala escura (diga-se entre parêntesis: tratava-se da foto de um homem nu, com jeito de prostrado, olhando para o chão – não como os humilhados bíblicos, por que estes olham candidamente para o céu – por simples e puro cansaço, aparentemente não pensando em nada, e sobretudo não em ser erigido como herói alguns anos depois – porque se fosse isso ele estaria pagando um preço alto demais – e muito menos pra contribuir com a circulação de algum jornal sensacionalista. A foto apontava ainda para outro alguém, este atrás da câmera, atrás da lente, focalizando a coisa, uma espécie de olho que devassava o homem nu, situado no mesmo ponto de observação que os futuros observadores da fotografia, dentre os quais a dita Comissão Especial para a Vigência da Inteligência, os leitores de jornais e os historiadores do futuro).
            A pessoa que presidia a Comissão, ajustando os quatro óculos de invulgar modernidade, iniciou a sessão:
            - Hoje espero que vocês me apresentem seus relatos e relatórios, reitero apenas minha única exigência: sobretudo não me venham com o óbvio, vocês não são pagos para isso. Um intelectual nunca deve dizer o óbvio, isso é o que a Academia nos ensina, o óbvio não é digno de crédito, desqualifica e denega a nossa especialidade. Se a mediocridade imperante também não diz o óbvio isso não é problema nosso, mas como diria o grande assessor de Capanema, e nas horas vagas poeta Carlos Drummond de Andrade, deixemos pra lá os inocentes do Leblon.
            - Eu observei um detalhe intrigante na fotografia em questão (aqui o leitor visualiza uma pessoa especialista em relojoaria). Mas o homem visado pela câmera usava um relógio antiquado, mesmo para os dias em que se passou a sessão fotográfica: ou ele era um desleixado completo, ou alguém vindo das classes proporcionalmente mais desfavorecidas pela sorte. Tudo o que pude então concluir é que não se trata de um milionário, uma vez que este reúne duas qualidades que nosso objeto de estudo não traz, riqueza somada à preocupação com a imagem pública.
            A pessoa especialista em nutrição pede a voz;
            - Não pude calcular exatamente a quantos dias o sujeito alvejado pelas lentes não se alimentava. Isto porque ele apresenta um curioso estado de magreza, que não se sabe se correspondia a seu estado natural – é lamentável que não possamos vê-lo ao vivo, porque então uma simples olhadela em suas pálpebras nos revelaria se ele estava ou não anêmico – enfim, não sei se ele era magro ou se tinha sido emagrecido.
            Tomou a voz a e vez a pessoa especializada em história, admiradora que era da obra de Foucault:
            - Não acredito que vocês se percam nestas especulações irrisórias, e nem sequer toquem no foco da questão. Por coisas como estas que sempre afirmo que nossa sociedade iria à falência não fossem os historiadores. O mais importante é o cenário meus caros! Vejam aquelas paredes rachadas e úmidas, aquelas traves de metal sobre as janelas, em estado evidente de enferrujamento! O lugar, naquela época - e já se vão muitos anos aquela, eu ousaria dizer, pré-história – já era histórico, já tinha as marcas do tempo, imaginem o que ele seria hoje! Chego a sentir o cheiro de musgo e mofo que emanava naquele ambiente. Precisamos descobrir imediatamente o local iluminado pelos flashes pra construir um museu histórico, um espécime em estado bruto da engenharia do passado longínquo, pra que nossas crianças conheçam seu passado. Êta povinho sem memória!
            A pessoa que presidia a reunião retomou a voz:
            - Hora do intervalo! Peraí pessoal, deixa eu resumir nossas conclusões técnicas (amanhã vou mandá-las pros jornais, senão as pessoas vão ficar sem assunto quando forem ao Beirute): a pessoa em questão não era nem pobre nem rica, não era gorda nem magra, não se pode dizer se estava ou não passando fome, estava num lugar histórico mas que não sabemos exatamente onde ficava... Tem mais alguma conclusão a que não chegamos?
            Diante do silêncio, a reunião deu-se por encerrada. Todos saíram da sala, mas esqueceram ligado o aparelho que projetava a imagem fotográfica na parede. Após longos minutos, o homem nu começou a se mexer – como fazem os peixes num aquário muito pequeno – até que conseguiu sair da fotografia. Então, dirigiu-se ao aparelho projetor, apertou um botão e desapareceu da sala.     





