12/22/2012

História, aborteira de utopias

A luz do dia filtrada por uma fria substância lunar, fina película cobrindo os olhos.
Alguém deitado em campo aberto pede ajuda apenas pra dizer qualquer coisa
porque esta é apenas a figura irreal do pânico: uma mulher deitada em campo aberto com despojos lunares

não faz o menor sentido, como pensar que astros sombrios projetam forças estranhas que formam um véu sobre a sua beleza e que por isso você é irremediavelmente triste.

Brasília, cidade grave, dos tons graves em punk-barroco aqui não há como ser lúcido sem a sensação constante de náusea, você não faz sentido, é uma coisa estranha nessa paisagem de funcionários públicos, pedra melancólica que parece constantemente cair, vinda de um lugar muito distante.

Nesta noite sonhei com uma alegria vislumbrada em plena sombra.




12/14/2012

Pietá



Desata em tangos, menino
Solta os cabelos e vem
Fluido
Sacudir as árvores brancas
Cantar os males aos berros
Cortar os dedos do homem
Jogar a bandeira fora
Vibrar

Tira a camisa e vem 
Aflito
Seus olhos vidrados
Vertentes
Tangenciam os ventos 
E sulcos
Da paisagem
Lunar 

Somos suas
Todas
Todas as mães e irmãs
Suas
Cantamos seu desalinho
Fazemos sua cama
Seu leito
Para que venha, enfim,
Descansar.



12/05/2012

A última semana da minha vida

Minha força é a fraqueza

Arranco fibra a fibra os meus músculos
Até que só restem
Dois olhos opacos como cal
Dois ouvidos que captam as vibrações do calendário
E uma boca tão derrotada que dele só brotam
Os sons imateriais da mente.

Meus inimigos são anjos
E não sabem.



* * *


Tempo é gestos que abrem precipícios

Você vira o volante à direita pensando no cd que vai gravar

O celular toca na hora em que o médico ia receitar o anticoagulante

Ela desceu mais rápido do que normalmente, eu a encontro no meio do caminho quando o normal seria eu ter passado por ali só

Amanhã pode ser que eu coincida – se houver amanhã



* * *

Com os dois olhos que brotam gotas de pus na extremidade de dois canudos cheios de cerda e lodo, o molusco tateia a realidade externa ao seu exoesqueleto, sua carne frouxa não seria páreo para a força bruta dos peixes e suas bocas de centenas de dentes e por isso ele se esconde por trás de algo que simula a impassibilidade mineral – ele tateia, gira os olhos pelo ambiente, antes de sair de dentro de sua caverna óssea para a caçada. Pois é, o nosso torpe amigo também é predador.
Há predadores em toda parte, inclusive por dentro de sua carne viscosa, nojenta de engolir como um chiclete. Se não foi hoje, vai ser amanhã.
Oceano é destino bruto e sem lei.

11/28/2012

Você pode dizer que escolheu a solidão. Mas e as pessoas translúcidas neste fim de tarde, e a certeza noturna de que o mundo flutua sobre um oceano sustentado pelos seres mais inverossímeis, e os fantasmas que andam armados pelas escolas, e as crianças lendo Mein Kampf nos bueiros, e o amor que se esfacela em ritmos desencontrados. E quando você se senta, olhando para a parede, e o quarto todo é uma inteira pétala incendiada – e só assim, nessa cápsula de silêncio, existe uma vaga promessa de sentido.


11/14/2012

OS CARALHOS DE SHARON OLDS
















OS CARALHOS DE SHARON OLDS




os caralhos de Sharon Olds
são iguais
aos caralhos de Ginsberg?

estes que fedem e morrem
a tempo, em New York, Kansas
que são chupados

e esquecidos
em quartos podres
de motéis baratos

estes feridos
pela passagem
das águas

que se sabem
a cetins escarlates
cobertos de algodão branco

estes homens nus
que respiram
como peixes em vidro
sufocados pelos céus
marchetados de fumaça negra

que aqui, não se são
se sabem pau, cacete
um membro-falácia

uma glória esquecida
para quem foi mulher
filha, mãe
loba mal-fodida

que em ti,
sobram caralhos na boca
falantes, molhantes

mas que agora,
pendem das mãos
escritos, descritos

soçobrando

em Kansas, Nova York
no vácuo,
em quartos rançosos
em lençóis negros
de sangue e sêmen

no vazio,

no nada, como uma guelra.


