10/30/2008

lugar



AQUI,
margem de tudo
trono apodrecido de juncos
absurdo de águas

não posso escrever limpidamente
pois meu pensamento
é uma mistura
de mar, ressaca e lodo

meio deitado
ou de joelhos
na areia, presumo
azuis roxos e lábios

ave em esgar,
um ramalhete de peixes.

sem emprego
sem nome
sem espada

nem guerreiros para comandar
sem escudo
sem estupro

nenhum olho de rei
para comer.



Ilha, 29 Out. 2008.

10/27/2008

Coisa à toa

Mastigando perdas
Como se fossem pedras
Dentadas, lâminas polidas
Em cristalina
Água de esgoto, ou

Entre peixe e refração,
Anzol banzo
Quando estou onde estive
E não sou, &, enfim

Aquário de canibais
Ornamentais
É a cidade submersa
Em pensamentos alheios,
Cheia de si, e daí
Saio de mim.

Caio na real. E daí.

A cidade está fora de si.

10/25/2008

nº 89


Recriar o mundo à sua imagem, delírio,
câmara escura, tempestades
de sinapses, a 140 pelo asfalto ou
entre os espelhos do paraíso, o chão
do seu pensamento batido
como uma lua (superfícies
geladas) por detritos
em dispersão, no vazio
das coisas, quando não há
saída ou passaporte neste exílio
de desertos, via expressa sem
acostamento.

(das "Notas Marginais")

10/24/2008

O criador de galinhas (mais sobre cidades)

Este aqui já tem uns anos. É sobre a cidade de Franca
+ leitura das cartas do Maquiavel.



1.
O dia esmigalha a noite
a noite retalha o dia
num vapor perfuro-cortante
insones olhos de areia,
lunaquáticos sob a névoa,
saindo pra dentro do lado de cá,
enquanto o criador de galinhas
parece vergar sob o peso da mala
como se mãos saídas de alguma caverna
algum poço de escuridão e palavras
e notas de rodapé e citações entretecidas
puxassem a mala ao chão,
como se a sombra, o pó e o nada
que preenchiam a mala
quisessem morrer, numa espiral
sangrar por ali mesmo
sobre o asfalto ou o chão com cheiro de flores químicas:

“papel sobre papel pesa mais do que pedra
mais do que chumbo
e não é por causa das palavras, que são etéreas,
mesmo as mais piegas,
é a matéria-prima vegetal,
sua capacidade de se espalhar no espaço,
de tomar tudo de assalto;
não é o saber que torna grave
o coração do pensador
é a brutal gravidade das coisas:
não são sem sentido os pesadelos de velhos bibliotecários
morrendo soterrados em livros
que despencaram das estantes”

matuta aquele que bem gostaria
de ser um mero criador de galinhas
enquanto conversa com o porteiro do hotel,
conversas simples e bucólicas
sobre um filho viciado, outro advogado,
a família de médicos e dentistas:

“Que a morte caia sobre todas as múmias egípcias!
E a professora maldita que me fez decorar
a lista dos malditos presidentes desta Merdepública!”
Como é bom falar com o povo simples,
saído das neo-pastorais policialescas puritano-paulistas,
embora este,
diz pra si mesmo o criador de galinhas,
não passe do figurante de cocheiro no Banquete dos Canalhocratas.


2.
Uma mula
Mais a mala
Uma roupa de veludo
E uma faca catalã
Um sobretudo
Mas sobretudo um porém,
esta cidade detona o meu desejo:
em cada esquina um príncipe maquiavélico
de cabelo nem preto nem branco, mas cinza turvo,
com pulgas passeando sobre a calvície evidente,
e no meio da testa uma cicatriz vermelha,
(marca visível dos proscritos enforcados nos postes públicos)
os olhos úmidos, de tamanhos diferentes,
o nariz protuberante, cheio de muco,
a boca torta como a de um tirano qualquer,
Um Lorenzo de Garrastazu Medici Vargas da Silva Bush,
de queixo pontudo e curvo,
acusando-me da conspiração
de que sou vítima
entregando-me a brutal carcereiro
intitulado macunaíma.

- Bom mesmo era criar galinhas...

Suspiro com saudade ao porteiro do hotel.
Mas de noite, fechado em meu quarto sujo,
quando abro minha mala
ela ganha a leveza de pássaros brancos
folhas de papel ao vento
munidas de telescópios pra imaginação,
cheias de vozes de antigos incendiários mortos,
pássaros conspiradores, sabotadores, bêbados,
exilados,
malditos como um príncipe esquecido num pedaço de papel.

10/22/2008

nº 88





Toda cidade tem os abismos que você necessita, olhos
errantes, bocas, labirintos, mapas de engano, cada vez
mais fundo, abandonadas
pra sempre todas as ilusões de quem vê
metafísica na pedra – paredes
não são coisa do espírito, cara, são
carne sem hormônios, mero cenário, fundo
disperso, e no palco a cena é do sangue que pulsa e invade
os tecidos, sem direção, aleatório como os cardumes,
como as moscas.

