8/31/2011

No fundo do convento, um jardim – depois do jardim, vemos um vale coberto de mato virgem e mais adiante encostas de morros com casas: varandas, roupas secando, carros velhos nas garagens. O jardim é dividido em três patamares de forma retangular, separados por muretas de concreto carcomido. No mais alto, alguns bancos que devem, um dia, ter sido azuis. Nos três níveis do jardim, a grama seca tem tons amarelados, de palha, em meio ao verde-pálido. No mais baixo, um fino cano metálico azul, vertical, parecendo um caule decepado, irriga a grama, sob o sol da manhã. Girando rapidamente, o irrigador esparge água, jogando grandes gotas para o alto e para todos os lados. Forma-se sobre o irrigador uma cúpula, uma esfera pontilhada de gotas que brilham e se apagam. Cada gota faz uma viagem veloz do caule de azul metálico ao alto, do alto gira num arco lateral e enfim cai sobre a grama. É esse movimento que, quando visto como um todo, dá a impressão de que observamos um lustre formado por vagalumes líquidos. A luz da manhã, oblíqua, entra em cada gota, fazendo dela um tipo de cristal efêmero. Não vemos o caminho que a luz faz antes de chegar às gotas: é como se ela viesse de dentro da água. Por trás da cúpula assim formada – uma flor abstrata – vemos uma árvore frondosa, para além da árvore, o vale com seu matagal e seus bambuzais, mais além – a cidade. Um tecido diáfano criado pela dança da irrigação funciona como um véu quase transparente sobre a paisagem, quando a miramos usando as gotas de água que giram no ar como foco. O mundo, assim, é revisto novamente: tudo muda de figura quando olhamos com atenção para um irrigador azul e suas pétalas de água sob o sol oblíquo.

8/28/2011

passagem


I
o barulho das máscaras caindo
me deixou surdo, não há nada
debaixo do chão e apenas
alguns mícrons nos separam
do abismo, mas ninguém esperava
o baque surdo de tantas
máscaras

as orações que eu escrevia, ela nunca
suspeitou que eram para o deus
ninguém, porque no fim, como já
desconfiava, ninguém viria me salvar
a pele como divindade que não perdesse
a lucidez enquanto o verdadeiro rosto
aparecia

II
vou deixar a cidade’, ela disse, ‘de vez
em quando as coisas se perdem
de vez
’, as cores deviam ser doces
e nunca soube porque elas ferem,
eu disse contraindo os olhos como sempre
faço quando minto,

mesmo tentando
pôr os cinco dedos por entre as barras
do código de barras, daí saber que não
é uma janela nem uma saída
da embalagem dos dias repetidos, avenidas
tristes, raptos de sentido, céus sombrios
de um verão iluminado

III
em que ninguém sabia o quanto de real
traziam os versos que escrevi nas margens
daquela embalagem

O Livro segundo o poeta

Quando o homem criou a palavra, ela se desprendeu de seu criador. Jamais o homem reencontrou a si mesmo; sempre encontrou em si uma dobra indiscernível entre as palavras. Por isso, o homem criou seu maior erro: deus. Deus era, então, o criador da palavra, que teria tirado o homem de sua essência. Mas, ao mesmo tempo, o homem depositou em deus a confiança em que ele iria juntar novamente criatura (palavra) e criador (homem). Assim, deus teria a tarefa mais difícil de todas: a de escrever o Livro. Nele, estariam todas as palavras que foram faladas, e que serão repetidas para todo o sempre. Mais uma vez, o homem escreveu em palavras aquilo que deus, em sua tarefa infinita, deveria fazer. Ecce libro. O mundo jamais foi o mesmo. Todas as palavras estavam, enfim, ditas. Com Ele – o Livro – o homem teve novamente a fé. O homem acreditou que, agora que tinha o Livro, que a palavra estava sob seu poder. Mas, a palavra, filha de Prometeu, sempre soube fugir de seu criador, para muito além do Livro. O homem teria, por sua vez, perdido a fé. Mas a fé não está em deus, que nunca conseguirá juntar o que o homem, felizmente, separou. A fé está em cada um, que, no momento em que se põe em palavras no espelho, sempre encontrará outro. A fé existe, apesar do Livro, apesar de deus. A fé está na redescoberta diária da dobra indiscernível da grande criação do homem: a palavra. E, pela palavra, acredito todos os dias em seu poder, em sua glória, em sua beleza. Um dia, a palavra sobreviverá a todos nós. Desta maneira, dedico-me a ela como um monge, como se minha vida fosse uma oração. Gostaria de ser poeta. Mas somente a palavra o dirá, se o quiser. Assim seja.

