12/28/2011

Sangue de lobisomem

De onde vem tanta revolta, um dia sempre me perguntaram. É assustador te ver grunhindo na mesa do bar, toda uma atmosfera de insultos. E logo você tão gentil, logo você tão pacato com aquele rosto cheio de sombras. O velho vizinho meio esquizo às vezes me trata como se eu fosse seu neto e por aí vai. Então de onde vem toda revolta.
A verdade é que não sei e se soubesse talvez você não seria revoltado. Sou revoltado porque não sei o motivo da revolta ser minha. São figuras de admiração: Blake, Blanqui, a cadela Baleia, Ibn Arabi e algumas forças cósmicas profundamente dispersivas. A revolta tem a ver com furor analítico (um gosto pela anarquia): então quando digo figuras da minha admiração não é que sejam modelos existentes perante os quais se ajoelhar e sim que o milagre, o assombroso como força que te obriga a se maravilhar é um eco dessas figuras. Daria no mesmo dizer que ele é, portanto, uma admiração que se figura.
E também eu preciso entender que a revolta é um afeto de amor e não de ódio. A certeza de que somos mais do que isso. De que não existe o tipo do revoltado como tipificação, sobre o qual se lance uma luz. Que a única coisa polêmica que existe foi a liberdade. Não o surto de palavras vazias. Derramar ódio sobre o mundo: não é nada além do que tem sido feito por Oito-Olhos nos séculos dos séculos, amém. O amor do revoltado não é, porém, algo que perfuma o cotidiano sórdido. É mais aquela conversa de Maquiavel no Jardim Oricellari, de pássaros bêbados adormecidos na página de um livro – e como são escuras as páginas de um livro fechado.
Aliás, é a revolta que faz se ver o cotidiano como sórdido. O cotidiano não é sórdido em si mesmo. É sombrio aos olhos (de lince) do revoltado. E de onde vem o revoltado, perguntaríamos academicamente? Abandonemos as pseudo-explicações psicanalíticas, sem bem que a revolta pode mesmo ser uma doença. Uma doença que vem não se sabe de onde e emerge como desejo de ver toda a cidade sob uma nova luz, ainda não nascida, apenas vislumbrada no brilho súbito que brota e morre no coração obscuro dos revoltados – e todo coração é obscuro e a humanidade, sem cessar, repudia.

12/23/2011

Retificação

Ao contrário do que foi dito no Faustão domingo passado, Oito-Olhos não se restringe a aparelhos visuais (lupas, telescópios, microscópios, miras noturnas, lentes de contato, óculos, lunetas, colírios, astigmatismo e miopia, visão de raio x). É preciso entender a arte da penetração vocal das mentes para se poder começar a falar em Oito-Olhos. Gritos grudados na parede quente. Getúlio Vargas fantasmagoricamente em todas as salas na Hora do Brasil. Cid Moreira lendo a Bíblia. Pedro Bial lendo um poema apócrifo da Clarice Lispector. Vozeirões. Ainda mais que ouvido não tem pálpebra. Mas também vozes menores, feitas sob medida: vozes de parentes que te sacanearam ressoando pelas ruas, gritos esganiçados de cachorrinhos no apartamento vizinho, até a sua própria voz gravada e você dizendo que nem um otário: essa voz não é minha. Vozes que se dissolvem em ruídos e ruídos que se transmudam em músicas: o fundo musical de tudo, barracas de praia, shopping Center, espera ao telefone da central de atendimento (para quem não sabe, o inferno tem fundo musical). Além disso, quem ainda não percebeu que as palavras são microorganismos que fagocitam as almas dos despreparados, também ainda não sacou o alcance de Oito-Olhos. Ainda mais agora com a internet: estupro mental, trollagem de filhadaputinhas caluniadores, caixa de ressonância que faz qualquer fraco gritar como se fosse Hércules lutando contra os porcos selvagens endemoniados. E tudo isso em silêncio, explorando a maravilhosa invenção do deus Thot, como se pode ler na Wikipédia. Tua alma cheia de buraquinhos, pequenas mordidas, palavras cheias de dentinhos afiados. Também há o recurso da Alta Literatura. O Escritor que come lixo e o recicla ao contrário, soltando seus excrementos direto no receptor, já disseram que a mente é um papel em branco e o sujeito se torna um inteiro esgoto ao deslavar insultos sobre seus próprios delírios de grandeza, enfim: Oito-Olhos é multimídia e se Deus criou o mundo, Oito-Olhos é o editor. E sim, você pode dizer que não conhece Oito-Olhos, mas como diria Raulzito: Oito-Olhos conhece você. O que estou dizendo? Você mesmo é Oito-Olhos: não o dia inteiro, não em qualquer lugar, mas Oito-Olhos é parte de você e você sabe muito bem – conhece o milagre sem saber o nome do santo. Ser Oito-Olhos é uma coisa parecida com ter cheirado cocaína, bebido vodka ou ter atuado como pastor exorcista num rito da Igreja Universal.