(Anderson Dantas, Ilha de SC, 14/11/2012)



11/13/2012

Os sete matizes da suspeita

A mão cheia de anéis tira a máscara com rosto de mulher – outra máscara com rosto de criança – outra máscara com rosto de bandido – outra máscara com rosto de louco – outra máscara com rosto de lobisomem,

animal, pura voz

de dor.

Mão sem veias, com fios elétricos desencapados ao redor dos ossos. Sete anéis em cinco dedos, por trás de tudo isso um matiz de rosa impossível, cor de rosa contraindo-se como sangue sugado por buraco-negro de sete estrelas conjugadas: a cidade é pintada com as cores delirantes do general lírico.

Seu nome consta nas listas de torturadores.





11/05/2012

Jogo do Um Acerto

"Para que eu, um prisioneiro em Uqbar no longínquo século do Levante da Codorniz, pudesse chegar até você, por quantas bocas, ouvidos e línguas este lamento não passou, mudando completamente suas palavras e sentido? Você acredita mesmo que algo sobrou do que acabo de escrever na parede desta cela com meu próprio sangue, e está sendo lido por seus olhos nessa tela de computador?"

10/26/2012

Minha conversa com Fante

Neste ano desci duas vezes ao inferno. Descer talvez não seja a melhor palavra, porque o inferno não está abaixo da superfície, no porão do mundo, o inferno é apenas um certo ritmo da vida, uma desorientação fundamental que procuramos esconder sob o véu da realidade. Deixar o inferno subir até você tem um teor libertário, você não é uma presa fácil da realidade e seus artifícios. Por outro lado, o inferno é irrespirável: pensei numa imagem assim, uma sede de quem comeu girassol em pó e pra quem a água se tornou tão imaterial quanto o ar. Quem conhece o inferno precisa de três coisas (todos precisam, mas quem conhece o inferno precisa com mais intensidade): amor, amizade e arte. E aí entram os shows da Banda RioClaro neste ano. Um, em especial, num domingo seguinte ao dia em que eu pensei que queria dormir por uns 10 meses. Estar acordado pra certos encontros da vida é um primeiro passo: o encontro entre uma certa tonalidade do céu de vermelho a azul contra o lago quase dourado e a música que anima duas meninas, duas pequenas dançarinas sobre a grama intensamente verde. Depois de estar acordado, despertar. Iluminar-se. Respirar. Enfim, por isso resolvi escrever, como agradecimento, essa conversa imaginária com John Fante, seguindo uma dica do Ray (um puro devaneio, sem pretensão, não finjo dar conta de um nome consagrado, um livro que esmaga aqueles que tentam copiar o seu estilo, enquanto escrevo isso em meu computador empoeirado).