8/27/2011

algumas ironias













algumas ironias

____________________________



          (a felicidade plena)

quando eu tiver um loft novaiorquino

.*.


          (o amor pleno)

doze ninfas dançando ao redor de minha preferida

.*.


          (o sexo pleno)

quando eu tiver todas as beldades da cidade,
sem ter que pagar por isso
(nem tempo programado)

.*.


          (o escritor maldito)

tem tanta gente querendo ser diferente, que o diferente se tornou
igual, é uma peste de gafanhotos, dessa forma teremos que voltar
a rimar amar com luar.

Ponto Zero

É preciso
congelar o momento
refrigerar a alma
petrificar o passado
parar.

Fazer da vida
um ponto zero
para poder,
simplesmente,
continuar.

Não me diga nada,
não mais ouvirei.
apenas em meu futuro
devo
caminhar.

Não sei para onde irei
mas vou com a certeza
que irei hoje
apenas ao longe
recordar.

8/25/2011

O Psico-Sacerdote Oito-Olhos Fala: (poema tirado de um email crente)

Independente "lixo humano" desconhecido por quem só teve a oportunidade de ver fotos, curtir os talentos inerentes como se a vida pudesse ser vivida através do "faz de conta" e drogas na falta de família artísta-SENSÍVEL, amor não, Isso é fato.
Porém quem tem de visitar o próprio inferno que ama deveria ser mesmo sinônimo de LIXEIRA Em decomposição! E dói muito passar!!!
Ninguém opta por lixo, ser humano quer ir para a lixeira...entretanto, a minha maior intenção é a de pararmos de olhar o cachorro faminto que vê o frango girando na assadeira do açougue ao alcance de sua boca. Lutar contra o ser humano, lixo descartável(sem chances de reciclagem).
Eu sou prova real com tantas lutas e hipocrisias que reconheceram JESUS CRISTO COMO SEU SENHOR E SALVADOR.

Sou SIM,não por opção,mas,por reconhecer JESUS, contudo,o apelo é maior, foi por opção,fraqueza ou demônios.
E ainda se sentir bem achando explicações científicas razoáveis: como alguém pode se dizer feliz cristão, é sinal de que todo sofrimento serve.
Da lixeira em que se colocaram nessa vida através de Cristo Jesus-CAMINHO,VERDADE,E FALA SÉRIO!!!
FILOSOFIAS BARATAS...!!!
VIDA REAL,
Ser Cristão é ter certeza sozinhos com as escolhas que fazem.
NÃO INTERESSA O QUE LEVOU AS PESSOAS QUE EU AMO(MESMO AS QUE EU CONHEÇO) A SE TRANSFORMAREM NUM LIXO HUMANO.

8/21/2011

Poesia, ou como produzir vazio no espaço


I
O espaço produz
vazio
entre cada linha
de minha
solidão.




II
Só existe poesia
quando cada palavra
se afasta de
si mesma e cria
uma vida
impossível


III
Olhar para o
passado
é produzir
vazio,
porque não são
as coisas
que não deram certo;
nossas ilusões
é que
não se concretizaram.

IV
Olho para seus
olhos
e vejo
uma alegria contida
uma saudade imensa
uma frustração evidente
uma vontade de repetir
o que fomos e
o que nem fomos.
Não, não podemos
voltar atrás:
nossas vidas
não são mais
as mesmas,
nós não somos mais
os mesmos,
o rio passou
Passamos.
Apenas o vazio.


V
Do vazio
sai a esperança
em forma
de
Poesia,
criando espaços
que me recriam
que contradizem
que me sobrevivem
Preenchem.
Por isso,
Escrevo.

8/18/2011

A minha Carta ao Pai

O mundo hostil: a beleza do céu que se tinge de dourado a vermelho, passando por um azul que mais parece o leito do mar: como a luz é frágil frente ao vento que luta por apagá-la com sua boca de múltiplas mandíbulas frias: você apenas queria ter feito um mundo menor, mais hospitaleiro para suas crianças. Dói vê-las partindo no escuro rumo ao horizonte, num rio sem foz, numa noite sem estrelas, cada uma segurando apenas uma fraca lamparina. Não há tempo pra secar os olhos. Você plantou sementes de fragilidade e elas brotaram como feridas, minúsculas, na torrente que alguns ainda teimam em chamar de cosmos.
Nesta noite sob uma luz estranha, pálida, uma espécie de demônio circulava pelo meu apartamento. Deu pra ver, de relance, o minotauro passando além do espelho. Barulhos de coisas se mexendo na cozinha vazia. Quem teria motivo para me rogar uma praga e fazer de minha vida um ritual de magia negra. Alguém mastigava os restos de comida e ria com a boca cheia de lixo. Não somos nada perto do mundo e suas razões, fomos expulsos (ou nos expulsamos) de todas as hordas. Remamos sozinhos e já não sabemos se o flutuamos sobre o rio, o vento, ou um céu de pontacabeça.
Com o pouco de calor que herdei de você, e que você por sua vez herdou de outros, preparo um leve equipamento de mergulho. Crio ao meu redor uma fina capa de silêncio que reflete o ódio e abraça o amor. Não sou tão frágil como você pensa.