9/30/2013

Deito-me na grama e meu corpo se enraíza na terra, puxado para dentro do lodo, sangue e carne misturam-se à seiva e ao verde vegetal e disso brota uma nova árvore, uma espécie impossível mas real repleta de inúmeras flores com pétalas variadas, desconexas – como ruínas dos manuais de botânica. Essas flores pendem dos seus galhos e brilham noturnamente – vista à distância essa árvore parece conter em si uma forma incoerente de planetário, um tipo nascente de harmonia para um cosmos que não está no passado e sim no futuro. Ela transpira um silêncio tranquilizador e uma ilusão de algo que adormece: muitos animais vêm repousar à sua sombra. De suas folhas e raízes se produzem chás calmantes e alucinógenos. Mas, com meu corpo fertilizando no lodo, essa árvore dói, suas raízes se agarram ao meu peito e não consigo me acomodar e perco o sono. As garras se espalham em meus pulmões e são agulhas e quase não consigo respirar. Se me movimento, a pele é rasgada: tenho o corpo mais riscado do que um mapa antigo e todo rasurado. Não sei como será quando essa árvore começar a dar frutos e eles caírem no solo: arderão como ácido, corroendo mais a minha pele? Ou aliviarão, como mãos que afagam, essa tarefa que não escolhi e para a qual não fui preparado?   


9/22/2013

Perpetuamente encoberto por nuvens corrosivas e densas: a dor e a luta criadora enviam sinais para captar em troca alguma ressonância que aplaque nossa condição ínfima: já que a proximidade do sol interdita a visão direta: o chão cavernoso de Vênus: o universo é um palácio de vozes desejantes:
espelhos em forma de conchas capturando ecos obscuros de nossa condição: sacerdotes bendizem, exorcizam, dizem que curiosidade é pecado: que os ecos denotam um serpentário e que a febre vem de veneno e não do perfume: ainda assim nós caímos, indefinidamente – curtindo a sedução de uma língua onde palavras sempre estão por nascer: e colhemos os frutos impossíveis que brotam daquele solo inóspito e nos tornamos a carne daquele solo: só lamentamos que não sejamos mais fortes para provar toda sua força corrosiva e renascer, perpetuamente:


que vontade louca e muito humana de se mandar dessa terra sem graça, com leis e com reis. 

9/14/2013

A clivagem é real: de um lado, o cotidiano, de outro você que tá vendo é quem me diz. Desde o começo, os observadores viram os cometas com sinal de mau agouro, porque eles simplesmente atravessam a geometria desejada por testemunho da racionalidade do mundo, como arranhões na consciência de deus. Só que é o seguinte: quando eu enlouquecer não será como essa situação patética de pessoas tentando se agarrar a qualquer pedaço de realidade, como se despencassem de um barranco e misturassem terra e sangue em suas unhas, despertando piedade de quem está acima, aparentemente seguro no chão. Não: vai ser de uma vez: não interessa mais se as portas estão abertas ou trancadas, não interessa mais saber se você foi rude com a vida ou a vida foi rude em você: se o mundo desmorona à sua volta, você deve desmoronar mais profundamente, até romper o chão e abrir uma cratera, se as pessoas enlouquecem, você deve procurar a loucura mais definitiva que faça, da loucura alheia, prova de sanidade, é deixar que as pedras que guardam estilhaços de sentimentos sejam polidas na água fria de um fluxo qualquer no éter cósmico até se tornarem pontiagudas e perigosas, que todos se mordam e arranquem pedaços de carne com seus dentes de granito, você deve assumir a sua condição e o seu destino acéfalo e chutar a parede até que as bocas que vomitam pequenas ofensas sangrem nos seus pés, você deve ser o primeiro a reconhecer que todos os muros gravitacionais são indestrutíveis e se afundar em gestos tão irrisórios de doido que bate a cabeça e que as manchas de sangue não transmitam qualquer mensagem, isso se ainda te resta alguma dignidade.

9/09/2013

Ventania vermelha por dentro
            Da alma, torvelinho
            Vazando as pálpebras
            O tempo lacrimeja orvalho
            À superfície vazia de rosto.

            Até pensaria ser um fantasma
            Não fosse a faca
            Estilo corvo
            Enfiada na carne.


9/04/2013

Alguns espelhos do tempo

O campo de visão se fecha, mas não no sentido habitual de quando fechamos os olhos, de cima para baixo e de baixo para cima, mas lateralmente. Os olhos são ampulhetas que funcionam numa lógica não gravitacional, a areia, a passagem do tempo, corre dos lados para o centro. A poeira vai além, chega até a mente e onde o corpo faz conexões com a alma. Apago-me. Não sei ao certo se ainda enxergo qualquer coisa quando começo a cair. Acordo com o queixo aberto, dentes molares arrebentados. Que despertador foi esse que usaram para me acordar, uma porrada como se estourassem bumbos por dentro do cérebro: é minha cabeça batendo no chão.

