4/22/2014

fragmentação

(Obra de Artur Gormley)





/por Nuno Rau/



tenho escrito poemas
aos pedaços, espalhados
por e-mails, contra-
capas, guardanapos, mensagens
instantâneas, na verdade
qualquer pedaço de papel
que me olhe com sua interrogação
branca, seu jeito
de esfinge dando bandeira em cima
de um móvel, mata-
borrão de palavras fazendo
pose de papiro, tenho
escrito poemas
em pedaços que não quero
juntar, tenho pedido às canetas
que falhem, às teclas
que emperrem quando
envio cada fragmento
a um destino diferente, rasurando
os vínculos, perdendo
a linha como quem deleta
um telefone importante, tenho
esperado que os amigos
se distraiam com as amenidades
com que disfarço o contrabando
das palavras. Tenho lido
muitos poemas e sinto
tédio frente ao presente
que ainda pretende
chocar quando retiro
os andaimes e o impacto
não penetra além
da película, imagem. Então, pra ver tudo
melhor arranquei
meus olhos e joguei no fundo de um copo
sem fundo - é de lá que passei
a interrogar o abismo
dos céus como um burocrata afogado
em papéis velhos enquanto anjos
sem pedigree entoam salmos
punks de três acordes, distorção
amplificada e loop
frenético diante da parede
transparente onde rabisco
grafites com uma tinta
tão negra que a grande noite
dos séculos não vai deixar
ninguém ler. 


4/21/2014

Decompor, dissolver, purificar

“Disse Jesus: Mostrai-me a pedra que os construtores rejeitaram. Ela é a pedra angular.”. Evangelho de Tomé


          


O olho tem células para ver o breu. Por dentro das pálpebras fechadas, o que ilumina a cena é o desejo. Uma luz diáfana, um véu de orvalho, uma água-éter que abriga o meu duplo. Ele partiu de mim para esse lugar em você, que não tem lugar no mundo. Seus olhos fechados como duas órbitas lunares em minha imaginação. Eu poderia me comunicar com ele – algo dessa luz chegaria até mim? Naquele momento eu provavelmente subia maquinalmente os degraus, ou me deitava tentando afugentar pensamentos de quem vive no lado escuro da estrada.

            *
Depurado em sua música muito específica – uma música assim como descer e subir escadas em silêncio – o chumbo que respiro se rarefaz em nuvem translúcida, uma nuvem que sempre está chegando, pressentida como algo que me passa – como a mente pulsa no coração quando acelera e é sentido em outra pele. Onírico, na varanda um leão vermelho observa a pedra angular.

*
            Ser sonhado por uma flor. Céu dourado amalgama-se ao rosto – uma pedra vermelha dissolve a imaginação, volatilizando a poeira cinza depositada no fundo entristecido da vida. Meu coração reluz como um ouro paradoxalmente leve e gratuito, o ouro sonhado pelos mágicos que almejavam a amizade entre o cordeiro e o leão, a humanidade renascida. Ser sonhado pelo véu mais puro, em silêncio, de mãos dadas, respirando o olhar mais cativante que te põe em nuvens. 


            

Como fazer um poema neobarroco


Coloque num saco palavras orgânicas, principalmente do organismo feminino
Útero, ovário, vagina, hímem, seios, gândulas
Acrescente nomes de animais, principalmente os estranhos
Ornitorrinco, lontra, camaleão, dragão
Adicione imagens católicas
Santos, asas, anjos, inferno, diabo
Misture ações oníricas
Flutuar, girar, transparecer, alongar, voar
Crie uma persona de mulher jovem, bruxa, punk, super sexuada
Sacuda tudo e jogue na tela do computador.
Faça amizade com as pessoas certas.
Deixe a fome por afirmação de identidade agir.

Seu poema neobarroco está pronto.

4/13/2014

 Ter que lidar com a própria mediocridade – talvez isso não fosse matéria de lirismo. Miséria emocional burguesa, essas coisas. Vá pro cinema, passeie ou fique em casa, deposite sua dor em contas alheias mediante ameaças de choros histéricos. Apague a luz, abra a janela, acenda a luz, feche a janela, vá até a estante para verificar se o livro ainda está lá, abra a mala, sinta o cheiro de papel velho, pergunte-se quando tudo começou, quando você conheceu o Medo.

Derrame o vinho nos degraus, autoconsumir-se não é inebriante. Veja o sangue na calçada, brotando entre as raízes que rompem à força o concreto armado e se debruce sobre as flores pálidas e estrelas apagadas atrás de monumentos, mas não confunda sua solidão com qualquer evento natural ou cósmico. Procure algum amparo mentiroso em qualquer místico anacrônico. Fique sabendo que quem ama e exige atenção ao seu amor causa tanto mal quanto quem odeia.  E então constate, certamente o Medo chegou antes: antes da mala, da janela, da luz e da estante, antes da miséria emocional burguesa e seu lirismo. Tome ar, respire fundo e mergulhe. Mergulhe. E mergulhe. 

4/05/2014

Pra dizer adeus

entre os bichos de estimação, prefiro
hiena, pantera e leopardo.

o sol se põe no éter líquido
tragando consigo noite adentro
os tristes predadores 
e solitários.

o vazio do espaço é de natureza viscosa, lenta
e toda chama sem sombra se derrete num verde-morte
de astros negativos, ferruginosos:
ainda assim alimento as feras
que sabem respirar a nãoluz das cavernas.

e ao sol que se queima à noite como um grito
a este sol o coração conspirador está aberto: poeira
de estrelas imersas em tempestade
de areia em deserto arranhando a pele de constelações sensoriais
e o sangue de lento e breu desenha um planetário no peito
com muita fome por dentro, e subversão sabotando âncoras.

meu coração se expõe como a nervura de caninos muito afiados
sujos do sangue de pequenas luas e animais indefesos
porque acreditei que seria mais lúcido
com a pele toda queimada de fogo negro, do mar negro
noturno onde o sol se afoga toda noite.

e qualquer um enfia a mão por dentro do meu peito
mãos doídas de maçarico, do fogo verde da melancolia –
e no céu sem estrelas entrevejo um jovem sendo espancado até a morte
uma noiva viúva à espera do noivo sem unhas
um menino amarrado em árvore para o fuzilamento
e meu amor lacerado por desinfetantes
como se eu fosse uma doença fatal.

acreditei que assim seria mais lúcido,
mas toda pessoa diurna se enovela como um cofre
no porão de um navio náufrago em turbilhão anoitecido.

a pessoa diurna é onde um segredo morrerá para sempre
e se obscura e caverna com seus animais domesticados,

e é assim que meus bichos de rapina se voltam contra mim
como se eu os tivesse trazido em armadilha
e sou todo roído, dos pés à cabeça, por dentes noturnos
e o sol cai numa chuva ardente por dentro do que digo.