12/28/2011

Sangue de lobisomem

De onde vem tanta revolta, um dia sempre me perguntaram. É assustador te ver grunhindo na mesa do bar, toda uma atmosfera de insultos. E logo você tão gentil, logo você tão pacato com aquele rosto cheio de sombras. O velho vizinho meio esquizo às vezes me trata como se eu fosse seu neto e por aí vai. Então de onde vem toda revolta.
A verdade é que não sei e se soubesse talvez você não seria revoltado. Sou revoltado porque não sei o motivo da revolta ser minha. São figuras de admiração: Blake, Blanqui, a cadela Baleia, Ibn Arabi e algumas forças cósmicas profundamente dispersivas. A revolta tem a ver com furor analítico (um gosto pela anarquia): então quando digo figuras da minha admiração não é que sejam modelos existentes perante os quais se ajoelhar e sim que o milagre, o assombroso como força que te obriga a se maravilhar é um eco dessas figuras. Daria no mesmo dizer que ele é, portanto, uma admiração que se figura.
E também eu preciso entender que a revolta é um afeto de amor e não de ódio. A certeza de que somos mais do que isso. De que não existe o tipo do revoltado como tipificação, sobre o qual se lance uma luz. Que a única coisa polêmica que existe foi a liberdade. Não o surto de palavras vazias. Derramar ódio sobre o mundo: não é nada além do que tem sido feito por Oito-Olhos nos séculos dos séculos, amém. O amor do revoltado não é, porém, algo que perfuma o cotidiano sórdido. É mais aquela conversa de Maquiavel no Jardim Oricellari, de pássaros bêbados adormecidos na página de um livro – e como são escuras as páginas de um livro fechado.
Aliás, é a revolta que faz se ver o cotidiano como sórdido. O cotidiano não é sórdido em si mesmo. É sombrio aos olhos (de lince) do revoltado. E de onde vem o revoltado, perguntaríamos academicamente? Abandonemos as pseudo-explicações psicanalíticas, sem bem que a revolta pode mesmo ser uma doença. Uma doença que vem não se sabe de onde e emerge como desejo de ver toda a cidade sob uma nova luz, ainda não nascida, apenas vislumbrada no brilho súbito que brota e morre no coração obscuro dos revoltados – e todo coração é obscuro e a humanidade, sem cessar, repudia.

12/23/2011

Retificação

Ao contrário do que foi dito no Faustão domingo passado, Oito-Olhos não se restringe a aparelhos visuais (lupas, telescópios, microscópios, miras noturnas, lentes de contato, óculos, lunetas, colírios, astigmatismo e miopia, visão de raio x). É preciso entender a arte da penetração vocal das mentes para se poder começar a falar em Oito-Olhos. Gritos grudados na parede quente. Getúlio Vargas fantasmagoricamente em todas as salas na Hora do Brasil. Cid Moreira lendo a Bíblia. Pedro Bial lendo um poema apócrifo da Clarice Lispector. Vozeirões. Ainda mais que ouvido não tem pálpebra. Mas também vozes menores, feitas sob medida: vozes de parentes que te sacanearam ressoando pelas ruas, gritos esganiçados de cachorrinhos no apartamento vizinho, até a sua própria voz gravada e você dizendo que nem um otário: essa voz não é minha. Vozes que se dissolvem em ruídos e ruídos que se transmudam em músicas: o fundo musical de tudo, barracas de praia, shopping Center, espera ao telefone da central de atendimento (para quem não sabe, o inferno tem fundo musical). Além disso, quem ainda não percebeu que as palavras são microorganismos que fagocitam as almas dos despreparados, também ainda não sacou o alcance de Oito-Olhos. Ainda mais agora com a internet: estupro mental, trollagem de filhadaputinhas caluniadores, caixa de ressonância que faz qualquer fraco gritar como se fosse Hércules lutando contra os porcos selvagens endemoniados. E tudo isso em silêncio, explorando a maravilhosa invenção do deus Thot, como se pode ler na Wikipédia. Tua alma cheia de buraquinhos, pequenas mordidas, palavras cheias de dentinhos afiados. Também há o recurso da Alta Literatura. O Escritor que come lixo e o recicla ao contrário, soltando seus excrementos direto no receptor, já disseram que a mente é um papel em branco e o sujeito se torna um inteiro esgoto ao deslavar insultos sobre seus próprios delírios de grandeza, enfim: Oito-Olhos é multimídia e se Deus criou o mundo, Oito-Olhos é o editor. E sim, você pode dizer que não conhece Oito-Olhos, mas como diria Raulzito: Oito-Olhos conhece você. O que estou dizendo? Você mesmo é Oito-Olhos: não o dia inteiro, não em qualquer lugar, mas Oito-Olhos é parte de você e você sabe muito bem – conhece o milagre sem saber o nome do santo. Ser Oito-Olhos é uma coisa parecida com ter cheirado cocaína, bebido vodka ou ter atuado como pastor exorcista num rito da Igreja Universal.

Ps: Diante de tudo isso, fica a pergunta: como não enlouquecer? Algumas regras básicas: vomitar ao invés de cagar todo o lixo digerido. Fazer ao redor de si uma barreira sonora que não impede as vozes (não, não se trata de vidro anti-ruído), mas que as sintetiza numa música toda sua, uma oração que seja. Saber que Oito-Olhos não tem ego e muito menos confundir O Príncipe Míchkin com Dostoievski ou a cadela Baleia com Graciliano Ramos e Herman Melville. Saber que Oito-Olhos é real. Tão real quanto essa pessoa que aqui e agora escreve.

12/21/2011

Outro espelho do tempo

18
No dia em que Napoleão nasceu eu acordei com uma pequena dose de mau humor. A luz atravessava Brasília como uma névoa translúcida – um clima de sonho. Eu era amado e perseguido, em cada fantasma havia um coração alheio que era meu também e estranhos pulsavam em meu coração. Alguém planejava um atentado terrorista contra a biblioteca da universidade enquanto um jornalista ensinava como se precaver contra a meningite: poder é perversão de senadores dendrofílicos. Nunca me esquecerei desse dia em que Napoleão nasceu, acontece sempre, sempre retorna – era uma terça-feira. O calendário às vezes me deixa doido da vida. Se Napoleão Bonaparte era um louco que acreditava ser Napoleão Bonaparte, eu é um poeta que acredita ser um louco desejando ser um poeta louco à deriva pelo calendário enquanto se escreve isso, numa terça-feira, dia de nascimento do Napoleão Bonaparte na sua loucura, leitor.

12/16/2011

Mais um espelho do tempo

17.
É lento e adocicado e é lentamente que o cheiro de esgoto vai tomando conta da realidade inteira. Um mergulho, outro mergulho, por curiosidade, por revolta ou jogo. Almas fecais emanam gases mefíticos em fotografias e palavras cheias de ranhuras como se dentes curtos e afiados as tivessem roído, remoído, peidado, cagado, vomitado pelos dedos, expelidas mundo virtual afora e mundo fosse desde então eufemismo pra “grande cloaca”. O cheiro de esgoto te acompanha nas ruas, nas tardes anestesiadas: ele é lento e adocicado; impregna todo pensamento à flor da pele como se os corações sofridos dos meninos que sonham com assassinatos e vinganças bombeassem diarréia no lugar de sangue formando uma cúpula verminosa sobre o céu da cidade.
Mais ou menos como disse o filósofo: quando se entra num esgoto, o esgoto também entra em você. Não adianta polir um espelho com a mão suja de bosta.

12/13/2011

Mais espelhos do tempo

15.
O processo de decadência de uma pessoa não é corrosivo, é acúmulo – por excesso e repetição. Como os rostos mais estranhos sempre são reconhecidos. Como andar pelas ruas procurando um caminho inesperado e sempre chegar ao mesmo (placas verdes sem nome, nada inscrito: toda e qualquer cidade foi vista tantas vezes). Apesar de sermos induzidos a pensar numa pessoa andando e se desfazendo aos poucos, devido à imagem da queda, a decadência é uma pessoa que acumula pedras sobre pedras, pedras entulhadas nos bolsos, na mochila, nas mãos, na alma de lodo de uma pessoa curvada sobre as próprias pegadas marcadas na areia, ao infinito, nunca tocando o mar.
Decair é cair e cair novamente e novamente cair por dentro de si.
16.
Uma vida começa no mesmo instante em que outra vida termina. O fato de essas vidas estarem mutuamente encantadas em estado de paixão faz pensar em Marcilio Ficino quando poderia ter dito: o rastro brilhante de uma estrela que cai e o rastro brilhante de um cometa que sobe são como o espelho em que o tempo se mira e se apaixona por si mesmo. O tempo às vezes é um mágico triste.

12/09/2011

Espelhos do tempo 3

11.
Dias e meses se desdobram como sensações. Dirigidas. Latas de cerveja jogadas no jardim.
12.
Amarrado na poltrona. Fátima Bernardes entra na sala, segura minha cabeça com força. Estica minha boca enfiando os dedos nos cantos e puxando, para que eu sorria. Prende o sorriso colando uma fita adesiva entre a boca e a nuca: minha pele repuxada garante a expressão de felicidade. Como a pele é minha, pode-se dizer que colaboro com a situação. Fátima Bernardes tem unhas muito afiadas e é impaciente. Na pressa e na irritação, arranha meu rosto. Um filete de sangue escorre, enquanto sorrio.
13.
Entro no elevador com meu vizinho. Ele me diz por que você fica por aí com essa cara de assustado? Existe alguma coisa de anormal acontecendo? Ele se olha no espelho pra ver se sua imagem está boa e abre um grande sorriso. Seus dentes são de lâmina de aço inoxidável e na hora em que ele sai do espelho deixa um grande vazio, somente comparável ao vazio de tudo o que existiu antes da vida, tudo o que acontecerá depois da morte e o imenso vazio da presença insubstancial do mundo neste preciso momento.
14.
Quando eu começava a ser jovem, numa daquelas férias de verão, subi a ladeira de terra batida, segurando a vontade de chorar. Também não queria chorar na casa dos meus parentes. Era madrugada (tantas estrelas, como as que não vemos em Brasília). Fui pra trás do muro de uma casa em construção e, sob o pretexto de mijar bêbado, deixei as lágrimas correrem soltas. Não todas – algumas guardei e com elas fabrico esse espelho que agora apresento a vocês.

12/05/2011

Espelhos do tempo 2

5.
O telefone toca:
Dormia muito bem,
O aparelho.


6.
Entre peixe e visão
Refratada
Passa a flecha:

Quando estou onde estive
E não sou.


7.
Pedaços de pulmão
Oxidado
No ralo do chuveiro.
8.
Flores apodrecidas
Na vitrine da floricultura.

9.
O campo de visão se fecha, mas não no sentido habitual de quando fechamos os olhos, de cima para baixo e de baixo para cima, mas lateralmente. Os olhos são ampulhetas que funcionam numa lógica não gravitacional, a areia, a passagem do tempo, corre dos lados para o centro. A poeira vai além, chega até a mente e onde o corpo faz conexões com a alma. Apago-me. Não sei ao certo se ainda enxergo qualquer coisa quando começo a cair. Acordo com o queixo aberto, dentes molares arrebentados. Que despertador foi esse que usaram para me acordar, uma porrada como se estourassem bumbos por dentro do cérebro: é minha cabeça batendo no chão.
Caio em mim como alguém que cai em si.
10.
Atenuem-se as viragens do tempo no “torniquete da consciência” (Piva). Realidade é eufemismo para alucinação. Eppur si muove: a história (vivida) é um caso crônico.