            Caio em mim como alguém que cai em si.  

*

No dia em que Napoleão nasceu eu acordei com uma pequena dose de mau humor. A luz atravessava Brasília como uma névoa translúcida – um clima de sonho. Eu era perseguido, em cada fantasma havia um coração alheio que era meu também e estranhos pulsavam em meu coração. Alguém planejava um atentado terrorista contra a biblioteca da universidade enquanto um jornalista ensinava como se precaver contra a meningite: poder é perversão de senadores dendrofílicos. Nunca me esquecerei desse dia em que Napoleão nasceu, acontece sempre, sempre retorna – era uma terça-feira. O calendário às vezes me deixa doido da vida.  Se Napoleão Bonaparte era um louco que acreditava ser Napoleão Bonaparte, eu é um poeta que acredita ser um louco desejando ser um poeta louco à deriva pelo calendário enquanto se escreve isso, numa terça-feira, dia de nascimento do Napoleão Bonaparte na sua loucura, leitor.

8/25/2013

Onça anda em círculos
            na jaula abafada do zoo
e parece neurose:

            (movimento interrompido
            torna patético
            mesmo o animal mais lindo)


            *

            Quando o tempo se enovela
            Dando voltas e voltas em si mesmo
            Isso deve ser visto com a atenção de um eclipse –
            Mundos são criados
            Espirais giram palavras até sedimentar
            Uma dor, um satélite, uma forma de vida:

            A onça anda em círculos
            Por dentro da jaula –
            Seus rastros desenham
            Uma rosa
            Uma galáxia
            Uma pulsação silenciada.
           

           


            

8/20/2013

Espero tornar-me um louco muito mau

Os influxos de um planeta todo verde
            por dentro, no sangue.

            O sangue circula do coração
            aos olhos e alimenta os movimentos
            das mãos que escrevem
            circulando em torno das palavras
            à espera de que, enfim,
            não sejam mais necessárias como placebo
            para filhos de um planeta muito leve,
            muito lento, todo verde e vazio
            por dentro.
           
            Tento contornar a solidão
            com uma rede de palavras
            mas caio atravessando-as e quando me dou conta
            dou de cara com o sempre mesmo chão
            paradoxalmente duro e inexistente
            um chão cortante de esmeraldas pontiagudas
sem solidez.
           
(De vez em quando a vida manda notícias
com uma lâmina verde na jugular

            escrevo para não ver
            o que existe e é real:

            Nada.

            *
            
            Caem gota a gota
            no meu sangue
            quase estrelas muito silenciosas
            e muito mórbidas
            elas corroem a língua, vampiras
            brincam de carrapatos na garganta
            ou sanguessugas crescendo por dentro
            do cérebro:

            e meu corpo explode como um grotesco
            pacote de fogos de artifício –
            e meu corpo não interessa nessa comédia
            a não ser enquanto máquina de expelir letras.

            Depois elas tomam o primeiro arame farpado
            como andaime
            e sobem aos céus, aos planetas
            e todos os outros rudes maquinismos
            obras de um deus de mau humor
            que elas vão alimentar de amor
            com o sangue anêmico que me foi roubado
            e elas flutuam, como pedaços de carne
            penduradas em ganchos
num açougue celestial:

            - é a primavera que está chegando?

            e elas me deixam falando sozinho.
           

           

            

8/19/2013

O que é ser um outsider?