Eu: Tenho alguns textos, umas coisas meio parecidas com livros, vou soltando meio aleatoriamente porque não tenho essa convicção que vejo em você sobre duas coisas: o meu talento literário e o sentido de ser alguma coisa na vida como um escritor. A minha dúvida é: existe algum lugar adequado para os livros?
Fante: O deserto.
Eu: As cascas de laranja jogadas no chão, as velhas solitárias, os casais brigando, as crianças que nascem a contragosto, os taxistas; isso tudo não é estética, certo?
Fante: São sinais, indícios de alguma coisa parecida com salvação.
Eu: As coisas estão cheias de anjos, ouvi dizer.
Fante: Eu preferia bons charutos, uma noite com aquela mulher de pele cor de raposa, eu preferia ser o autor.
Eu: Isso você conseguiu, ser autor. Tem até seus porta-vozes oficiais e imitadores.
Fante: É uma ironia da história.
Eu: Uma mentira, e não um desejo. O sujeito começa a se levar a sério.
Fante: Do mesmo jeito, o dinheiro é bom porque liberta, mas dinheiro deve ser amado apenas platonicamente.
Eu: Também li isso em algum lugar. Também ando em torno dessa questão do amor, do amor que só faz sentido pra quem é solitário, os momentos de brilho intenso, sempre passageiros, uma recordação depois da outra, até um ponto em que tudo mal se inicia e já é despedida. A memória cansa mais do que a esperança.
Fante: De vez em quando, interrompo as divagações inventando uma perspectiva diferente, por exemplo: um rato observando um escritor debruçado sobre a poeira, sonhando com sua maravilhosa namorada mexicana. Isso dá mais densidade pra realidade, mas também indica que o tempo não é só esse em que estamos presos, esse apocalipse sem fim.
Eu: Aquela princesa que não vai se importar com o fato de você não ser um vencedor, aquela que foi menosprezada como nós. Palmeira, palmeira, palmeira, palmeira. Dois dias seguidos?
Fante: Acreditar em palavras é a pior forma de loucura.
Eu: Alberto Caeiro, Zaratustra (que é melhor do que Jesus), Bandini, muitos dos melhores sujeitos dos últimos tempos são fictícios.
Fante: A realidade asfixia. Mas a ficção não é mentira, não é o oposto do real porque é desejo.
Eu: Nesse sentido é que eu queria entender de anjo. Um anjo me trazendo uma boa garrafa de vinho. Pra te dizer a verdade, não me interesso pela literatura. Acho isso meio bobagem. Não quero um livro que não seja um bilhete premiado pra reinventar o desejo por uma boa namorada e um bom vinho.
Fante: Devaneios. Deus devia ter lido Nietzsche antes de criar o mundo.
Eu: Quando o Bandini diz que poderia ser qualquer coisa, um milionário, um jogador de beisebol, um escritor, eu, diferente de muita gente, acho que é a sério. Ele poderia ser qualquer coisa mesmo, e por extensão, você. Mas você não é Bandini, do mesmo jeito que ele não é o jogador de beisebol. Ele e você e eu somos o que poderia ser qualquer coisa dessas, pessoas comuns. Essa é toda diferença, que acho que alguns confundem quando pensam que fazendo de conta que são Bandini (por exemplo, reclamando da falta de grana) vão virar John Fante. Eles se esquecem, acho, que tudo é possível, incluindo Zaratustra e Caeiro, por conta desse poder ser mesmo, são prisioneiros do ser. Uma coisa é um cara que aspira a ser milionário, outra é o que é milionário, que se confunde com esse papel, a mesma merda rola com o sujeito que se convence que é escritor.
Fante: Eles não reconheceriam um gigante nem que um moinho de vento estivesse indo pra cima deles com tudo.
Eu: Falando em Dom Quixote, a falta de grana transforma o dinheiro numa coisa metafísica?
Fante: É estranho você dizer isso, parece papo acadêmico, porque é uma metafísica que dói no estômago.
Eu: É como se escrever fosse uma coisa suja, uma dedicação a uma atividade até ofensiva, como, por exemplo, procurar beleza e encantamento numa cidade por mais sórdida que ela seja, e você precisasse de um álibi razoável do tipo: escrevo, mas com uma finalidade, ganhar dinheiro.
Fante: Pode ser, mas a falta de grana é real, no meu caso. A vida é a continuação da literatura por outros meios.
Eu: É que a poesia separada do resto é uma coisa sórdida.
Fante: Que resto?
Eu: A vida.
Fante: Por isso eu odeio cadernos culturais.
Eu: Você imaginava que ia ser usado como pretexto pra um tipo exibicionista de literatura confessional?
Fante: Seja como for, eu não tenho nada a ver com isso. Eu não disse que prefiro Zaratustra a Jesus ensangüentado na cruz?
Eu: E a culpa que corre no seu sangue? Eu, por exemplo, depois de um ano de merda, estou começando uma nova história, um novo amor. Às vezes me flagro pensando que essa história toda vai dar merda, vai dar merda, vai dar merda. Mas não sei se faço isso só pra não perder o orgulho quando der merda, eu dizendo: pelo menos eu sabia que ia dar merda.
Fante: Você não viu pra quem eu dediquei meu livro? To falando de mim, não do Bandini. Tem gente que confunde experiência com experimentação. Experimentação é coisa de sociólogo, gente sem imaginação ou sentimento. Experiência é outra coisa. A vida pode dar um romance, mas a vida não é arrumadinha como um romance. Ou você vive o seu tempo, a sua condição e mergulha nisso, ou vai fazer outra coisa. Caso contrário, todos os roteiros estão traçados pelo conjunto de lixo que você leu e ouviu. Inclusive o meu livro pode virar lixo numa situação dessas.
Eu: Camisa pólo, sapatos brancos e óculos escuros, não é por aí? Nunca fui a Los Angeles e o que me impressiona é a variedade e o número de formas de destruição da cidade. Terremotos, maremotos, animais selvagens perdidos devido à expansão das avenidas, especulação imobiliária, um ar meio apocalíptico que torna a beleza mais urgente, a vida sempre está logo ali, a um passo, mas nunca é real porque sempre está à beira da morte.
Fante: Você não devia se gabar disso, você é de Brasília. Você deve entender alguma coisa de deserto. Poeira também não falta, cada palmo de terreno conquistado à moda turbulenta do velho oeste, tempestades de areia cobrindo a cidade inteira, o céu vermelho, azul de sanguessugas, branco, translúcido e você ali sozinho, debaixo dessa luz que nunca está parada, afundando nos monumentos paranóicos, você também ali sonhando com a sua princesa maia ou pelo menos acreditando que um dia vai encontrar a palavra certa, o percurso que vai fazer da poeira e do brilho uma coisa só, ao mesmo tempo bela e decadente. Que vai dar um pouco de alegria para os solitários e perdidos.