12/04/2011

Espelhos do tempo

1.
Cartas na mesa
De mão em mão em sentido
Anti-horário, ao contrário
No espelho.

2.
Tédio de astronauta
Flutuando em cápsula
Ao redor da terra.

3.
Relógio com navalhas
No lugar de ponteiros.

4.
Remorso de manhã
À noite:
Fotos de crianças no corredor do apartamento.

Atmosfera azulada
Em névoa televisiva.

Sobe e desce de talheres
Como se um pântano
Fosse o prato do dia.

(No banheiro, o espelho escuro
Reflete as fotografias)

11/26/2011

O amor em perceptos/afectos

Toco em tuas mãos e sinto teu olhar em mim. Nos teus olhos, sinto teu afagar e teu calor. Em tuas mãos, a visão de uma intimidade longínqua, que nasceu por acaso e que perdura em nós. Um instante de eternidade na lembrança de um espaço, a geografia íntima de esperanças que criam o passado de uma cumplicidade. Enquanto isso, vejo em teu rosto o tempo compartilhado, as lágrimas de momentos esquecidos e simultaneamente presentes. Nestes acordes de uma harmonia atonal, descontínua e profunda de momentos, o caminhar de mãos dadas e a troca de olhares são a melodia de uma música sempre lembrada, repetida, esquecida e profundamente impressa.

11/25/2011

Sonhos - V

o álbum de toda a minha vida erótica.

eu queria morrer:

o álbum de toda a minha vida erótica por apenas R$ 1,99 num bazar que comercializa pirulito, bombinha e revólver de espoleta. letreiro imenso, de neon, cor verde militar.

é tempo de tortura.

*

os negativos gritam na sala de revelação. correspondências.

se nas fotos aperto o bico dos seios, na outra margem me enforco. (a corda presa ao gancho em que mamãe estendia a rede durante o verão.)

para cada imagem em que surjo deitada, na cama, uma tragédia naquela sala. atropelamento: o sangue empoça no asfalto. é vermelha

a luz.

boquete, suicídio: tiro pela boca.

anal, empurram-me de um poço estreito, fundo, noturno. (abro os braços e as pernas para me amparar nas laterais do PVC, mas o limo não perdoa: escorrego devagar por este cano

metafísico. fisicamente metido
em mim.)

*

é tempo de tortura. um sargento sem corpo, sem voz, sem lugar, emerge deste açude escuro (no furo) do pensamento.

ouve-se o apito: mortos dormem em posição de sentido.


***


(Também publicado em De Ter de Onde se Ir).

11/21/2011

Rock'n roll heaven (Uma crônica)





1. No começo da viagem, propósitos claros. Mas, com o seguinte cuidado: você pensa que está no controle da situação quando o assunto é a sua mente. Um pouco mais de atenção vai te mostrar que a mente é uma parafernália de motos-contínuos independentes e quando você entra num desses movimentos... Bem, isso é o que entendemos por cotidiano, essa banalidade orquestrada por detalhes extravagantes. O pôr-do-sol mais bonito que eu vi foi a bordo de um avião: as nuvens brancas tão retilíneas e contínuas – como se voássemos sobre um continente de vapor branco.
2. Na entrada do espetáculo tudo voltado para nos lembrar que sonhamos por dentro de um grande animal holográfico projetado pelo dinheiro. Animal que regurgita robôs sanguíneos, que expele o desejo como se vomitasse algum alimento mal digerido. Nada tem sabor, nenhuma sensação: tudo representa algo e esse algo é a coisa mais insossa, inodora jamais inventada. A luz dos holofotes parece dar vida a uma pasta cinzenta. O que chamamos de mundo.
3. Eu e meu irmão, apesar disso, vamos realizar um sonho: ver o Lynyrd tocando ao vivo. O Lynyrd possível. Boa parte dos caras morreu: queda de avião, acidente de carro, ataque cardíaco, maldição dos anos Karetas, enfim. Vai ser um dia dedicado à amizade celebrando estilhaços do rock’n roll. Aliás, não só nesse dia, sempre é como se uma bomba de babaquice tivesse explodido sobre o mundo e os estilhaços dessa bomba tivessem danificado a parte de nossos cérebros onde a liberdade e a alma se refugiavam. Gaguejamos liberdade e de vez em quando vemos estilhaços de alma brotando entre nossas palavras (geralmente, só mesmo por música). Até por isso não entendemos porque alguns fãs levam a bandeira dos confederados ao festival: subserviência? Esse lado da banda, que por vezes vai gritar no imenso painel luminoso atrás do palco: é melhor não ver. Viemos aqui por causa do rock, do blues, da força e da simplicidade das músicas de Ronnie Van Zant. É assim que a máquina abusa da própria voz e no dia seguinte está rouca, quase muda, de tanto gritar. Um dos motos-contínuos da mente é esse: jogar de volta na cara do mundo algumas doses de raiva, revolta, sensibilidade, emoção bruta (apontar o dedo para o céu bêbado e lembrar que tudo que existe é sagrado – Citação anacrônica? Não vejo motivo para Adam Smith ser mais longevo do que William Blake. A frase virou clichê? Não se você entra no circuito sagrado de tudo o que existe se deixando explodir com os estilhaços da alma e da liberdade). Isso está on the Road demais pro seu gosto? Chega!
4. Por vezes é como se eu andasse com uma bomba-relógio no bolso – é tenso. Nunca vi ninguém arrumar tanta confusão e em tão pouco tempo fazer amizades repentinas justamente com as figuras com quem acabou de quasebrigar quanto o meu irmão. Parece um ritual: quem sobreviver e souber que não é para ele os insultos, passa de fase. E não se trata de insultos propriamente ditos, comuns, mas blasfêmias sobre querer ser tratado como as outras marionetes, sobre pizza com e sem orégano e o abuso do molho pomodoro. Gritar sobre o amigo que caga em todo boteco que entra, observar como Peter Gabriel começou no Genesys e acabou no Apocalipse. Tem muito maloqueiro nessa festa.
5. A amizade, contudo, começa quando aos irmãos e sua fraternidade de sangue circulando entre o noturno e o diurno, vida e morte revezando-se como Cástor e Pólux, soma-se um terceiro. Um encontro inesperado cuz the Candyman is in town. As luzes coloridas que vêm do palco batem no muro de metal que cerca a área vip e rebrilha nas lentes escuras de seus óculos. O paraíso em gotas envolvido num plástico. Então, os três (e o número 3, quando as formas têm potencial, quando os caminhos se dividem em me todos, o círculo intangível do nascimento), então, os três caminham enquanto esperam, em conversas não menos absurdas esperam, e caminham. E às vezes param: onde era mesmo que estávamos indo? Ao show do Lynyrd, lembra?
6. Aos Amarelinhos, só uma coisa a dizer: Perderam, malucos! Algumas sensações foram oferecidas em sacrifício, é verdade, jogadas no asfalto e esmagadas nas poças de chuva e mijo. Mas, passamos por vocês e vocês não nos ganharam. E não foi por falta de esforço, diga-se. Fomos rastreados, vigiados, controlados. Um Amarelinho chegou a se aproximar de mim e farejar como se ele fosse um cachorro na alfândega de um aeroporto e eu fosse exatamente isso: uma mercadoria a ser contrabandeada, apropriada pelo Estado e revendida pelos circuitos extra-oficiais da corrupção policial.
7. É preciso saber o óbvio, que isso aqui não é Woodstock? É uma versão limpa, organizada, normal como Peter Gabriel usando passagens da Nona Sinfonia (“lovely lovely Ludwig Van”) para compor algo no estilo Tenya e trilha sonora da Pequena Sereia. É como se ao invés de álcool e drogas, os jovens românticos do rock tivessem morrido por excesso de anestesia. Mas, também é bom lembrar que nem Woodstock foi tão Woodstock assim. Aquilo aconteceu, apesar do objetivo primordial de tudo: fazer dinheiro.
8. Escapamos atravessando as estruturas montadas com corpos mutilados de jovens anestesiados, seguranças sádicos e empreendedores culturais, e chegamos ao momento. Chega a ser estranho tanto esforço por uma coisa tão simples, uma música tão simples quanto uma conversa entre um menino e sua mãe sobre a importância de ser simples. É que essas coisas não são dadas de mão beijada e o Absoluto pôs o dinheiro e o policiamento no caminho para nos lembrarmos disso: a simplicidade custa esforço. Precisamos do contraste: auto-ajuda, que seja. A sofisticação não passa de outro engodo: Peter Gabriel, você sabe. Johnny Van Zant dedica Free Bird a todos os que estão no paraíso do rock’n roll: e quando a música explode por dentro de nossas cabeças como se tapássemos os ouvidos e falássemos com uma voz estranha, só por curtição, é como se o sonho rompesse as travas do sistema (as bocas que falam sobre e são o sistema, esse véu inexistente que cobre o mundo e interdita) e atravessasse inclusive as nuvens pesadas e cinzentas que pairavam sobre o mundo naquela hora – o sonho subindo mais alto a bordo de um avião conduzido por um piloto alucinado que decidisse subir sem parar para além do limite suportável pela máquina. É como se o sonho rompesse tudo e descobríssemos, para logo depois esquecermos: que as coisas têm coração.
9. Na volta dois maltrapilhos, dois mendigos de sensações com restos de alucinação espalhados como migalhas na mente, fedendo a mijo, cachaça e pizza, orégano e pomodoro entram no avião. Uma turbina quebrada e o vôo foi adiado. Mas, depois de idas e vindas, chegamos em casa. Por enquanto, parece que o mundo voltou ao normal. No dia seguinte me lembro de um poema de Leopoldo María Panero que traduzi assim:
Não temos fé
do outro lado desta vida
só nos espera o rock and roll
me diz a caveira que tenho entre as mãos
dança, dança o rock and roll
para o rock o tempo a vida são miséria
o álcool e o haxixe não dizem nada sobre a vida
sexo, drogas e rock and roll
o sol não brilha por causa do homem
o mesmo para o sexo e o rock e as drogas:
a morte é a buceta do rock and roll.
Dance até que a morte te chame
e diga suavemente vem
entre no reino do rock and roll

11/11/2011

Por dentro do teu ódio

O ódio da horda caçadora por dentro do teu ódio
dentro do teu ódio o ódio das ratazanas contra outras de outra ninhada por dentro do teu ódio ninharias milenares dentro do teu ódio o ódio de gerações por dentro do teu ódio as guerras que estão sendo planejadas dentro do teu ódio todo sentimento é lenha pra fogueira do teu ódio por dentro do teu ódio quanta alegria alheia como uma pedrada na boca do teu ódio por dentro do teu ódio a nostalgia dentro do teu ódio por dentro do teu ódio uma mistura de remorsos e respostas afiadas teu ódio por fora

floresta de dentes ou por fora teu ódio macio como caninos disfarçados de pétalas fora do teu ódio quantas palavras bonitas em teu ódio por fora ou severas: lágrimas, castiçal, fato, flora, metalinguagem por fora teu ódio também se arma de conceitos e as pétalas afiadas e brancas são viscosas de veneno gorduroso por fora do teu ódio o aroma de perfume

excessivo

dentro do teu ódio toda descoberta é tardia por dentro do teu ódio a soma alucinante de desistências e sacrifícios dentro do teu ódio algumas boas verdades dentro do teu ódio que cresce em você como um feto de dentes afiados que você acaricia com unhas de ferro por dentro do teu ódio a certeza do desejo da vitória e como é mesmo o nome daquele sábio chinês que mandou decapitar os covardes por dentro do teu ódio você pensa que seu dia vai chegar de dentro do seu ódio quem mandou você nascer por dentro do ódio neste maldito mundo de ódio por dentro de um elevador com serviçais carregando as malas do teu ódio por dentro do teu ódio nadando como um peixe num aquário de ódio e fora do ódio você sabe


é o absurdo e nada
te deixa mais por dentro do teu ódio quanto


o absurdo.