O que é ser um outsider? Não, não pretendo escrever um tratado de sociologia. Seria muito simples supor a existência natural e inquestionável de pessoas que praticamente nascem do lado de fora do mundo e da sociedade, as quais serviriam como o perfeito antípoda de toda a sociologia tosca que funda nossa ficção social mais valorizada: a realidade. Não acreditaria nesta ingenuidade. Por isso, não pretendo fazer aqui uma palestra, em tom professoral, sobre um assunto tão sério. Tão sério que merece algo a mais do que as nossas nobres instituições acadêmicas e correcionais têm a nos dizer. Ser um outsider é algo muito, muito sério. Seriíssimo! Ver as coisas do lado de fora chega a ser uma condição sine qua non para minha existência. Não consigo sentir o prazer reconfortante dos ninhos formados por grupos, em que o calor dos corpos alheios me esquenta e não procuro mais nada. É incrível como, nos dias de frio, entendemos melhor o que é a preguiça que nos impele a participar de grupos. Fazer parte de grupos é, talvez, depender de alguém para ter os seus pés aquecidos – e, no máximo, deleitar-se com aqueles que não possuem a mesma sorte... Entretanto, ter os pés aquecidos é um incidente que, na maior parte das vezes, não se perpetua senão por alguns curtos momentos de ingenuidade, seguidos de contendas homéricas pelo comando do cobertor que deve manter o grupo bem aquecido. Sim, estar do lado de dentro é um prazer leviano que dura menos que a maioria das drogas existentes do mundo! Ah, fazer parte de um grupo: que crença fabulosa! Fora estes momentos de ilusão, nunca consegui ser alguém que estava dentro de nada. Nunca entendi nada a respeito daquelas doutrinas mesquinhas que impõe a todos a estapafúrdia ideia que, para sermos normais, devemos estar incluídos. Incluídos! Ora, vejam só! Que visão nauseabunda do paraíso da normalidade social! Algo muda em meu estômago quando penso nisso. É muito indigesto pensar que alguém realmente acredite que sua normalidade dependa do aval de um grupo que tenha a autoridade de dizer quem é você e se você é confiável, etc. Ora, voltemos logo ao início! O que é ser um outsider? É partir do pressuposto que você é um igual. Sim! Nossa bela e tosca sociologia é que, de modo quase sofístico, inverteu os pólos da maquinaria. Explico: muitos dizem, com sua longa experiência em grupos, que estar do lado de dentro é ser igual. Igualdade entre os iguais, desigualdade entre os desiguais. Que tolice! É justamente dentro de grupos que você é e sempre será desigual. Dentro do cobertor aquecido de um grupo, você será ou o dono da coberta, ou o que aquece os pés dos que entram, ou aquele que chega com os pés gelados, implorando para ser aquecido. Isto implica toda uma complexa hierarquia! Você nunca entrará no cobertor e poderá ter a liberdade sobre o cobertor! Quanta ingenuidade... O mais cômico desta explicação é que os mesmos doutos, com vastíssima experiência em grupos, dizem, em tom resoluto, que todos aqueles que não se encontram em grupos – os outsiders, portanto – pensam que são melhores que os outros, mas vivem como seres pré-históricos, prontos para serem engolidos por mamutes. Que pitoresco! Mais gargalhadas, pois isto merece chegar às lágrimas de tanto rir! Termino minha já confusa explicação: é exatamente o outsider, por não se achar melhor que ninguém, não vê nos grupos a salvação para nada! Ser um outsider é, quando muito, ser um igual, porque o outsider entende não haver grupos, hierarquias ou outras drogas pesadas de nossa bela e tosca sociologia realista que nos façam acordar! Acordar é um ato solitário, que acontece quando você vê o mundo do lado de fora! É perceber que você não irá para nenhuma cela especial, mesmo tendo doutorado – enquanto os verdadeiros “doutores” nunca entraram numa escola; é ver que a maior parte das pessoas de seu convívio virarão a cara para você quando for conveniente; é saber que, de algum modo, as belas parábolas sobre o prazer da desigualdade são, no máximo, fruto do sado-masoquismo de uma meia dúzia de escrotos viciados em dominar – tal como aqueles que têm como profissão torturar uma pessoa até o limite de sua existência, que conseguem realizar o sonho de, enfim, se apropriar de alguém... Ser um outsider é, enfim, entender que todos nós, por mais que tenhamos a ilusão de fazer parte de grupos, estamos soltos em campos glaciais, vivendo em risco a todo o tempo. Por isso, ser um outsider é apenas ser ignorante. É querer ser poeta, mesmo sem saber falar ou escrever. Ser outsider é ser humano.

8/17/2013

Todos um dia vão cair


Ismália vai à lua –
                cai no muro.

                Puta vestida de onça
                sentada em desolação
                de gasolina me pede um cigarro
                - não fumo.

                Um caminhão atravessa
                o céu de cachaça envelhecida
                no carvalho:
                hagiografia de coveiros
                e cracudas fazem amor no cemitério:

                - Entre o pernil e a vida
                o morto ficou com o pernil.
               
Temos ainda a procissão
                o andor é estudante e nossa senhora
 jovem envolta em lençol com sêmen.

                Protege-se no sarcasmo o pensamento dividido
                a oração de um cético
                na igreja só para abrir trilhas no facão.

                É tudo assim
                tão irrisório iridescente
como a ilusão de um desejo alheio:
               
                A língua furiosa do amor e do desamor
                embriaga os mitos.
               
Eu, vampiro, alimenta-se
                do pó dos muros.
               
Ismália vai à lua –
cai no rio
                fermentando de vida.