10/17/2012

O blues do rato de biblioteca

Você não esperava tanta ternura
de um rato de biblioteca e o silêncio dos planetas
e o infinito que assusta e tanta especulação
barata, assim à toa passo os dias conversando com mortos
em páginas de livros, microtelescópios, tabuleiros espíritas
e a luz do sol batendo nas páginas, uma cartela
de ácido lisérgico como calendário.

Você não esperava mas um coração de papel é mais inflamável
apesar de tão remoto que o silêncio dos planetas ali se inflecte
e cada livro é uma faísca adormecida esperando na estante
em que se escuta por um instante a lendária confabulação
entre dor e esperança, toda filosofia quer ser música
e toda música: blues.

Quando o blues faz até as paredes pulsarem nas capas coloridas
dos livros, como há algo de blues nos contrastes das cores dos planetas
e nas cores anímicas das emoções desencontradas
o blues é mais azul que toda melancolia de um coração vermelho
faço de conta que não é comigo e pergunto sobre a metafísica
de tudo isso o que pensavam os antigos
sobre o conceito de alma e invento a metáfora desprevenida

um peixe azul que brilha no aquário obscuro da vida, ressonâncias
de vidro e água, o blues é uma luz de cobre, é tudo que se entreouve
nos vestígios deixados pelas gerações que compõe uma única
e incoerente música no modo como o filósofo caminha
na solidão do poeta, na posição dos planetas
compondo um invisível e atuante cenário para os atos funestos,
o percurso da lágrima pelo rosto Entristecido, entretido em sua profunda tristeza.

O romantismo é azul celeste e gruda na alma como uma rima
nas paredes do quarto – existe na dor ancestral
da idade da árvore arcaica e blue da lamentação
onde os velhos cantores concentravam a dor de tantas gerações
e gerações: toda dor, afinal anônima como a invenção do blues
sob a mesma antiqüíssima árvore, de acordo com a história
que li num livro qualquer blues é seiva espessa e lenta
misturada ao sangue é como se desde criança
você tivesse comido a lua em pedaços mínimos numa colher
e meu sangue então é frio e reflete o brilho do seu coração
no escuro.

E tudo isso é música, o blues é o comum dos lugares-comuns
a faísca que acende o fogo no coração de papel.

Meus amigos intelectuais não se enganam comigo
eles sabem que quando os vejo eles são como peixes num aquário
e o cosmos é mesmo uma cúpula de vidro de onde deuses observam
e nossas verdades são bolhas que logo estouram contra a superfície
que quando os escuto eles não dissertam, mas cantam
um canto sem letra ou mensagem, uma entonação
de arrogância, frustração e miséria pedante.