Ps: Diante de tudo isso, fica a pergunta: como não enlouquecer? Algumas regras básicas: vomitar ao invés de cagar todo o lixo digerido. Fazer ao redor de si uma barreira sonora que não impede as vozes (não, não se trata de vidro anti-ruído), mas que as sintetiza numa música toda sua, uma oração que seja. Saber que Oito-Olhos não tem ego e muito menos confundir O Príncipe Míchkin com Dostoievski ou a cadela Baleia com Graciliano Ramos e Herman Melville. Saber que Oito-Olhos é real. Tão real quanto essa pessoa que aqui e agora escreve.

12/21/2011

Outro espelho do tempo

18
No dia em que Napoleão nasceu eu acordei com uma pequena dose de mau humor. A luz atravessava Brasília como uma névoa translúcida – um clima de sonho. Eu era amado e perseguido, em cada fantasma havia um coração alheio que era meu também e estranhos pulsavam em meu coração. Alguém planejava um atentado terrorista contra a biblioteca da universidade enquanto um jornalista ensinava como se precaver contra a meningite: poder é perversão de senadores dendrofílicos. Nunca me esquecerei desse dia em que Napoleão nasceu, acontece sempre, sempre retorna – era uma terça-feira. O calendário às vezes me deixa doido da vida. Se Napoleão Bonaparte era um louco que acreditava ser Napoleão Bonaparte, eu é um poeta que acredita ser um louco desejando ser um poeta louco à deriva pelo calendário enquanto se escreve isso, numa terça-feira, dia de nascimento do Napoleão Bonaparte na sua loucura, leitor.

12/16/2011

Mais um espelho do tempo

17.
É lento e adocicado e é lentamente que o cheiro de esgoto vai tomando conta da realidade inteira. Um mergulho, outro mergulho, por curiosidade, por revolta ou jogo. Almas fecais emanam gases mefíticos em fotografias e palavras cheias de ranhuras como se dentes curtos e afiados as tivessem roído, remoído, peidado, cagado, vomitado pelos dedos, expelidas mundo virtual afora e mundo fosse desde então eufemismo pra “grande cloaca”. O cheiro de esgoto te acompanha nas ruas, nas tardes anestesiadas: ele é lento e adocicado; impregna todo pensamento à flor da pele como se os corações sofridos dos meninos que sonham com assassinatos e vinganças bombeassem diarréia no lugar de sangue formando uma cúpula verminosa sobre o céu da cidade.
Mais ou menos como disse o filósofo: quando se entra num esgoto, o esgoto também entra em você. Não adianta polir um espelho com a mão suja de bosta.

12/13/2011

Mais espelhos do tempo

15.
O processo de decadência de uma pessoa não é corrosivo, é acúmulo – por excesso e repetição. Como os rostos mais estranhos sempre são reconhecidos. Como andar pelas ruas procurando um caminho inesperado e sempre chegar ao mesmo (placas verdes sem nome, nada inscrito: toda e qualquer cidade foi vista tantas vezes). Apesar de sermos induzidos a pensar numa pessoa andando e se desfazendo aos poucos, devido à imagem da queda, a decadência é uma pessoa que acumula pedras sobre pedras, pedras entulhadas nos bolsos, na mochila, nas mãos, na alma de lodo de uma pessoa curvada sobre as próprias pegadas marcadas na areia, ao infinito, nunca tocando o mar.
Decair é cair e cair novamente e novamente cair por dentro de si.
16.
Uma vida começa no mesmo instante em que outra vida termina. O fato de essas vidas estarem mutuamente encantadas em estado de paixão faz pensar em Marcilio Ficino quando poderia ter dito: o rastro brilhante de uma estrela que cai e o rastro brilhante de um cometa que sobe são como o espelho em que o tempo se mira e se apaixona por si mesmo. O tempo às vezes é um mágico triste.