11/08/2011

Sua história não é minha (uma carta)

1.
Nada mais assegura a integridade do eu

do que a composição orgânica única e refinada que o sustenta e faz de cada corpo uma totalidade reconhecível no mundo, entre outros. Isso, apesar de a pele descamar constantemente, os fios de cabelo descerem pelo ralo, o sangue sair da aorta na velocidade de um conversível esportivo (vide a echarpe de Isadora Duncan presa nas rodas do veículo) –

p. ex. leio as palavras impressas num livro qualquer e é como se elas não entrassem olhos adentro perfurando o cérebro; não, elas fazem uma curva ao redor do meu crânio, são como o vento, circundam a cabeça, o pescoço: a integridade

fictícia

do corpo.


2.
Querida família:

Andar de Jet Ski nas bordas de uma privada de luxo no Terminal Rodoviário de EsgotoCity, usar as fezes expelidas pelos intestinos irritados dos viajantes como creme de proteção solar, o catarro das Múmias entubadas do cu ao nariz nas catacumbas cheias de esqueletos à guisa de loção pós-barba para a night na boate, a cruz de prata usada pelo Capuchinho Cavazzi num ritual de exorcismo serve de colherinha pra adoçar o capuccino numa tarde em Casablanca, igual ao Steven Seagal recorrer ao cartão de crédito como estilete para cortar o pescoço do guardador de carro do estacionamento, algas marinhas na cabeça fazendo uma peruca, concreto armado por dentro do terno – só pra manter a atitude. Sai caro, mas vale a pena.


3.
O seu passado

não me pertence, nem sei onde eu estava quando meu passado aconteceu ou quem era aquele com ar de ausente na fotografia, não sinto calor algum no simples fato de empunharmos um álbum de fotografia como se fosse um salvo-conduto e um domingo dedicado a tais memórias não seria inspirador, enfim, venho por meio desta pra dizer porque não irei ao encontro e nem me sinto compelido a agradecer

não sou dos seus, ainda assim me empenho a explicar: entre vocês sou um estranho sem nome que caiu de pára-quedas, um figurante que atravessa o melodrama e a heráldica com olhos vidrados, perdidos & sempre que digo feliz natal bom ano novo o faço

M-A-Q-U-I-N-A-L-M-E-N-T-E

11/03/2011

Quando soltas as palavras são como cães de caça

Quando soltas as palavras são como cães de caça:


sangue sangue sangue sangue plástico sangue carbonizado flor de laranjeira sólido cristal mancomunado com as forças ocultas do orgasmo natal porque tantos peixes nesse campo viscoso seminal saber se Jesus ejaculava a lua ri cheia de dentes na minha imaginação um ímã atraindo os cães do pesadelo notívago lustres flores capturas de repente me lembrei do padre Ivo

veia de arame farpado aranhas sobre a pele adormecida estátua sonora de vulto inconstante espaço aberto gelo ventania, confessar-se e dez ave marias

pétalas facadas um revólver na mão do abominável homem de neve Jesus cristo e os santos uma assembléia de cães gatos e sapos ornitorrincos no campo solto do sonho de onde vem a luz do sonho uma lanterna um leão agoniza uma sombra uma caverna um vulto sem nome uma enxada cortando a cabeça do herói medusa rasteja sob o orvalho o longo fio de cabelo do pássaro morto na memória é tão fácil lutar contra uma abstração onde esqueci a coleira o refúgio a nota de rodapé o produto interno bruto o Sr ministro advoga uma causa perdida entre os escombros

nevoeiro lama respiramos fumaça na cidade incendiada fogo pelos poros pela pele foi a vodka que matou a moça e agora pastor pinguço e sua palestra premiada e seu cartão de ingresso na Festa Absoluta e o rigor da vestimenta a capa vermelha a espada o escudo o míssil a bomba a tiracolo no lugar da pasta e seus papéis e todos os carimbos e os títulos de inspetor do esgoto abúlico do fruto proibido faminto de nozes mordidas pela casca dura dentes quebradiços como uma folha de parreira cobrindo o Ivo viu a vulva de Eva:


Você vai ver como a memória trabalha a seu favor.


10/30/2011

Álbum de perfis

Álbum de perfis. Será que estas efígies que me dirigem nos olhos seus rostos olhando pro lado

pra onde?

Essas múmias cujas faixas são sinais elétricos, entenderão a intensidade desse gesto passado, este sorriso sem pé nem cabeça, uma lembrança sem antes nem depois: o sorriso de expectativa do lado do terreiro noturno da dona Dalva, por exemplo

à espera de quê? Será que ainda? Gravado não sei como não me lembro o motivo, na alma e

onde ficaria a alma, afinal?

Se a memória não é mármore é mar rarefeito no tempo, água-viva, o passado arde na pele do presente, será que estas estrelas

-marinhas que me vivem no sangue algum dia vão entender por que isso é tão nítido, como se agora mesmo eu estivesse sonhando com você aqui sorrindo ao que nunca vai suceder, e outros, tantos outros tão mínimos, nas suas cabeças talvez

não pra mim. Pra mim nada é mínimo. Ou sou um homem feito de mínimos.

Cada mínima ferida
Alegrias menores e o resto
É vazio – vazio de mar

E o cadáver chegou à praia inchado de água, todo marcado por pequenas mordidas de peixe:

a pequena voracidade do tempo.



E como entender que nessas lembranças tão nítidas não há nada

de decisivo, ou que elas são sustentadas por coisa alguma, um duradouro quase nada e mesmo assim elas saltam aos olhos como peixes coloridos e silenciosos e outra:

como entender que apesar disso, elas não são vagas indiferentes. São como feridas que passaram e não deixaram cicatriz e sangram

indolores.

O fodão do colégio que me jogou na lata de lixo, não era bullying, isso não existia, hoje é fotógrafo de casamento – é o que me diz sua múmia. Você, que me disse que os professores me odiavam e isso era sinal de que meu “trabalho” estava sendo bem feito e eu devia continuar. Aquela coisa que ia acontecer na Casa dos Padres e não rolou, Paulinha. Andar de carona no carro velho depois do curso de formação política – comunista aos 13 anos de idade. Qualquer coisa, uma frase, um gesto e um desejo



de sair perguntando: você também se lembra disso? Você também se lembra disso? Se só eu me lembrar então quem sabe

tudo não passou

mesmo de um sonho e querer sair do sofrimento é como se esquecer que se mora numa casa que está

pegando

fogo:



água salgada é fogo condensado,
tudo nessa história é refração,
cenas soltas

não

compõem uma vida.


De quê então
uma vida é composta? Uma vida

é composta?

A memória é um mar iridescente de gestos e frases
irrisórios que emergem
do nada.



ou pensarão

que este xarope pirou porque lembra demais?

10/26/2011

sábado em copacabana

a menina olha o mar
do outro lado da avenida Ela está parada
no calçadão enquanto
os carros passam
as noites passam
as suas chances
passam enquanto seus olhos
trilham o meio do breu das águas
e se perguntam onde foram parar
os dólares e os euros
que clientes americanos e italianos
largavam em cima
do lençol molhado de suor
e esperma Ela não sabe que a máquina
de fabricar notas verdes
está emperrada no além
do breu das águas e os gringos
andam agora com as mãos
nos bolsos no olho
da rua Ela tem sonhos
psycho em que dança
nua com as colunas de uma igreja
abandonada entre
espasmos
numa batida trance
numa batida trance
numa batida trance Ela
tem sonhos ácidos em que seus dedos
gozam quando tocam as notas
verdes que saltam de uma pauta
como cédulas de cinqüenta
na batida
do funk Ela tem sonhos
mínimos em que seu corpo
acende feito neon quando milhões
de mãos se esfregam
em suas pernas
perfeitas de cleópatra
do subúrbio
e seus poros aspiram moedas
que douram seus pelos
como água oxigenada e vão
direto para uma conta
bancária através de cabos
subterrâneos Copacabana
é um delírio nas retinas, este lugar
é um sonho em que você
não consegue dormir uma noite
que seja, ela
pensa de dentro
do inferninho da beira da praia
à meia-luz Ela tem sonhos
turvos com um paraíso
cheio de lojas que seu dinheiro
pode comprar porque Copacabana
tatuou em sua pele
com saliva
todas as línguas
que o mundo fala
quando não quer
dizer nada

Considerações sobre um questionário

A minha área:
Aérea.

Meu território:
Onde estive
E não estou.

Meu recorte temporal:
Um caso crônico.

Minha especialidade:
Especiarias
Etéreas.

Minha escola:
Escória na tua mente
Profissional.

10/22/2011

É um cristal ou melhor: cristalização. Quase. Uma estrela
Do mar, na ponta de cada tentáculo
Dentes, de lobo: animal faminto
Devorando as bordas
Do mundo.

Oito-Olhos no centro: aranha cravada no eixo
Do nada
Patas caçando
Um porto seguro
No vazio, raízes em expansão:

Pensar num besouro caído com o dorso
No chão quente: movimentos descoordenados no ar:
Membros de uma pessoa jogada do terraço de um arranha
Céu.

Tudo isso.

Um corpo que sente a vida ser criada
Apaixonadamente, como dor, feridas
Que se cristalizam, mineralizando-se:

Assim o desejo se cristaliza em poema.
Assim o lodo se cristaliza em história.
Assim o caos se cristaliza em cosmo.

10/17/2011

inútil paisagem imóvel

diante de seu corpo, da alma
nem pensar: ela pegou
um táxi em direção
ao centro da cidade
abandonada ou se perdeu
nas revoluções
por minuto [você vai
falar de novo no eixo
inexistente, cara?] ou
se desintegrou quando viu
no espelho a própria imagem e ela parecia
antimatéria ou ainda
seu corpo, isso que produz
pensamentos, irrigado por sangue
quente, hormônios e linfa, isso
que pulsa e expele
secreções, não se reconhece
na idéia de alma As fachadas
mudaram de cor, pântanos
aterrados, flores de concreto
e vidro brotaram da terra, mas
a paisagem permanece
imóvel, áspera [não tem
negócio, meu chapa],

cenário Enquanto isso, mercadorias
incandescentes inauguram
cultos efêmeros, catedrais
instantâneas em que séquitos
depositam almas planas em suaves
prestações num jogo
de corpos imolados em epopéias
controladas por relógios
de ponto e catracas biométricas,
à espera, sempre à espera
de uma rave
tão ácida que dissolva a cápsula
impermeável da alegria
pra que ela penetre em todas
as rachaduras
dos muros
e suma
Toda manhã o sol emerge
Vomitando sinais
Cuspindo matilhas
De rancor, tantas palavras
Engrenagens

Rodas dentadas
Portando armas,
Marcas. Multidões.

Desenhar, com finos traços
Como a safira sobre os sulcos
De um disco
O azul inútil de asas
Transparentes, contra o céu.

Elucidar, na mente de tudo
O giroscópio (vazio) de anjos
Os abismos ínfimos
Onde sobrenadamos:

Que o ódio atravesse tua alma
Como as partículas sem peso
Que o universo vomita ao explodir
O sol.

10/10/2011

Como responder à objeções de um rato 2

Ratos de laboratório submetidos a eletro-choque ficam paralisados – de medo. Nem sequer procuram a saída do labirinto ou farejam a isca visível e apetitosa no centro da caixa.