A desolação, Bárbara é mais criativa que todos nós
e até merece um nome
próprio, Desolação, escoadouro de brilho estrelar
pra onde todo fluxo vital é banido e retorna, como um filho pródigo
aproveitável: sem o quê não haveria cores para planetas
e nem olhos que registrassem tais cores e nem almas se perguntando
por meio do blues, sobre o sentido de tudo isso.

(Garotos cantam o hino nacional
olhos vermelhos dentro de um camburão –
porque cantavam um blues no ponto de ônibus:
venho da cidade mais desolada onde até os punks são blue).

É por isso que sou um rato de biblioteca e mesmo assim ouço o blues.
ou queria cantar, o que dá no mesmo e fecho o livro
porque o canto do blues é o canto

um gole de vinho
derramado sobre o conceito de quem procura o blues

Saturno está mais forte nesta noite
o céu é uma cúpula líquida que filtra o brilho de estrelas
quanto mais azuis mais incandescentes
Mexico city blues repousa na estante

estando no blues desde antes do início.


9/27/2012

Ainda resta explicar porque num ou noutro ano, nalguns meses, dias (por exemplo, entre setembro a outubro de 1973) o céu se converte num calabouço, escuridão de bronze e tantos girassóis impossíveis cultivados com sangue procuram por um sol que recua para além da dor, porque o tempo reflui contínuo em todas as direções mas de repente parece resolver se adensar, viscoso, nauseante e nós, que vivemos a luz vaporosa azul tão bela e banal, nós, os irreais, só de o olharmos nesse estado sentimos em calafrio que a realidade só sabe falar a língua do terror.

9/16/2012

Redor para Masé















um escritor viaja de trem,
a letargia faz querer avançar.
sem chumbo nem a ironia do vinho.
                      Masé Lemos



não se pode avançar.

porque tudo
é recusa
da pedra

tempo, tempo, tempo

todos
ouviram a delicadeza
do lisianto

na brisa
abalada

calados,
feios e nus, não tivemos
fogo

quando o ventre
anoiteceu

e acordamos
ancorados

na dor da sombra.

pedra, pedra, pedra

origem da voz,
orgia de pássaros

grão e assobio

gelo e espanto.

não se pode avançar.

tempo, dor, pedra



9/14/2012

Porvir para Eliana






















Porvir transfigurado.

O que é Teu Ser,
o que é tua carne,
e a chegança
                de cartas ao vento

o que é tua linguagem
passagem
pelas águas

tentativas,
filosofias fracassadas

lassitude, lentidões

uma bala
que te fere
de raspão

o que é teu Ser
o que é tua Língua

Ilha Deserta

onde se penduram
escolhos,
manhãs,

coisas mortas

tesouras,
cadelas,
mulheres
de pernas abertas

um corpo aberto
decomposto
no asfalto

o que é teu Ser

o que é tua Língua

no lilás de tudo

que subverte.

9/13/2012

Morador de Brasília, Vírgula

Céu vermelho. Céu, dourado. Azul irradiando-se entre traços, de nuvens. Vênus brilha mais, do que a lua.
Imagine que você está num teatro, na obscuridade da platéia. A orquestra se prepara para tocar mas sem, o violonista. O violinista levou uma, porrada de fuzil, no cotovelo. A orquestra se prepara. Um cadeado, inútil resguarda porta enferrujada. Sem motivo de existência, a porta.
Céu vermelho – luminoso que se expande, ao contrário, como se ele se, contraísse, uma luz em fuga ao avesso.
Imagine que sob, as calçadas sob, a terra sob as raízes (uma) voz quase, inaudível – só ouvida por quem se imagina ossada de operário da construção – esquecimento asfaltado, ali se abafa. Monumentos árvores de todos, os cantos ipês: jazigos.
Imagine que a Esplanada e sobre a, Esplanada o céu que nesta hora tende ao violeta nada mais são, do que imensa lápide de cemitério, de indigentes. Vocês foram, mortos porque reclamaram da comida, estragada.
Agora se imagine encostado, na parede tranqüilamente. Um livro está sendo lido. Não há frio, alguém, esteve ali encostado muito antes de, você. De frente para a parede a testa, colada no concreto com suor de medo. De onde virá a próxima, porrada? Saber isso já seria, um alívio. Sem saber o motivo você pegou, o livro de Lautreamont, justamente, naquela página em que ele diz: “sou, sujo” como uma voz voltada para, dentro como se a brutalidade fosse o fulcro de todos os livros que, jamais, foram escritos.
Céu azul escuro, apagado. Como um azul brotando, da transparência.
A luz, agressiva do dia ilumina unhas bem, feitas cheias de anéis, esmalte, transparente: você as entrevê sob o breu do capuz dos dias vividos no mais escuro da dor e do esquecimento, pelo menos é o que você gostaria, de esquecer. Você chega em casa e a coisa não te larga mesmo, em tua vida confortável.
Você olha a janela um ipê amarelo cujas folhas são unhas reluzentes e o calor perfaz auras em torno dos galhos: feche a janela, rápido!, para essa beleza sufocante.