8/11/2011

Pro meu livro de orações

Mar de águas estagnadas misturadas com betume sacos plásticos merda de crianças mijo de velhos bêbados e carcaças de caranguejos –

Alma, onde tudo vai parar:

Sonhos frustrados, livros que descrevem sonhos frustrados e livros que são sonhos frustrados quantas palavras
intrigas palacianas, o senador dá uma entrevista antes de entrar no avião, mensagens apocalípticas nos túneis da cidade.

Rezar é vomitar entulhos.
Rezar é falar devagar com a língua cheia de lama, cuspir alma pelos poros do corpo revoltado.
Eu gosta de brigar no trânsito. Eu tem razão. Eu é uma mala pesada que alguém tem que carregar e rezar não é pedir proteção ao Altíssimo
administrador de cartões de crédito, é abrir uma fenda no concreto-carapaça de Leviatã.

Só sabe rezar quem é soberano.





8/07/2011

Ele me disse, vem aqui, vou te mostrar uma coisa interessante.

Um pássaro voa devagar, um pouco acima de nossas cabeças. O pássaro tem uma cara estranha, meio que de peixe, olhos opacos, boca em círculo, três fileiras de dentes muito finos, afiados, longos: de madeira envelhecida. Uma mariposa começa a seguir o pássaro. Asas negras de rímel, grandes, movendo-se levemente como se estivéssemos num oceano, ou pétalas. O corpo, meio inchado, parece que vai explodir. Dá pra ver as articulações que trabalham de modo desorganizado. As pernas não ficam paradas, movem-se desencontradamente à procura do chão, como se o bicho estivesse caindo.

Ela não sabe que voa?
Peraí! Não é isso: olha, é ela que vai atrás dele.

Num impulso, o pássaro expande a boca e engole a mariposa. Ele não demonstra voracidade, fome, qualquer sinal de violência. É calmo, impassível como uma fera marinha. Dá pra ver a mariposa se debatendo, por trás dos dentes trincados do predador. De repente, o pássaro abre a boca e a mariposa voa novamente. Intacta.

Ainda não acabou, ela vai atrás dele de novo.

E acontece. Ela não foge, não quer sobreviver? E ele, não está à procura de alimento? Por que esse estranho balé que não causa prazer aos bailarinos – e muito menos ao público? O pássaro, como se estivesse programado para isso, abre a boca novamente e engole a mariposa. Pode ser algum tipo de hipnose. Dá pra ver as asas negras entre os vãos dos dentes de madeira. Só que, mais uma vez, ele solta a mariposa. Mas agora ela está com as asas quebradas. Viva, porém mal consegue voar.

O segredo da sobrevivência está no gosto. Ela não foi feita para se camuflar. Mas, se defende com o sabor intragável dos seus humores, expelidos no primeiro contato com os dentes do predador.

8/02/2011

Esquizofonia: Sinfronia da Alvomerda

Pus no meu quase nãousado outro blog (vertigemdevestigios) a Esquizofonia: Sinfronia da Alvomerda completa. só vou por aqui nos comentários os procedimentos que usei em cada uma das 5 partes. Já baixei a Sinfonia da Alvorada, agora é distorcer a música e trocar a ladainha do Vinicius de Moraes pela minha:

Composição de uma esquizofonia baseada na Sinfonia da Alvorada. O que está em questão: o oba-oba, o monumentalismo, a sacralização do Estado, a verborragia e a ladainha do Progresso. Os procedimentos: Parte 1: alterar aqui e ali pra trazer à tona o insólito, grotesco, encoberto. Parte 2: mudar alguma coisa pra pensar o verdadeiro herói do Cerrado, não O Homem e sim O Playboy. Nas citações de Lúcio Costa e Niemeyer (Horemheb e Aracnodactilia): distorcer as palavras para esquizofrenizar a paranóia do signo despótico. Parte 3: Hiperbolizar a hipérbole: megalomanizar a megalomania: o resulto é expor o seu irrisório. Trocar os locutores por locupletores, fazer o texto falar. Parte 4: Despojar, que no caso torna até mais insano, se é que isso é possível. No CantoCão Picotar as frases, fazer a sinfonia gaguejar. Parte 5: enfim, o couro procurando o nome da cidade de suas taras.