Ratos também passam pela experiência

narcísica de olharem pra água à procura de si mesmos. Além de se reproduzirem em grande velocidade, os ratos se multiplicam porque tendem a ver o mundo como um amplo viveiro de fantasmas-ratos: ratos voadores com asas de anjos, ratos mutantes com flores plantadas no dorso. Todo rato real prolifera no mundo imaginário, ocupando-o com seus duplos, seus gêmeos, seus irmãos siameses, formando redes entrelaçadas por dentes finos e excrementos.

(Ai de você se um rato te tomar por espelho!)

É por isso que, mesmo que tomado de pavor, um rato sempre acredita que vence.

Entre os animais, somente dois matam outros de sua mesma espécie: o ser humano e o rato. Isso está começando a parecer uma aula de biologia. Mas não é isso. Existe um heroísmo de ratos. Uma coisa estilo pancadaria de desenho animado. Os ratos curtem andar coroados por seus próprios excrementos. Os ratos emitem sinais, guinchos: eles falam por dentro de você, da sua língua viscosa de betume, seus olhos de fio elétrico desencapado.

Você, o vencedor. Você, o coroado. Você, o que se agachou – para fora da possibilidade do soco. Você, o espancador de mendigos que viu seus finos dentes caídos no chão quando um deles revidou. Você, o que superou os traumas de infância se agarrando à tesoura como objeto-fetiche e parâmetro de astúcia e agora vomita estratégias imaginárias no mundo virtual, imobilizado no seu canto da caixa do laboratório.

10/09/2011

aquelas flores que sangram se abrindo por dentro em sua carne

para helena n.



foi numa primavera hostil que deixei de te entender
e semeando ausências nos teus calendários
não via as flores mortas nos jardins
onde depositei o simulacro de outro drama
em que anjos distraídos se dissimulavam em pedra
ou em cedro dourado nos crepúsculos dos adros
e das naves escuras e vazias

já não me importa mais que as células sãs enlouqueçam
ou teçam abismos pelo corpo
abismos sangrando névoa e nuvem
e descompassem a música das esferas
nem que o silêncio venha carregado
das palavras
esquecidas num tempo em que ainda amanhecia

neste mesmo lugar deixei o mapa
que nos traria de volta a um presente que não termina
e agora
depois de todas as pontes arruinadas
vi pelo espelho dos metais que andei forjando
um rosto
que representa a ilha
num mar que transborda cinza bruma e gelo

nos acalenta agora nesta outra primavera
o fio que abre a ferida sem resposta
aquela em que
[lançando imprecisões nas cartas do destino]
finalmente
eu
não sei

10/05/2011

"Só o (palavra proibida) nos une"

Como é bom ter de novo
O silêncio
Não o mero cala-te
Boca, ou o estado definido
Do silêncio como um peso, um aperto
De mãos na garganta
Da alma.

Como é bom ter de novo
O silêncio em que palavras
Se dissolvem depois de partir
O silêncio, ínfimas
Somem, consomem-se
Quase inaudíveis como a areia
De uma ampulheta ou
O silêncio dos pássaros
Que voam alto depois de um grito
De fome:

O silêncio que segue
Pensando alto – algo como:
Não é com você
Nem comigo
Que eu estava falando.

10/02/2011

cinco ou seis maneiras de se perder na cidade

você tem cinco ou seis maneiras de se perder
na cidade Numa delas
o Livro dos Espíritos é um oráculo
tatuado em braile na pele
de meninas mestiças que dançam
nuas sobre lençóis grená
um cântico sufi enquanto
o sentido arde em suas vísceras e seus pés
escrevem um livro chamado
motel nosso lar Em outra
o labirinto de memórias detona
a dessublimação feroz
que você rasura no Breviário
das Horas, estação
por estação, como se isso
criasse qualquer âncora
entre você e o mundo E ainda uma
que repete ao infinito a metamorfose
em que diante do abismo você
é um poema escrito numa língua
estranha cujo último verso
esconde uma
chave As outras não
interessam


Rimas trôpegas de um poeta tímido

Não posso te dizer o que sinto:
é proibido.
Preciso deixar tudo bem escondido,
tudo pelo não-dito.

Mas, a cada vez que te vejo
de longe eu pretendo
te dizer o que leio
no fundo do teu olhar.

Não, não posso:
Vem à tona o remorso
e já cabisbaixo retorno
a meu profundo pesar.

Será que vês meu sofrer,
todo dia ao amanhecer,
esperando que o teu querer
possa o meu encontrar?

Não, novamente o proibido
deixa-me muito aturdido,
saio com pressa, contido,
e volto para casa sonhar...
Vivi minha vida sem mim.
Sem que eu a tivesse vivido.
Viver com alguém é prescindir de si?
Talvez, mesmo que por alguns momentos.
Mas, agora que tenho a mim mesmo,
Sinto minha ausência
profundamente.
É como se eu não sentisse sequer minha respiração.
Ausência.
Como procurar a si mesmo?
Talvez o segredo esteja em encontrar
o outro profundo que existe em mim.
Refúgio da ausência no fazer eternamente repetido
de meu poetar.
Vejo o pôr-do-sol em
um lugar qualquer,
derramo minhas lágrimas
de tinta em um papel qualquer,
e vou embora descansar.

9/30/2011

Adianta dizer a minha lucidez
E avançar meu argumento contra
O caráter precário da minha existência
Uma existência canina
De cão sem dono nunca resignado porém
Aqueles campeões em tudo produtivos e nem por isso saudáveis
E aqui reclamo minha agonia a ausência de obra nada saudável
A obra precária inexistente
Uma não obra
Uma mão na roda
Aquela alegria dos que obram e impõem-se
Os que respaldam a obra aqueles elogios nunca conheci
O reconhecimento e reclamo
Reclame
Publicitário

9/27/2011

Aqui estou de novo
O tendão do dedo indicador pedindo descanso, como se eu tivesse passado horas assinando meu nome meu nome meu nome e de novo meu nome. Os mesmos traços no papel, sempre recomeçar: como um leão neurótico andando em círculos numa pequena jaula. Como se a caneta fosse capaz de tatuar a pele de celulose. Mas, nada é mais exterior ao sujeito que seu nome. Todo nome é uma fatalidade, quando não é uma citação, ou pior, um prenúncio de lápide. Então por que estou aqui de novo? Porque os anjos, com asas que um dia ainda brotarão desses traços negros na tela luminosa voando para a imaginação de quem fala a minha língua, ainda não estão prontos. Se é que um dia ficarão: suspeito que a matéria-prima dos anjos é o instante. Então, por que estou aqui de novo? Porque as flores, quando morrem, perdem o dom de agir criando elos. E o tempo das flores é curto: a morte das flores é visível a cada segundo. E assim preciso prosseguir desenhando novas e novas flores na sua mente, se você fala a minha língua. Você não vê, agora, uma flor surgindo tão real na sua imaginação? Ainda está muito abstrato? Pense num girassol vermelho, num lírio azul, se debruce sobre flores negras e sem nome. Sinta o gosto do girassol em pó, que te servem no Inferno para matar, piorando, a sua sede. Você não vê, agora, flor alguma? Você não se tocou que essa flor seria um anjo? Você não vê? Não viu?

9/24/2011

Remixagem dos meus poemas sobre o ipê amarelo

O ipê amarelo dos meus sonhos teria flores sem elos com cores quaisquer a não ser
o amarelo em sua pureza de flores se abrindo
ao sol:
amarelo de face metálica, sem outro nome ou mistura
(mesmo o avesso das pétalas ainda teria o mesmo
amarelo, onde eu poderia deitar minha sombra. Ele seria plantado no coração vertiginoso do continente, onde eu repousaria, longe do mar e seu rumor.

O ipê amarelo que tenho diante de mim, porém, é um tronco seco, fino,

um poste
um fio
um dedo
uma forca

Flores amarelas, sem alegria, sem esperança, desmemoriadas, absortas,

absurdas.

Sonhar é fogo. O amarelo mais puro é filho do instante. O ipê se acende e se consome na imaginação, como asas (de anjos): labaredas pétalas.

9/20/2011

A ciclovia

A CICLOVIA

"— Meu caro, você conhece o terror que tenho de motos e carros.
(e dos pedestres)"

Um passante de
bicicleta
se destaca no horizonte.
Sua intenção é atingir a ciclovia perfeita.
Ele reclama:
— “A pista da ciclovia é inútil, ela termina, ela desemboca na rua”.

O ciclista sabe que precisa
passar pelos carros para atingir a
ciclovia.

O ciclista sabe que precisa
passar pelas motos para sair da
ciclovia.

Ele pedala altaneiro
por alguns minutos respira a sensação
enfim esse espaço.

O espaço da ciclovia se confunde com a calçada.
O pedestre flana.
O pedestre invade a
ciclovia.
Na superioridade de sua preferência
sua prioridade absoluta facilita o acidente [alguém adverte].

Manoel me disse que o carro deve manter a distancia de dois metros da
bicicleta.
Qual a distância que o pedestre deve manter da
bicicleta?

O pedestre vive seu estado de exceção.
O pedestre turista vive seu estado de imposição.
— Ele tem Razão! Isso não é uma razão, diz Michel.

[Outro dia Marília esbarrou com Deguy de bicicleta]

João quer pedalar continuamente mesmo não sendo um atleta.
Sem interrupções, de ponto a ponto, da esquina até Ipanema, até a Lagoa.

As pernas retraídas
esticam-se continuadamente.
Se esforçam formando
ondulações.

Elásticas
as pernas
na bicicleta
ondulam.

[Marília depois me contou]

Deguy saiu da
ciclovia
chegou na avenida de
bicicleta.

Naquele momento interrompido em que
caía.
Ridículo na lama.
Quando o poeta se estatelava no
chão.

9/17/2011

liserg

(tela de Lucien Freud, falecido em julho deste ano)


ouvir so lonely em 1978 num pub londrino
olhando o calendário marcar 2011
sem nunca ter pisado em londres
falar com as paredes falar com as paredes
falar com as paredes
escrever um poema com palavras que sejam
só suas
riscar a pele dos dias com uma fratura
exposta querendo que disso façam
teoria nas tardes do conservatório
discar para os desconhecidos que lhe conhecem
bem e inserir mentiras no roteiro
que eles estão representando
dançar de novo dançar de novo
dançar de novo
escondendo no bolso um bilhete sem volta
pra pasargada
sabendo que ela foi bombardeada
olhar bem dentro dos olhos da fera
e amar a fera entre os escombros do seu dia
resetar o passado em doses insuportáveis
mas sem desferir o último golpe
antes que a chuva umedeça os corpos
antes que o mundo role como uma cabeça
antes que os dados do destino escapem pra sempre
dos seus dedos

Uma aproximação ao poema de Creeley (Numbers)

Números, de Creeley


Um

Que condição singular
de florescimento
vertical…
vai por aqui,
vem por aqui.

*

quem eu era que
pensava ser
outro um por
si mesmo dividido ou somado
produz um

*

esta hora, este
lugar, este
um.

*

você não é
eu, eu não você.

*
me todos

*

como pau,
pedra, dada

coisa tão
fixada que tem

uma cabeça, caminha,
conversa, leva

uma vida.


Dois

Na primeira vez
em que foram feitos
toda terra deve
ter sido seus corpos
refletidos, num instante –
um fluxo de impressão
de que uma curva no tempo
voltava ao brilho da água –
a ternura em que vieram.

*

O que você quis
eu senti, ou senti que senti.
o que já é mais que um.