- Seja bem-vindo, à sua cidade.



9/06/2012

LÁGRIMA para ALDEMAR















Hão
de ser tristes os teus

e os meus dias

quando os relâmpagos rasgam
o silêncio de tua
varanda

e passos de medo
preenchem o bosque.

A raça
declina uma vez mais
e arrefece junto
com a ceifa

de um podre trigo.

Nem águas nos salvaram
para refrescar
nossos pés

e nossas andanças
lavradas no negrume

Inventamos umas estórias
absurdas
para fazer

nossas filhas dormirem

elas tiveram a idade do sono
no berço
ou numa redoma
de vidro

onde inocentes
não desconfiaram

a desgraça do mundo.

hão de ser tristes
os meus

e os teus dias

malditos,
vamos andar
rumo

ao rubro dos outonos

e de um pequeno clarão

que se abre
toda vez

que se apunhala
a esperança.

hão de chorar
todos

na aspereza do mundo

(porvir transfigurado) -


9/01/2012

sutra, 1







O centro não existe, amores
marginais arfam convulsivamente
enquanto gemem orações
hard na penumbra de templos
com letreiros de neon O menino
que olha pra você de dentro
dos espelhos só escuta o silêncio, décadas
de silêncio nos olhos velhos
do menino que guarda negativos
de tantos corpos e gestos de comunhão
úmida e ardente pulsando
carne adentro, olhos nômades que leram escrituras
de esperma sobre papiros microirrigados
por sangue e linfa Sim, você cobre
os espelhos com lençóis tatuados por suor
e secreções, tocados pela poesia das luzes
artificiais, mas isso não cala o menino
que recita sutras intermináveis: ‘santa
tereza salvai-me desse mar
de gozo e de melancolia que nunca ninguém vai
saber o nome, são joão da cruz, acende
qualquer lume que desencante o espelho’ O centro
não existe, mas o holofote de outros
olhos lança você no universo sem deus
onde flores sem caule espreitam
na terra amiga o desejo da seiva,
da casa, ao som do cântico dos cânticos tangido pelos anjos
do inferno e da última
esperança O abismo da orla desses olhos é um
dos orifícios por onde
você avança

8/25/2012

Silêncio par(a) Mar




















Silêncio par(a) Mar



O Silêncio é de pedra.

Pedra, pedra, pedra.

Imenso é o silêncio do jardim devastado,
Quando o jovem noviço coroa a fronte com folhagem marrom,
E seu hálito bebe ouro gelado.
As mãos tocam a idade da água azulada
Ou em fria noite os rostos brancos das irmãs.

Porque teu olhar é de pedra
Tua boca é de pedra

E dormes onde avançam
Hidras
De horas salobras

Sob galhos podres, por muros cheios de lepra,
Por onde antes passou o santo irmão
Mergulhado nos doces acordes de seu delírio.

Porque tua garra é de pedra
Teu quadril é de pedra

Teu ódio é de pedra.

Pedra, pedra, pedra.

Tudo passou onde antes era pedra
E tudo retornou
Onde agora é só pedra

Só pedra, pedra e pedra.