10/19/2008

2 anos


Pessoal, salvo engano fazemos dois anos de blog este mês. Masé reaparecendo com um poema dos bons, Anderson e Eliana meio longe (tudo bem com vcs?), Löis desaparecido. Daniel e eu teimosos como nunca.

No entanto acho que vou comemorar, dois anos são dois anos. E estamos indo para a marca de 15000 acessos, a maioria dos quais de nós mesmos, fora os nossos 2,5 inusitados leitores espalhados pela blogosfera - eram 3,5, mas um parece que, caindo em si, desistiu....Estes sim -os 2,5- merecem um troféu.....
Proponho que eles se cadastrem (se é que se revelarem leitores desta espelunca não vai lhe queimar irremediavelmente o próprio filme...), para que enviemos mensalmente para seus endereços uma mariola especial, daquelas de tacho, sem açúcar grudadinho por cima. Pensei também num picolé "Dragão Chinês", mas chegaria derretido...


abraços/beijos a todos os epistolares e leitores.


nº 21




Confessar, agora você pode confessar
que nada estava claro.
Discreto, mascarado, deu rasantes sobre o pântano
de sinais até beber a água escura,
lodosa, e ainda traz lama
em sua asa.

Pode ser que seja ela a cura.

(das "Notas Marginais")

10/18/2008

Relatório de mais um colóquio (ou, Porque trabalhar como caixa bancário deve ser mais gratificante)

“Começando pelos verbos: atravessar, repensar, instigar, inserido e focar.”

“é legal que o Vesúvio tenha inserido suas lavas em Pompéia, porque agora temos um sítio arqueológico intacto e instigante”

“a lava preservou o salão das pinturas eróticas”

“mas focou a pica do prefeito de Pompéia, pão e circo de auditório cultural”

“e se o Vesúvio tivesse estourado sobre Uberlândia, repensaríamos os vestígios que restariam, por exemplo a lista telefônica (o instigante mapeamento da cidade)
AÇOUGUES/ACRÍLICO AÇÚCAR/ADVOGADOS
ADVOGADOS/ALARMES AR/AREIA BISCOITOS/BLOQUEADORES BOMBAS/BOUTIQUES CABELEIREIROS/CAÇA
CAMINHÕES/CAMISETAS CHURRASQUEIRAS/CIRURGIÕES COFRES/COLCHÕES CONTROLE/CÓPIAS CÓPIAS/CORTINAS DEDETIZAÇÃO/DEMOLIÇÕES DESENTUMPIMENTO/DIGITAÇÃO ENTULHO/ENXOVAIS ESCOLAS/ESPUMAS
EVENTOS/FACULDADES FACULDADES/FANTASIAS
FERRO/FESTAS FLORICULTURAS/FOGÕES
FRANGOS/FUNERAIS GUINDASTES/HOSPITAIS

LIMPEZA/LINGERIE MÉDICOS/METAIS
MOTOCICLETAS/MOTOSSERAS NOIVAS/ÓCULOS

PAPELARIAS/PÁRA-CHOQUES PROTÉTICOS/PSICÓLOGOS
SELF/SEX TANQUES/TATUAGENS TERAPIA/TERRAPLANAGEM TURISMO/ULTRASSONOGRAFIA

VIGILÂNCIA/ZÍPERES”

“os cus carbonizados de Pompéia. Mas, como um buraco pode ser carbonizado? Tem aí um problema de método.”

“O cu é uma mistura de carne e veias extremamente sensível, você só focou no buraco. É isso o que aconteceria se o Vesúvio explodisse em Cuberlândia”

“O sonho do hospital próprio”

“Boca inserida na cloaca do caixa eletrônico: finalizando, finalizando, finalizando.”

“E nunca perder o gancho de vista”

10/12/2008

A viagem de Jean-Marie

Rio. Ipanema. Começo de agosto.
Ele chega
de avião.
O esforço da máquina
as rodas raspam o chão
a borracha adere ao asfalto.
Depois o carro atravessa
a cidade engarrafa as minúsculas
os casebres. O túnel
os grandes edifícios em torno
freiam o ar o som dilata
ao longe as montanhas iluminadas invadem
estraçalham a placidez
da lagoa.
Ele carrega o centro em si uma luz branca atravessa seus poros.
Ele ainda não chegou. Carrega sua
lógica intacta. A mala
cada peça de roupa usada guardará por um tempo o suor.
O trabalho com as mãos. O corpo. Perturbado.
E quando ele voltar
os olhos para trás
suas mãos trêmulas
resto de areia sob as unhas.
Quando ele voltar
então não haverá mais nada
entre ele e nós.


Quando ele voltar
a cabeça ainda para trás
O corpo que atravessou as ruas
passou as pernas pela água
salgada.


Quando ele voltar
retomará sua vida regular
seu croissant molhado no café
com leite.
Sua vida regular estará ainda
mais regularizada
a cabeça já estará virada
a origem.
Quando ele voltar
a cabeça ainda um pouco para trás
a enorme foto no metrô
a água azul
a areia branca longe
pelas mãos.