*

o estado da assim chamada
consciência é sempre
uma palavra perfazendo
este mundo de mais
ou menos do que é.

*
não me abandone.
me a me. um a um.

*

como se próximo
a mim outro alguém
se aproxima. Só

para fazer você
minha, na mente,
decifrar você.








Três


Eles, agora, mais
um entre dois –
seja de um lado seja
de outro. Será

que eles sabem quem é
quem, ou simplesmente vão
com este pivô de entremeio.
Aqui as formas têm potencial.

*

Quando isto ou
aquilo se torna
escolha, este estado

das coisas trespassa.
Aquilo que foi
agora acordado

alterna entre
dois e um,
me todos.

*

O primeiro
triângulo, de geometria,
de pessoas,

soou como
ocasião única, eu
acho – começa

aqui, intangível,
o círculo –
um nascimento.







Quatro


Este número vale
como conforto, fato
seguro. Qual

mesa firme
sobre quatro. O cão
confortavelmente caminha,

e dois a dois
não perfaz militares
mas amigos amáveis

mãos dadas. Quatro
é uma praça,
ou círculo pacífico,

celebrando o retorno,
o encontro,
o triunfo do amor.

*

A carta que traz
o quatro de copas
é signo de experiência
de vida. Que outro
sentido haveria.

*

Uma porta
quatro – todavia
quem entra.

*

Abstrato – sim, qual
dois e dois
dados, quatro dados –
um e três.




Cinco

Dois a
dois mais
outro agora

no meio
ou então do
lado.

*

De cada
um dos quatro
cantos trace

uma linha
indo ao ponto
oposto. Ali

na intersecção
faz-se o
cinco.

*

Quando mais novo este era
o número requerido
para contas, e para

imaginar um conjunto
útil. De algum jeito o extra-
-um – que é mais que quatro –

me assegurava que havia
o que bastava. Dois e três
um e quatro está completo.

*

Como desenhar estrelas.






Seis


Misturando-se
tais formas
entre
dois e três –

no sexto
dia findara
a criação –

íntegra –
ou que o sol
é pleno

no equador & parece
parar, depois
retornando...

ou que isto contém
o primeiro número
(2), e o primeiro excesso

do número (3), o primeiro sendo
o membro do macho, o último
muliebris pudenda...

Ou dois triângulos entrecruzados.
Sete


Somos sete, ressoa dentro
da cabeça como pesadelo de
responsabilidade – sete
dias na semana, sete
anos para a sarna
do envolvimento irreversível.

*

Olha
a
luz
desta
hora.

*
Eu nasci às sete
da matina e meu
pai tinha um monumento
de pedra, pedestal na
porta de entrada
do hospital de que ele era
o cabeça.

*
Às seis
às sete – a caneta
perdida, o papel:

embriaguez
de noite morta. Por que
a morte de algo tão

próximo a este
número é total.
Tudo não
passa de um
único número?
contar,
sempre e novamente.

*
Aqui jaz o número sete.


Oito

Dizer “oito” –
paciência.

Dois quatros
indicam o método.

*

Este número, nenhum outro,
demarca o ciclo –

intervalo de oito anos –
pois tal confluência

faz a lua cheia brilhar
no mais longo
ou mais curto
dia do ano.
*
A seca está quase no fim.
O mês é agosto –
este intervalo.
*
Ela tem
oito anos
segura o gatinho
e olha pra mim.
*
Onde você está.
A mesa.
A cadeira.
*
Traços luminosos demarcam o intervalo.
Oito faz o tempo passar em silêncio.
*
Não tem volta –
apesar da metade
ser quatro
e a metade,
dois.
*
Oct-
ago-
na-
l.

Nove

Aqui não
se repousa.
Agita-se,
reflete-se múltiplo
o três
vezes três.
Como espelho:
volta aqui,
ali estando.
*

Talvez na
ênfase implícita –
a mais que a mais que –

“tríade das tríades,”
“triplamente sagrado
e perfeito” – o que se

resolve –
na mutante
cadente destinação?
*

De certa forma, o jogo
em que algo se esconde
na casca da noz, uma

pedra ou moeda, e
a mão mais veloz
que os olhos –

como podem ser nove,
e não três
alternativas, a não ser

que sejam
três imaginações,
e são dois jogando –

o que dá seis, mas
o mundo é real,
mesmo em si.
*

Mais. Nove meses
da espera à descoberta
de vida ou morte –

outra vida - outra morte –
não a sua, não
a minha, como se vê.

*

A diminuição gra-
dativa da progressão
dos produtos que

me fez lembrar:
nove vezes dois é um-oito
nove vezes nove é oito-um –
de cada termo,

atrás, adiante,
então, o mesmo
número.

*

Que lei
ou
mistério

que ama
se
ocultar.

Zero

Onde está você – que
por não estar aqui
aqui está, mas aqui
por não estar aqui?

Não tem atalho pro real –
a mente,
qualquermente,
o perfaz. Você

passa os anos
nonada, nenhum
lugar que eu saiba tanto
quanto o ar

que aspiro, soprando a fumaça
pra fora da boca
também dá no nada,
e este é o destino.

*

Estudando sistemas primitivos
parece natural, desde o dez,
o retorno do um –
mas isto não é dez – saído
do nada, o um, retorna –
brasileiros têm um jeito meigo –
alguém já disse isso –
de “não fazer nada” – Que mais
devem, conseguem, fazer?

*

O que
por não ser
é – e não
por ser.

*
Apreciamos no queijo
Os vazios saborosos.

A arte de ver, em 3 passos

1
Deixar o sol entrar nos olhos:
Um pequena bolha azul nas pálpebras,
A manhã tecida nas veias



2
Olhos de prata:
Ao dormir aninhar-se
Nas asas da águia.



3
E pensar que se é uma flor
Que nos olhos-pétala
Traz a fria substância lunar

Ficando racional

1
Eu, de preto,
Escalpelo cachoeiras,

Rumino pétalas,
Aqui com meus botões.


2
Reparo no jardim:
Sua verde geometria
São cabelos de alguém.

A flor azul do delírio
Não cede à tentação
Amarga de provar seus sabores.

Tudo o que sei é de uma estrela negra e fria
Cravada em meu peito
E que quando a estrela se acende
Rebrilha de violeta a azul
E flore em minhas mãos, cheias de pétalas.
E embora nada neste momento o diga
Uma estrela negra virou uma flor azul
Que virou um pássaro:
O pássaro é branco e amarelo
E vive no fundo do mar
O pássaro absolutamente não canta
Mas salta com seu bico pontiagudo
E fere meus olhos.

E isto no exato momento em que eu ia perigosamente
Me aproximando de alguma palavra perdida.

Antes de eu reparar no jardim
Me lembro de outra flor preta que havia
Apenas notada quando alguma caminhada banal
Trazia um incômodo a meus pés.
A florzinha logo se mulitplicou
Rápida e discretamente
E eu só percebi a proliferação
Quando as feras já alcançavam minha garganta
E em tudo o que digo
Sinto
Um odor de flores azuis.




9/15/2011

Do meu caderno de experimentações - XLVI

Sento-me no parapeito do silêncio. Se estender o braço para fora, cederei ao peso das mãos.

Porque mãos pesam quilos e quilos. Toneladas.

O amor rumina dentro dos dedos.

É muito difícil baixar o volume ou gritar alto, mais alto, em noites assim.

Eu?

Nem ouso empinar a cabeça. Estou ensopada pela bruta sanguinolência dos ursos, que se espreguiçam e bocejam devagar.

(Pouso a mão sobre este sono. Peso.)

O amor rumina dentro dos dedos.

Nem ouso...

Em breve o meu rosto há de ser uma flor a se abrir ao meio-dia, implacável.

Sei que a música, o hino sulfúrico da morte, há de esbofetear — os dedos longos, longos, tanto amor — a minha face direita.

Oferecerei também a outra.

***

(Também publicado em De Ter de Onde se Ir)

9/11/2011

Combustão Humana Espontânea

Mesmo que eu me cale, as palavras continuarão me invadindo. Palavras sopradas, inoculadas, jogadas de todos os lados prosseguirão seu trabalho persistente de inflar a alma. O mero silenciamento não é capaz de deter o processo, tão natural quanto qualquer outro, em que as palavras se misturam à vida dando origem a um sujeito inchado e combustível. Se eu fechar a boca, paralisar os dedos, conter-me, apenas adiarei a explosão inevitável. Sem contar que as palavras não decantam como matéria inerte num canto escuro de você. Brisa cheia de dentes remoendo as sensações, água-viva queimando a mente, matéria inflamável na alma –


deus azul inexistente, me ensine a arte sutil das metamorfoses.

9/09/2011

Fé, sofrimento, esperança (outra maneira de ir do Gênesis ao Apocalipse)

I
Ter fé é sofrer por antecipação. É ter o mundo como um poeta, que ri com o mundo nas mãos, ainda que por um instante, mesmo sabendo que – depois de um piscar de olhos – fugirá. Mas é melhor ter o mundo, ainda que sofregamente, que nunca tê-lo tido.

II
Ter um devir-artista não é uma escolha: é uma sina. Não se escolhe ter um ímpeto: o que atormenta seu sono, que lhe impele a criar, independentemente das adversidades. Não se escolhe ver o mundo de uma maneira que a maioria não vê: apenas vê-se. Diferente. Assustador. Não consigo voltar atrás, ter a vida mais simples, rir com a devida inocência de quem é criança a vida toda, sem o saber. Por outro lado, tenho a inocência de uma criança, de quem tem sempre a esperança. Um brilho no olhar com um detalhe que se torna, simplesmente, poesia. Devaneio, sonho, vontade. Assim, vivo. Sobrevivo. Diante de tudo, ainda sonho. Não sei viver de outra forma. Por isso, acredito.

III
Não te conheço, mas já te amo. Ainda não olhei teus olhos, mas sinto que, em um dos momentos de meu cansaço do mundo, encontrar-te-ei. Tenho tanto amor em mim que consigo ter a ti. Mas isso não me basta. Não poderei completar minha jornada sem aquela crença que, em um momento de minha descrença, chegarás. Não me salvarás, pois serei o mesmo contigo. Apenas lamentarei não te ter conhecido antes. E, com a tua companhia, poderei – pelo menos durante a eternidade – viver.

O que é saudade?

Saudade é um
espaço
que crio no
tempo
e que a cada vez me
distancia
toda vez que dela me
aproximo.

9/08/2011

cansei de escrever poemas, qualquer embriaguez
traz melhores resultados, pois é, cansei
de escrever poemas, os dias não passaram
mais lentamente ou mais rapidamente,
a cidade não se ergueu da anestesia, os diários
ainda não registram aquilo que na vida
acontece, uma sinfonia de vozes continua
vibrando sem dizer nada

cansei de escrever poemas, cansei das rimas,
da falta de rimas, da prosa, da invenção,
de ser barroco, de não ser barroco, de buscar
entre os poemas os que não mostram lugares
comuns, de tentar entender o que se move
entre o som e o sentido, de tentar ver o corte
que existe entre as palavras, de tentar mover
as palavras, moer as palavras

cansei de escrever poemas, cansei também
da embriaguez da poesia, mas não posso
dizer que já aceito o assalto do real e não
consigo ainda diferenciar uma coisa da outra
mesmo cansado da poesia e não aceitando por enquanto
os tributos que o real nos impõe às claras, cansei
de falar com as paredes, cansei de mover
outras vozes sobre o silêncio

cansei de escrever poemas, cansei da métrica,
do compasso, da palavra exata, do verso
livre, do cinismo da linguagem, da entrelinha
e, no entanto, não sei o que fazer no lugar
de poemas, não aprendi qualquer outro meio
de abrir fendas nos muros do mundo,
de pintar grafites nos desertos do mundo,
de não dizer sim com o silêncio

Depois de ler A Arte da Memória de Frances Yates


Você grava na mente o planeta que se expande como um vôo e

De leite a branco, de branco a ar, de ar a outono. Declinar-se frio e úmido. Alma evapora do mel, alimento de deuses. Semear o girassol vermelho. Fazer amor com a puta de olhos furados e orelhas cortadas. O leão é manso aos pés do mago. Um carneiro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de elefante.