Assustador é o declínio da raça.
Neste momento, os olhos do contemplador enchem-se
Com o ouro de suas estrelas.

E agora o Mar
Choca-se contra as pedras
Raivoso e verdeazul

Porque teu silêncio é de pedra.

Pedra, pedra, pedra.




(Imagem: pintura de Karl Hofer)

8/18/2012

SALMO para DANIEL













Cala-te meu amigo!

Como todos os sinos se calam!

Na placenta do medo
a escória procura alimento novo.
Sexta-feira santa, pendurada no firmamento,
uma mão faltam-lhe dois dedos,
Mergulha no vermelho das nuvens
afasta os novos assassinos
e liberta-se.

Veja meu amigo!

Tudo é treva no rio laborioso
que nunca acaba
seu fluxo
ainda que na secura nosso
pranto se espraia.

Não tivemos ombro amigo
na hora dos invernos duros
dos outonos
morrentes
nenhum cálice de vinho
a saciar
nossa amarga garganta

É tempo amigo!

Tempo de orações
negras e sem Tempo,

Não há mais
tardar amigo!

Me calo!

(tempo de ossadas ausentes) -

8/16/2012

Venho de uma família de sírios com drogas

Não é ao ar livre de planície ou mar aberto
Que melhor se vê a idéia do infinito
É pela fresta aberta entre a grade da janela
E um rosto que se deixa atravessar por um raio azul de brilho intenso descendo sobre a manhã da cidade desértica
Um rosto transfigurado pelo céu: então é assim que o dia atravessa as paredes de um apartamento qualquer
Um topázio rasgando a pele de um rosto translúcido.


*
O mar é mais rápido que o pensamento –
No piso do apartamento vê-se
O mar.

Ou é o chão da realidade que ondula
Ou ainda a consciência que recua
E uma vontade sem sentido de soltar uma risada
Na cara do universo –

*
E no meio da loucura escutar a voz de Bárbara
Te dizendo como fazer do silêncio a sua casa:

Se há um templo se constituindo
Nesse momento, para dar espaço à avidez de absoluto
A cidade persiste como a moldura de uma janela
Aberta ao infinito: imagine-se como se amanhece
Um planeta muito próximo do sol.

*
É explicar ao seu amigo que você escreve
Porque não sabe falar
Nada, nem domina
A sua língua: oceano
Não abriga, nem a cidade
De ruas quadriculadas refugia
Inóspita paranóia, para além
Do azul que refulge nas ranhuras da parede

- Venho de uma família de sírios
Com drogas.

E ainda assim é com ela, a língua portuguesa
Que você vai encontrar
Uma saída – são essas pequenas coisas:
Ser um fantasma, por dentro, à procura de sua voz,
Sua cota de infinito, em meio à cegueira programada.

*
Da poesia, espera-se ser
Abrigo para sua pele de éter exposta a todo tipo de ignotas forças naturais e muito
Remotas e ainda desconhecidas ou sempre desconhecidas
Pela ciência: um itinerário sobre o abismo –
A poesia:
Produzir vácuo
Da consciência, avidez de palavras:

Grade de metal, vidro cortado pela luz
Fantasmas de topázio caminham sobre o mar
Refletem
Prismas de angústia e infinito.

*
Ranhuras dançam na parede,
Estamos na década de 50, 80, tanto faz
O absoluto invade a vida
O vidro da janela, as frestas da cidade, a voz,
O mar adormecido no piso: é por dentro
Do sonho que despertamos,
Sedentos de mar e infinito –

Que não se dá a ver, é entrevisto.







8/06/2012

Quando um sujeito cansado chuta o balde, taí uma coisa digna de nota.