10/10/2008

pulp poetry

1.
Entre os meus planos mais secretos está o de me tornar assassino serial. Sei que isso não encontra eco nas teses de Freud, segundo as quais todo homem deseja (e precisa, metaforicamente) matar o pai – o meu resolveu aliviar este trabalho para mim: se suicidou, lenta e dolorosamente, como se estivesse coadjuvando um filme B. Anos depois descobri que todos estão, mesmo eu e você.

2.
Numa de minhas vidas paralelas escrevo e publico revistas populares com informações rápidas, banais e desnecessárias. Como quase toda literatura.

3.
No capítulo “Ditados Cretinos” escrevi à mão: “os olhos são as janelas da alma” e “os olhos são o espelho do mundo”. Para o primeiro caso soterrar cuidadosamente cada órbita. Para o segundo, furar os olhos, vazar os olhos, esfacelar os olhos. Como uma recusa.

4.
Furtivamente penetrar esferas privadas – se necessário lamber as partes mais sujas, como quem reconhece algo, pois é aí que se concentra qualquer história.

5.
Já fui também elefante, pantera, ornitorrinco. Agora me dedico às artes da sombra e emulo bichos peçonhentos.

6.
Ela escreve por aforismos, como se fundasse civilizações na bruma. Persigo encantado, sem chance de aproximação.

7.
Foi quando adotei o “Método das Realidades Paralelas”. Não posso dizer que o desenvolvi, não seria exato nem honesto, embora o tenha construído a partir de indícios que recolhi e sem qualquer auxílio exterior – mas esta revelação não possui qualquer relevância, uma vez que aquilo que apreendemos do real é quase sempre distorcido mesmo se nos movermos dentro dele como num plano único. Cada um de nós é um feixe de esforços que atravessa a sua superfície verticalmente, num sítio aleatório, e daí não se pode observar com precisão muito mais do que o entorno circundante e aparente. Como se não bastasse, o real se move: daí que o explodi em planos paralelos que se podem atravessar sucessivamente, não sem esforço. Apesar de fragmentar nossa já limitada percepção a um ponto praticamente insuportável, amplia fantásticamente a visão.

8.
Num plano sou um homem comum, refém do destino. Em outro penso sobre mais esta limitação. Num sou quem domina, noutro sou domado. Ora sou o que se esquiva. Num dos últimos sou “O Cisne”, mas este plano é nublado de modo intermitente pela metafísica.

9. Ainda na série Ditados Cretinos: “As portas da percepção etc...”.

10.
Não há regras aqui, e isso já foi dito.

10/09/2008

nº 9

Isso não vai durar-
foi uma (cena) roubada, eu sei.
Você não vai chegar a nada, nada”, disse um anjo que caiu
e não se recobrou do estrago.
Retirando (o passado) do gancho: “isto não vai doer” diz
outro anjo entre sorrisos,
e o silêncio agora vicia (e incomoda) tanto
quanto aquele frio
na espinha do amor que nunca se rende.

O ocaso, esse não: ele apenas emerge das cinzas, um navio
aponta no horizonte ('menos se espera'), um espocar de auroras
entre um gozo e outro tatuado no reboco.

O amor gravura um claro-escuro nos intervalos rasos do que não vai ser dito.

(das "Notas Marginais")

10/06/2008

Pobre lobo

Vou por em link, pra não ocupar muito espaço no blog. Não que seja longa, pelo contrário, é uma fábula curta, mas mesmo assim achei melhor.

O autor é Mikhail Saltykov-Schredrin. Cheguei a ele porque num dos raros textos lúcidos sobre o Graciliano Ramos, o Otto Maria Carpeaux disse que o Graciliano escrevia como um fabulista russo do século XIX.

Já pensei que a fábula poderia ter a ver com o estresse do senhor mercado. Mas é claro que vai muito além disso, é sobre a condição humana. Então também é sobre o estresse do senhor mercado.

Lê aí, Aldemar, leiam queridos sumidos epistolares: Pobre lobo.

(Traduzi do inglês, não do russo. Ou seja: é a tradução amadora da tradução da tradução. Ainda assim acho que vale a pena).

10/02/2008

N. 87




A cidade é de carne
Seu sangue é lodo, tubulações
Subterrâneas onde circula
O rio canalizado
(Assassinado), o rio onde nada
Meu avô, que morreu delirando
Com pescarias.

A cidade é a terra
Das minhas pernas
Crivadas de raízes e pequenas plantas
Que arranco, pacientemente.

Se tento fugir
Da cidade é em mim
Que encontro refúgio, e se completo
Minha saída do labirinto
De carne e lodo e musgo que sou
Eu me encontro novamente
Na cidade.
Sou um emaranhado
Infértil
De lodo urbano, mas
Que minha carne seja salva
Junto com a carne da cidade
Que me habita, que eu seja
Condenado como um verme
Roendo sua carniça, qualquer coisa
Menos a ilusão de um nome próprio.
E só
Mais um detalhe:
Traços negros, linhas negras amarrando
Um pedaço de carne, da carne
Da minha carne não é uma imagem
É um pesadelo, dolorosamente
Real.