Você grava na mente a lua que se dissolve e cria musgo em seu sangue e

De lírio a azul, de azul a água, de água a inverno. Declinar-se frio e seco. Alma evapora do leite, alimento de deuses. Semear o trigo branco. Fazer amor com as chamas de um incêndio. O lobo é manso aos pés do mago. Um touro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de leão.


Você grava na mente o planeta que se enrola em suas veias como arame farpado e

De sangue a ocre, de ocre a terra, de terra a primavera. Declinar-se quente e úmido. Alma evapora do trigo, alimento de deuses. Semear o lírio verde. Fazer amor com a princesa na cama de espinhos. O elefante é manso aos pés do mago. Um carneiro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de lobo.

Você grava na mente o sol até que ela cada vez mais quente brilha e
De trigo a amarelo, de amarelo a fogo, de fogo a verão. Declinar-se quente e seco. Alma evapora do lírio, alimento de deuses. Semear o mel azul. Fazer amor com a virgem de dentes pretos e língua de serpente. O leão é manso aos pés do carneiro. Um touro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de mago.

Tudo isso supondo que os caminhos são bifurcações em série a partir de um mesmo centro brilhante esquecido mas real e que o mergulho ou o vôo levam à mesma divindade, que a sua matéria-prima mais íntima pode ser vista se você olha para o alto e a dor ou a alegria na sua alma repercutem nos cristais celestes, quando por seu lado, melancólico leitor de livros de história, você olha pela janela e se depara com o nãocriado e persistente silêncio e o escuro, ou, mais que escuro, transparente silêncio que persistirá e não precisa de você e a memória é uma sangria desatada correndo para todos os lados enquanto se indaga sobre como harmonizar estilhaços do sol.

Sem começo, sem fim: quer dizer, pelo menos sem começo pelo que eu me lembre e sem fim porque não adivinho o sentido. Quando eu era criança, tínhamos no apartamento um armário que me dava uma estranha sensação de mistério. Ele ficava na área de serviço, era embutido, pequeno, quadrado, baixo, muito escuro por dentro. Para piorar, em seu fundo a parede estava meio arrebentada: como se ele tivesse um buraco, uma outra porta, um portal. Mas ele era usado para guardar garrafas vazias, de cerveja, vinho, cachaça (um pouco mais ou menos do que 30, mas não exatamente 30). Ainda assim, tínhamos que ficar longe dele. Teia de aranha e cheiro de barata morta. Eu não o imaginava como um esconderijo, mas uma passagem. A fantasia mais apaixonante era que ali eu encontraria um túnel que me levaria ao terraço do prédio. Um túnel: as garrafas estavam ali fazendo o papel das coisas usadas pela banalidade da vida, tédio e rancor lento entre as paredes frias. Mas, eu poderia passar por elas, mesmo que me ferindo um pouco, eu não tinha medo da asfixia: minha própria respiração produziria, magicamente, o ar puro necessário. O escuro absoluto seria vencido por minhas pupilas que iluminariam por si mesmas minha própria visão.

Pos-escrito: Existe um novo modo de as palavras operarem mágicas: é o mundo que se desperta quando elas são pronunciadas, a vida que apreende seus próprios caminhos, cada nova enunciação é uma carta de intenções cósmicas enviada à sua memória pelos recantos em que a imaginação faz a passagem entre o seu destino e o coração perdido das coisas.
Esse é o meu Teatro da Memória.

9/04/2011

Quem disse que a liberdade é leve

Erros de datação interessam ao espírito
crítico. Quem respira Mistério sabe que dia inexiste ou hora: a mesma boca que profere é a boca que mastiga. Kronos é uma pantera que canibaliza a lógica do tempo.
Quem disse que a liberdade é leve
não tem volta ou abrigo: o calor estende a mim suas mãos, me agarra pela garganta, vem das paredes da minha caverna: fratura exposta rasgando a carne da cidade, fios elétricos ligando almas e letreiros luminosos.
O excesso de luz apagou as estrelas, o excesso de música banaliza todas as vozes, o esconderijo foi soterrado, o velho apartamento é habitado por outra
família.
Quem disse que é leve a liberdade?


8/31/2011

No fundo do convento, um jardim – depois do jardim, vemos um vale coberto de mato virgem e mais adiante encostas de morros com casas: varandas, roupas secando, carros velhos nas garagens. O jardim é dividido em três patamares de forma retangular, separados por muretas de concreto carcomido. No mais alto, alguns bancos que devem, um dia, ter sido azuis. Nos três níveis do jardim, a grama seca tem tons amarelados, de palha, em meio ao verde-pálido. No mais baixo, um fino cano metálico azul, vertical, parecendo um caule decepado, irriga a grama, sob o sol da manhã. Girando rapidamente, o irrigador esparge água, jogando grandes gotas para o alto e para todos os lados. Forma-se sobre o irrigador uma cúpula, uma esfera pontilhada de gotas que brilham e se apagam. Cada gota faz uma viagem veloz do caule de azul metálico ao alto, do alto gira num arco lateral e enfim cai sobre a grama. É esse movimento que, quando visto como um todo, dá a impressão de que observamos um lustre formado por vagalumes líquidos. A luz da manhã, oblíqua, entra em cada gota, fazendo dela um tipo de cristal efêmero. Não vemos o caminho que a luz faz antes de chegar às gotas: é como se ela viesse de dentro da água. Por trás da cúpula assim formada – uma flor abstrata – vemos uma árvore frondosa, para além da árvore, o vale com seu matagal e seus bambuzais, mais além – a cidade. Um tecido diáfano criado pela dança da irrigação funciona como um véu quase transparente sobre a paisagem, quando a miramos usando as gotas de água que giram no ar como foco. O mundo, assim, é revisto novamente: tudo muda de figura quando olhamos com atenção para um irrigador azul e suas pétalas de água sob o sol oblíquo.

8/28/2011

passagem


I
o barulho das máscaras caindo
me deixou surdo, não há nada
debaixo do chão e apenas
alguns mícrons nos separam
do abismo, mas ninguém esperava
o baque surdo de tantas
máscaras

as orações que eu escrevia, ela nunca
suspeitou que eram para o deus
ninguém, porque no fim, como já
desconfiava, ninguém viria me salvar
a pele como divindade que não perdesse
a lucidez enquanto o verdadeiro rosto
aparecia

II
vou deixar a cidade’, ela disse, ‘de vez
em quando as coisas se perdem
de vez
’, as cores deviam ser doces
e nunca soube porque elas ferem,
eu disse contraindo os olhos como sempre
faço quando minto,

mesmo tentando
pôr os cinco dedos por entre as barras
do código de barras, daí saber que não
é uma janela nem uma saída
da embalagem dos dias repetidos, avenidas
tristes, raptos de sentido, céus sombrios
de um verão iluminado

III
em que ninguém sabia o quanto de real
traziam os versos que escrevi nas margens
daquela embalagem

O Livro segundo o poeta

Quando o homem criou a palavra, ela se desprendeu de seu criador. Jamais o homem reencontrou a si mesmo; sempre encontrou em si uma dobra indiscernível entre as palavras. Por isso, o homem criou seu maior erro: deus. Deus era, então, o criador da palavra, que teria tirado o homem de sua essência. Mas, ao mesmo tempo, o homem depositou em deus a confiança em que ele iria juntar novamente criatura (palavra) e criador (homem). Assim, deus teria a tarefa mais difícil de todas: a de escrever o Livro. Nele, estariam todas as palavras que foram faladas, e que serão repetidas para todo o sempre. Mais uma vez, o homem escreveu em palavras aquilo que deus, em sua tarefa infinita, deveria fazer. Ecce libro. O mundo jamais foi o mesmo. Todas as palavras estavam, enfim, ditas. Com Ele – o Livro – o homem teve novamente a fé. O homem acreditou que, agora que tinha o Livro, que a palavra estava sob seu poder. Mas, a palavra, filha de Prometeu, sempre soube fugir de seu criador, para muito além do Livro. O homem teria, por sua vez, perdido a fé. Mas a fé não está em deus, que nunca conseguirá juntar o que o homem, felizmente, separou. A fé está em cada um, que, no momento em que se põe em palavras no espelho, sempre encontrará outro. A fé existe, apesar do Livro, apesar de deus. A fé está na redescoberta diária da dobra indiscernível da grande criação do homem: a palavra. E, pela palavra, acredito todos os dias em seu poder, em sua glória, em sua beleza. Um dia, a palavra sobreviverá a todos nós. Desta maneira, dedico-me a ela como um monge, como se minha vida fosse uma oração. Gostaria de ser poeta. Mas somente a palavra o dirá, se o quiser. Assim seja.

8/27/2011

algumas ironias













algumas ironias

____________________________



          (a felicidade plena)

quando eu tiver um loft novaiorquino

.*.


          (o amor pleno)

doze ninfas dançando ao redor de minha preferida

.*.


          (o sexo pleno)

quando eu tiver todas as beldades da cidade,
sem ter que pagar por isso
(nem tempo programado)

.*.


          (o escritor maldito)

tem tanta gente querendo ser diferente, que o diferente se tornou
igual, é uma peste de gafanhotos, dessa forma teremos que voltar
a rimar amar com luar.

Ponto Zero

É preciso
congelar o momento
refrigerar a alma
petrificar o passado
parar.

Fazer da vida
um ponto zero
para poder,
simplesmente,
continuar.

Não me diga nada,
não mais ouvirei.
apenas em meu futuro
devo
caminhar.

Não sei para onde irei
mas vou com a certeza
que irei hoje
apenas ao longe
recordar.

8/25/2011

O Psico-Sacerdote Oito-Olhos Fala: (poema tirado de um email crente)

Independente "lixo humano" desconhecido por quem só teve a oportunidade de ver fotos, curtir os talentos inerentes como se a vida pudesse ser vivida através do "faz de conta" e drogas na falta de família artísta-SENSÍVEL, amor não, Isso é fato.
Porém quem tem de visitar o próprio inferno que ama deveria ser mesmo sinônimo de LIXEIRA Em decomposição! E dói muito passar!!!
Ninguém opta por lixo, ser humano quer ir para a lixeira...entretanto, a minha maior intenção é a de pararmos de olhar o cachorro faminto que vê o frango girando na assadeira do açougue ao alcance de sua boca. Lutar contra o ser humano, lixo descartável(sem chances de reciclagem).
Eu sou prova real com tantas lutas e hipocrisias que reconheceram JESUS CRISTO COMO SEU SENHOR E SALVADOR.

Sou SIM,não por opção,mas,por reconhecer JESUS, contudo,o apelo é maior, foi por opção,fraqueza ou demônios.
E ainda se sentir bem achando explicações científicas razoáveis: como alguém pode se dizer feliz cristão, é sinal de que todo sofrimento serve.
Da lixeira em que se colocaram nessa vida através de Cristo Jesus-CAMINHO,VERDADE,E FALA SÉRIO!!!
FILOSOFIAS BARATAS...!!!
VIDA REAL,
Ser Cristão é ter certeza sozinhos com as escolhas que fazem.
NÃO INTERESSA O QUE LEVOU AS PESSOAS QUE EU AMO(MESMO AS QUE EU CONHEÇO) A SE TRANSFORMAREM NUM LIXO HUMANO.