12/09/2011

Espelhos do tempo 3

11.
Dias e meses se desdobram como sensações. Dirigidas. Latas de cerveja jogadas no jardim.
12.
Amarrado na poltrona. Fátima Bernardes entra na sala, segura minha cabeça com força. Estica minha boca enfiando os dedos nos cantos e puxando, para que eu sorria. Prende o sorriso colando uma fita adesiva entre a boca e a nuca: minha pele repuxada garante a expressão de felicidade. Como a pele é minha, pode-se dizer que colaboro com a situação. Fátima Bernardes tem unhas muito afiadas e é impaciente. Na pressa e na irritação, arranha meu rosto. Um filete de sangue escorre, enquanto sorrio.
13.
Entro no elevador com meu vizinho. Ele me diz por que você fica por aí com essa cara de assustado? Existe alguma coisa de anormal acontecendo? Ele se olha no espelho pra ver se sua imagem está boa e abre um grande sorriso. Seus dentes são de lâmina de aço inoxidável e na hora em que ele sai do espelho deixa um grande vazio, somente comparável ao vazio de tudo o que existiu antes da vida, tudo o que acontecerá depois da morte e o imenso vazio da presença insubstancial do mundo neste preciso momento.
14.
Quando eu começava a ser jovem, numa daquelas férias de verão, subi a ladeira de terra batida, segurando a vontade de chorar. Também não queria chorar na casa dos meus parentes. Era madrugada (tantas estrelas, como as que não vemos em Brasília). Fui pra trás do muro de uma casa em construção e, sob o pretexto de mijar bêbado, deixei as lágrimas correrem soltas. Não todas – algumas guardei e com elas fabrico esse espelho que agora apresento a vocês.

12/05/2011

Espelhos do tempo 2

5.
O telefone toca:
Dormia muito bem,
O aparelho.


6.
Entre peixe e visão
Refratada
Passa a flecha:

Quando estou onde estive
E não sou.


7.
Pedaços de pulmão
Oxidado
No ralo do chuveiro.
8.
Flores apodrecidas
Na vitrine da floricultura.

9.
O campo de visão se fecha, mas não no sentido habitual de quando fechamos os olhos, de cima para baixo e de baixo para cima, mas lateralmente. Os olhos são ampulhetas que funcionam numa lógica não gravitacional, a areia, a passagem do tempo, corre dos lados para o centro. A poeira vai além, chega até a mente e onde o corpo faz conexões com a alma. Apago-me. Não sei ao certo se ainda enxergo qualquer coisa quando começo a cair. Acordo com o queixo aberto, dentes molares arrebentados. Que despertador foi esse que usaram para me acordar, uma porrada como se estourassem bumbos por dentro do cérebro: é minha cabeça batendo no chão.
Caio em mim como alguém que cai em si.
10.
Atenuem-se as viragens do tempo no “torniquete da consciência” (Piva). Realidade é eufemismo para alucinação. Eppur si muove: a história (vivida) é um caso crônico.

12/04/2011

Espelhos do tempo

1.
Cartas na mesa
De mão em mão em sentido
Anti-horário, ao contrário
No espelho.

2.
Tédio de astronauta
Flutuando em cápsula
Ao redor da terra.

3.
Relógio com navalhas
No lugar de ponteiros.

4.
Remorso de manhã
À noite:
Fotos de crianças no corredor do apartamento.

Atmosfera azulada
Em névoa televisiva.

Sobe e desce de talheres
Como se um pântano
Fosse o prato do dia.

(No banheiro, o espelho escuro
Reflete as fotografias)