8/21/2011

Poesia, ou como produzir vazio no espaço


I
O espaço produz
vazio
entre cada linha
de minha
solidão.




II
Só existe poesia
quando cada palavra
se afasta de
si mesma e cria
uma vida
impossível


III
Olhar para o
passado
é produzir
vazio,
porque não são
as coisas
que não deram certo;
nossas ilusões
é que
não se concretizaram.

IV
Olho para seus
olhos
e vejo
uma alegria contida
uma saudade imensa
uma frustração evidente
uma vontade de repetir
o que fomos e
o que nem fomos.
Não, não podemos
voltar atrás:
nossas vidas
não são mais
as mesmas,
nós não somos mais
os mesmos,
o rio passou
Passamos.
Apenas o vazio.


V
Do vazio
sai a esperança
em forma
de
Poesia,
criando espaços
que me recriam
que contradizem
que me sobrevivem
Preenchem.
Por isso,
Escrevo.

8/18/2011

A minha Carta ao Pai

O mundo hostil: a beleza do céu que se tinge de dourado a vermelho, passando por um azul que mais parece o leito do mar: como a luz é frágil frente ao vento que luta por apagá-la com sua boca de múltiplas mandíbulas frias: você apenas queria ter feito um mundo menor, mais hospitaleiro para suas crianças. Dói vê-las partindo no escuro rumo ao horizonte, num rio sem foz, numa noite sem estrelas, cada uma segurando apenas uma fraca lamparina. Não há tempo pra secar os olhos. Você plantou sementes de fragilidade e elas brotaram como feridas, minúsculas, na torrente que alguns ainda teimam em chamar de cosmos.
Nesta noite sob uma luz estranha, pálida, uma espécie de demônio circulava pelo meu apartamento. Deu pra ver, de relance, o minotauro passando além do espelho. Barulhos de coisas se mexendo na cozinha vazia. Quem teria motivo para me rogar uma praga e fazer de minha vida um ritual de magia negra. Alguém mastigava os restos de comida e ria com a boca cheia de lixo. Não somos nada perto do mundo e suas razões, fomos expulsos (ou nos expulsamos) de todas as hordas. Remamos sozinhos e já não sabemos se o flutuamos sobre o rio, o vento, ou um céu de pontacabeça.
Com o pouco de calor que herdei de você, e que você por sua vez herdou de outros, preparo um leve equipamento de mergulho. Crio ao meu redor uma fina capa de silêncio que reflete o ódio e abraça o amor. Não sou tão frágil como você pensa.




8/11/2011

Pro meu livro de orações

Mar de águas estagnadas misturadas com betume sacos plásticos merda de crianças mijo de velhos bêbados e carcaças de caranguejos –

Alma, onde tudo vai parar:

Sonhos frustrados, livros que descrevem sonhos frustrados e livros que são sonhos frustrados quantas palavras
intrigas palacianas, o senador dá uma entrevista antes de entrar no avião, mensagens apocalípticas nos túneis da cidade.

Rezar é vomitar entulhos.
Rezar é falar devagar com a língua cheia de lama, cuspir alma pelos poros do corpo revoltado.
Eu gosta de brigar no trânsito. Eu tem razão. Eu é uma mala pesada que alguém tem que carregar e rezar não é pedir proteção ao Altíssimo
administrador de cartões de crédito, é abrir uma fenda no concreto-carapaça de Leviatã.

Só sabe rezar quem é soberano.





8/07/2011

Ele me disse, vem aqui, vou te mostrar uma coisa interessante.

Um pássaro voa devagar, um pouco acima de nossas cabeças. O pássaro tem uma cara estranha, meio que de peixe, olhos opacos, boca em círculo, três fileiras de dentes muito finos, afiados, longos: de madeira envelhecida. Uma mariposa começa a seguir o pássaro. Asas negras de rímel, grandes, movendo-se levemente como se estivéssemos num oceano, ou pétalas. O corpo, meio inchado, parece que vai explodir. Dá pra ver as articulações que trabalham de modo desorganizado. As pernas não ficam paradas, movem-se desencontradamente à procura do chão, como se o bicho estivesse caindo.

Ela não sabe que voa?
Peraí! Não é isso: olha, é ela que vai atrás dele.

Num impulso, o pássaro expande a boca e engole a mariposa. Ele não demonstra voracidade, fome, qualquer sinal de violência. É calmo, impassível como uma fera marinha. Dá pra ver a mariposa se debatendo, por trás dos dentes trincados do predador. De repente, o pássaro abre a boca e a mariposa voa novamente. Intacta.

Ainda não acabou, ela vai atrás dele de novo.

E acontece. Ela não foge, não quer sobreviver? E ele, não está à procura de alimento? Por que esse estranho balé que não causa prazer aos bailarinos – e muito menos ao público? O pássaro, como se estivesse programado para isso, abre a boca novamente e engole a mariposa. Pode ser algum tipo de hipnose. Dá pra ver as asas negras entre os vãos dos dentes de madeira. Só que, mais uma vez, ele solta a mariposa. Mas agora ela está com as asas quebradas. Viva, porém mal consegue voar.

O segredo da sobrevivência está no gosto. Ela não foi feita para se camuflar. Mas, se defende com o sabor intragável dos seus humores, expelidos no primeiro contato com os dentes do predador.

8/02/2011

Esquizofonia: Sinfronia da Alvomerda

Pus no meu quase nãousado outro blog (vertigemdevestigios) a Esquizofonia: Sinfronia da Alvomerda completa. só vou por aqui nos comentários os procedimentos que usei em cada uma das 5 partes. Já baixei a Sinfonia da Alvorada, agora é distorcer a música e trocar a ladainha do Vinicius de Moraes pela minha:

Composição de uma esquizofonia baseada na Sinfonia da Alvorada. O que está em questão: o oba-oba, o monumentalismo, a sacralização do Estado, a verborragia e a ladainha do Progresso. Os procedimentos: Parte 1: alterar aqui e ali pra trazer à tona o insólito, grotesco, encoberto. Parte 2: mudar alguma coisa pra pensar o verdadeiro herói do Cerrado, não O Homem e sim O Playboy. Nas citações de Lúcio Costa e Niemeyer (Horemheb e Aracnodactilia): distorcer as palavras para esquizofrenizar a paranóia do signo despótico. Parte 3: Hiperbolizar a hipérbole: megalomanizar a megalomania: o resulto é expor o seu irrisório. Trocar os locutores por locupletores, fazer o texto falar. Parte 4: Despojar, que no caso torna até mais insano, se é que isso é possível. No CantoCão Picotar as frases, fazer a sinfonia gaguejar. Parte 5: enfim, o couro procurando o nome da cidade de suas taras.

7/31/2011

Poema tirado de comentários no youtube



Aí esse que morreu já dá pra ver o sangue escorrendo lá ela matou bem o bem mata bem os dois favelados pena que um correu um inútil a menos pra sociedade parabéns à polícia brasileira ela queimou pelas costas podia ter estourado a cabeça a bala entrou nas costas você quase ouve o pipoco até fico de pau duro pensando no barulho de osso de favelado preto se arrebentando mas a cabeça é muito pequena o certo é meter fogo na nuca que mulher mais corajosa quero me casar com essa dona primeiro ela chupa o cano do revolver depois nem precisa comentar né se todo policial fosse assim seria mais gostoso é cada vagabundo que merece se regenerar é no inferno ainda bem quase esburacou a costela de porco que tava ali ali ó no balcão podia ter pipocado a melancia que prejuízo a sociedade mas foi só o lado esquerdo da costa do vagabundo bandido tem mais é que morrer não interessa por onde a bala entra eu trabalho pra dar balas pros meus filhos porra só quem critica a Heroína é Zé ruela os dois favelados nem sabem onde carregar a arma são dois incompetentes que andam de chinelo foi uma ação de legítimo ataque ela só errou na tática devia ter metido a bala no cérebro do primeiro comido a massa cinzenta espalhada no chão metido bala no segundo e pegar o sangue ainda quente pra fazer uma panelada ao molho pardo pra servir no jornal nacional de qualquer jeito é um vagabundo a menos não tem que dar voz de prisão a voz do povo é a voz de deus e está provado que deus é canibal

7/29/2011

Falsos poemas do interlúdio

I

Entre dois
nadas
Sobrevive
a poesia


II

A moça do carro
sozinha e assustada
me vê atravessando a rua

Ela, mesmo assustada,
não me deixa passar.

Por que, mesmo que por medo,
não me fez uma falsa gentileza?

Fiquei pensando:
hoje em dia, ninguém faz gentilezas
nem para as pessoas que dizem amar,

Quanto mais
para o desconhecido sozinho da rua...

III

No vazio da espera
uma lágrima cai
sozinha
sem motivo.
Não molha nada.

Enquanto o nada não chega
leio Drummond no shopping,
por puro cansaço da existência.

IV

Enfim, casa arrumada,
poucos problemas,
um pouco de dinheiro sobrando
no bolso.
Profissão estável,
silêncio,
liberdade.

Enfim, infeliz.

V

Ontem disse que não conseguiria
te amar.
Meu coração está vazio
e não sinto o que queria sentir
por você.

Hoje,
nós dois,
sozinhos e tristes,
encontramo-nos,
cumprimentamo-nos como amigos,
olhamo-nos nos olhos
– foi quando vi tua tristeza –
e trocamos palavras vazias.
Tu foste logo embora.

Eu,
sozinho,
entro na livraria.

VI

Até quando dura um nada?

VII

Vi o teu retrato por aí
mas não senti nada.
Não sei quem és
o que sentes
se me amarias.

Da minha parte,
apenas a espera.
Olhando um retrato
de quem talvez
um dia me conheça.

A vida num dia

Entro no elevador. Um garoto, por volta de 12 anos, cego de um olho, entra com seu pai: um vaqueiro. Fico olhando o mostrador, como fazem todos os que se incomodam com esse tempo curto mas lento de nada fazer e intimidade forçada em elevadores. De repente, o vaqueiro me segura pelo braço. Nada posso fazer, sou um fraco urbanóide. Ele fica me dizendo, por que você mexeu com meu filho? Foi ele, não foi filho? Foi sim. Eu? Eu mesmo? Tem certeza? Vocês não estão me confundindo com alguém? Escuta aqui, você está sentindo o que está na tua barriga, olha pra baixo. Olho e vejo e assim que vejo começo a sentir a pontada de uma faca. Vai você meu filho, vai você. Fico olhando perplexo, sem ter o que dizer.
Na luz do dia, ela me diz que eu devo ter sido um fazendeiro filho da puta numa vida passada e no sonho fui cobrado por isso. Eu não, não acredito em vida passada, não desse jeito: um eu que vai se desdobrando, rebatendo, entre situações, como uma bola quicando pelo mundo. Mas, por outro lado, tudo o que acontece tem causas infindáveis e intricadas de um modo quase ininteligível, para além da imaginação e do controle do euzinho aqui. Poderia ser o seguinte: meus antepassados do nordeste, suas fazendas, suas histórias. Sempre ouvi que eles cometeram as piores violências. A donzela enterrada viva com o escravo com quem tinha trepado. De tudo isso há memória em meus pequenos atos de arrogância. No sonho fui cobrado por isso. O menino deve ter cismado com uma de minhas primas, hoje misturadas à poeira, e teve o olho direito vazado, só como lição.
Começo de noite. Desço o túnel: íngreme espiral. Monotonia de espaço curvo, fracamente iluminando, com chão, teto e paredes cobertas pelo mesmo carpete marrom. Ando colado à parede: a curva é fechada, como se andássemos em círculo ao redor de uma simples coluna cervical, vertigem leve num estranho labirinto. Ao fundo, a cratera iluminada, onde ela me fala de amor trocando olhares com outro. E fala sem dizer nada, apenas girando o corpo, os braços quase transparentes sob a luz intensa brancoverde. Ela e o outro se olham fixamente, eu me vejo sendo amado por meio de um artifício que me faz ser ninguém. Entre os deuses ctônicos, a vida pega fogo: ela se desdobra como se de seu corpo brotassem pétalas-labaredas que só se acendem quando se chocam com minha mentecoração. Eu estou ausente, no escuro: novelo de nervos expostos. No fim de tudo, ela me procura.
Dormimos abraçados. No vazio.

7/26/2011

Sonhos - II

aguardava que medissem minha pressão.

*

as caixas do sistema de som da clínica transmitiam a seguinte mensagem: doutor marcelo, emergência, doutor marcelo, sua esposa aprenderá contorcionismo para poder chupar o grelo.

*

quis avisá-lo que os pássaros também pinçam as penas quando se viram para o lado em que a rainha morte dorme.

*

(box casal, queen size, de mármore.)

*

uma enfermeira fazia vitrine-viva à porta do consultório. meu nome inteiro, lembrei depois, reverberava naquela boca acrílica. havia chegado a hora: sentei-me no banco ao fundo da sala.

*

a braçadeira transformou-se em questão de segundos num corpete para moças anoréxicas. era o meu sangue, o meu pulsar intermitente, que a mulher fechara a vácuo. a velcro.

*

seus dedos longos masturbavam freneticamente a bomba de ar. tive medo de falir, sim, de morrer

*

por excesso de hemopornografia.


(Também publicado no blogue da autora.)

7/23/2011

São tantos os motivos pro amor não dar certo. A começar pela absoluta imprecisão sobre o que significa dar certo (a medida do sucesso é tão burocrática (e a burocracia interdita

o amor)). Vejo as ruas desta cidade perigosa, a noite caindo como um estranho dourado sobre o céu azul, um pastor evangélico e uma ex-atriz vociferando contra

o amor e como eles merecem o aplauso do cara solitário que leva sua caixa de cerveja pro apartamento onde vai passar o feriado de corpus christi tocando

punheta sobre o amor, indefeso amor. O cheiro de tiner que sentimos ao ler o jornal e como se dizia antigamente os caras só querem meter

a faca e como o amor é celebrado, as frias flores tristes na vitrine e o que significa ser feliz, usar a buceta da mulher amada pra estourar

pipocas enquanto a cerca elétrica mata pássaros e meninos e um anjo

caído queima um bilhete premiado no canal de esportes. E nem tudo é questão do lado de fora, ainda trazemos o veneno, veja como quando você respira se engasga todo com os sapos que vomitam em sua garganta e mesmo que não queira ou acredite deve prestar contas porque se a felicidade é exigida junto com o amor a Alegria e o amor são interditos e não há nada de mais ridículo do que um professor apaixonado se perguntando onde ela está onde ela está com esse monte de citações encobrindo o seu corpo sagrado

amor.

7/17/2011

Do meu caderno de experimentações - 1

SEM TÍTULO

1

rótulas, gaiolas.
ejaculação de voos pelo cálcio, ave-osteoporose.

2

corpo é cerca cio adentro.

em cada felpa, em cada farpa,
um anjo errado irriga a sua cidade vascular.

3

como é alto o som na ponta escura
desta corda, incubadora-kamikaze,

4

como é fino
este cordão umbilical para virar cabo-de-guerra.

5

(todo amante
atira o filho da sacada que há nos fundos, no final,

do coração.

todo sol atrás é um ninho de fuligem e de fumo.)

6

corpo é um terço
muito curto, uma oração que aperta cristo,

7

(rótulas, gaiolas),

parapeito em que chacais
se inclinam para entrar na vida de cabeça.

8

caem os órgãos aos pedaços.
comunhão de porra, muco e baba.

9

morte vem lubrificada: fácil passar.


(Também publicado na Revista Germina.)

7/15/2011

Já que estamos falando de sonho...

1.
Quando sonhamos choramos por dentro
Espasmos de alma
Ou de corpo, é incerto.
As lágrimas não são mais
Leves – apesar de acordarmos
Com o rosto enxuto e os olhos
Em poucos segundos livres
Das larvas que comiam as pálpebras
Por dentro e claros para um dia
Turvo.
2.
Quem leva essas larvas
Pra dentro de si
É outro – elas te perseguem
Sementes plantadas em tua carne
Por algum lavrador: incógnito,
Elas roem a alma com palavras
Inventadas pelo absoluto
Alheio: quem seria o autor
Se todas elas são você
Em seus sonhos, nem delas
Nem teus – não são de sua lavra
Essas larvas que carcomem
Os olhos
Por dentro.

7/13/2011

Sonhos - I

(Marceli Andresa Becker)

afundava a colher no musse de maracujá — numa das rachaduras finíssimas que o creme inventa depois que gela — quando me lembrei do sonho da noite passada.

*

teria de inserir um pen-drive no pé. havia um corte específico à espera na região mais delicada da sola. era uma fresta, uma janela vasculante, enferrujada, de onde se conseguia enxergar o açude rubro em que me ensopo diariamente.

*

(a poucos metros de profundidade o tétano tomava conta de um peixe. quanto mais próxima a morte lhe parecia, caveira cáustica, mais a sua boca se abria, se abria, para cantar.)

*

fixei contra o peso do corpo aquela imensa verruga plástica. pendurada, assim, virava brinco em formato de tala (pense nas que são usadas para imobilizar braços).

a tarraxa era o meu osso.


(Também publicado no blogue da autora.)

7/10/2011

Conversa Fiada com o Capeta (vulgo Dr Penico Branco)

Com minha gravata preta de papelão, toda estampada com desenhos de copos mais a palavra cocktails em cores amareloverdes vivas e brilhantes, amarrada no pescoço por uma corda de nylon, abro as portas do Porão Inolvidável e... quem me espera de braços abertos? O Dr. Penico Branco e seu tridente.
- Welcome Mr Ego. Você por aqui?


6 6 6


Tem uma roda dentada soltando faísca no corredor de entrada do meu ap já to vendo a hora que a parede vai ser arrbentada e no meio da poeira uma mistura de Demônio e Doutor Penico Branco vai aparecer e me dizer: Eu estou aqui! E isso não é metáfora e nem alegoria é literal, tá rolando mesmo. A alma desse demonio e doutor penico branco é assim mesmo: uma roda dentada que fica girando em soltando faísca dentro da sua pança e por isso ele tem tanta raiva não importa de quem é de quem estiver na sua frente e isso também é verdade eu vi ontem de madrugada naquele documentário chamado O Exorcista.


6 6 6


Você está possuído pelo demônio quando se coloca na obrigação de replicar a ele, escolher um dos lados do dilema que o cramunhão te impõe. Não pro acaso: o demônio é dualista, diabolos: dois. Não por acaso, um de seus codinomes é MuitasVozes. Se você responde a uma simples pergunta demoníaca, você está no sal. Se você se justifica para o capeta, pior ainda. Um rolo compressor vai transformar sua alma em fita cassete onde estão gravados os Sete Nomes do Inferno. É como se diz por aí, com o demo não se argumenta, não se retruca, ele não vai mudar de idéia e se desdiabolizar, deixa ele pensar que está certo, meu caro!


6 6 6


Um fio de esperança: estilo mensagem demoníaca de Star Wars: no fundo há bondade nele. Esse é fio que o demo vai usar pra enrolar em teu pescoço e te esganar e como suas palavras vão sair sufocadas da sua boca! elE vai deixar entender que elE pode ser salvo, que elE tem suas virtudes, no fundo, lá bem fundo. É: no fundo. No fundo dos Infernos meu amigo!

7/04/2011

Ler é hipnotizar-se

Gosto de ler dizendo em voz baixa as palavras dos livros que amo. É como se alguém conversasse comigo ao mesmo tempo dizendo: não é com você. A suave presença silenciosa dela dormindo enquanto ando pela casa. Tudo o que resta da sabedoria, ou porque toda sabedoria é resto. Hoje antes de abrir o livro vi um pedaço do céu vermelho pela janela. Quando nos falamos, sua voz estava triste ou cansada, não sei bem. Mais cedo eu li um bilhete de alguém me cobrando sobre qual é minha mensagem. Isso eu li em silêncio. Não sou um ventríloquo de doutrinador. Agora leio essas palavras de um livro amado, cicatrizes em fundo brancoluminoso, enquanto penso em outras coisas. Sei que continuo lendo porque meus lábios se movem no ritmo das palavras enquanto divago, alguém deve estar recebendo-as por mim.


*

Escrevo loucamente para calar as conversinhas de mim comigo mesmo, alguém não sei quem fala comigo quando me desdobro interlocutores. As palavras, jogadas na tela ou no papel, são cicatrizes de um silêncio almejado.

6/28/2011

Não se entra duas vezes no mesmo rios

Mais um da série Fazer o Texto Falar (as montagens,
seguindo a técnica dadaísta de recortar as palavras de um texto, sortear
e montar um novo texto). Procuro respeitar ao máximo o sorteio, porque
ele é mais criativo do que eu, só mudo uma ou outra
coisa na pontuação, na concordância. As palavras, portanto, não são
de minha autoria. É da missionária em questão.

"Sim meus queridos mulher-com-homem, deixo de amá-los:
eu quero a lei para demitir a liberdade.

Como a mãe, como o meu empregado, se um rapaz,
como a cidadã, se um rapaz vai pro diário
quero a lei pra mim namorar.

Orientação sexual: missionária católica.

Eu prego nosso direito ao pedófilo
contra mulher com mulher ops
pensando em bolinar a orientação sexual de deputada estadual.

Não sou o próximo,
posso vir trabalhar pensando em demiti-lo,
quero defender a orientação da constituição que acabe com elas
e a igualdade e o respeito à mulher preconceituosa
não vou permitir ninguém querer meus primos lésbicas
se eu contrato, discrimino.

Quero ser oficial, se pronunciar para demitir minhas colegas.

Os direitos são meus filhos, e como.

Vou poder dar testemunho e ser respeitada por minha família sexual,
eu agradeço a escolha de ser uma pessoa muito sexual em casa:
homem com mulher, e um motorista para finalizar:
Malafaia não vai cometer uma disputa em casa, meus queridos,
e ele começa... sexual!

Por exemplo, a república é lésbica e eu não,
e eu convido vocês a demiti-la,
eu represento a pedofilia vestida de mulher:
mostrar que a constitução da maneira hetero me acompanha
e só vou permitir a violência de babá.

Ninguém é o próximo, digamos, pras pessoas lésbicas.

Deus é minha babá para perpetuar o Gênesis.

Deixando claro: eu eventualmente respeito a pedofilia dos deputados
contra a população travesti,
todos são meus filhos, na minha casa
e Deus criou os deputados, com certeza:
uma porta pra fazer nada;
respeito a sociedade federativa dos meus inocentes
e tenho filhos com homem e tenho meu voto.

Eu queria ser a menina de um Brasil sexual.

Amor é outra idade, agora não:
eu sou a babá da lei da espécie.

Clamo e vou clamar, vou orar e não vou deixar: não posso ter sangue
de raça homossexual."