Espasmos de lucidez intermitente, êxtase da barata escalando a parede, qualquer comparação soa compacta, um símile da vida em sua ausência de motivo. É sórdido. É bonito de se ver. É promissor. Fulgura. Incita. Que coisa linda de se ver, o horizonte escondido, atrás do vermelho das nuvens densas anunciando a noite, e ele ali: não menos ínfimo por isso. O problema é não ser uma centopéia pra não poder chutar tantos baldes, é o que ele parece dizer. Alguém tem que ser o Cristo, os justos pagarão pelos pecadores e nas redes sociais ainda se pagarão sapos pela atitude impensada. De fato, é um riso venenoso de um sapo daqueles peçonhentos que solta veneno quando pressionado. É a mãe natureza naturante, desnaturada. Não é edificante. Mas é bonito, ainda assim. Um evento gratuito, hermeticamente fechado em si mesmo. Um instante. Foi, e não volta. Se você pensa que a única transformação válida é aquela que deixa uma herança, isso aí não vale nada. Mas, eu digo e afirmo. E canto, nesse canto tosco que mais parece um ensaio de poema, um mero desabafo, a coisa mais baixa na escala dos enunciados: eu canto os pobres diabos que um belo dia e desabafo aparentemente do nada, chutem-se baldes e depois a vida se recolha e volte ao normal. Isso é o mito, eclodindo na tua cara, é o que resta da verdade, desde que ela fugiu, com os deuses, pra trás do horizonte vermelho.



7/27/2012

Poesia não é cavalo de batalha

Sinceramente não quero fazer da poesia, em torno da
poesia um cavalo de batalha, tantas gerações
de mortos se sucederam, antes desta e de outras que virão e o primeiro assassino
da poesia foi o antigo mitógrafo ao demonstrar às musas sua condição
de figura de linguagem e a morte da poesia é como a morte
das pessoas – algo que se repete.

Mas é que em Brasília alguma coisa faz as paredes falarem, não sei
se é a artificialidade
do lago que cria essa mescla de nostalgia e insólito
ou se a imensa múmia do faraó em que habitamos
como vermes petrificados respira pelo concreto. Alguma coisa
dá socos nas paredes
arrasta móveis para nos deixar insones e sempre que alguém
aproxima o ouvido das paredes de sua morada se ouve
nitidamente, gritos surdos, saídos não se sabe de que garganta.

Todos conhecem o centro monumental
de Brasília – mas, seus centros fugidios são outros:
a poltrona em que estava sentado Rawet morto
um livro e um pacote de sopa knorr no colo
o porão úmido onde foram parar os livros do homem que fundiu os horizontes,
único filósofo da cidade do sol parteiro de verdades, do invisível mar sem fim
no horizonte do cerrado plano e liso visto ao longe, mas cheio de detalhes, de
flores, pétalas finas, agudas e coloridas como gritos grudados
nas paredes quentes: paredes de palácios, de garagens, de ministérios
de apartamentos solitários – na cidade silenciosa, mas nunca muda.

7/21/2012

Um sax para a lua


Em sonhos, ele aquece minhas costas
Com seu quadril de fogo.

Contra a parede, 
Me empurra e me puxa:
Cadência e milhares de mãos.

Entre as pernas,
Sou puro ai.

Adocicada,
Esgarço em suspiros mornos,
Escorro pelas paredes,
Gemo  
Pelos vãos 
Do piso de jacarandá.

Mas, 
Ele se vai com o abrir dos olhos.


Quase.

Foi quase.

7/11/2012

Saturno na esplanada

As baixas luzes amarelas, sua pele de cobre, as sombras retorcidas, música de toda parte se misturando sem criar um repouso nas pegadas marcadas, fundas, no concreto da calçada –
até se pode pensar que tudo parece um sonho, mas
não é sonho. Você pode surtar a qualquer momento. E quando você morrer e quando todos morrerem o jogo cósmico das imensas esferas incandescentes das ondas sonoras no colorido dos planetas vai continuar, indiferente.

2.
Brilhos de estrelas caem sobre nós como migalhas de pão varridas de uma mesa desabitada soprada pelo vento insciente.
Menos.
O universo prescinde de testemunhas.
3.
Veja (a palavra) estrelas – a palavra não é visível.
Estamos em pleno oceano tentando buscar alimentos com uma rede invisível (imaginária).

4.
Tanto faz se é boson de higgs ou partícula de deus. Persiste a hybris de que nós com nossa tosca linguagem podemos e devemos dar nome às coisas.

5.
Amoras esmagadas na calçada. Ela diz que o tempo não perdoa. Minha voz sustenta um canto soprado pela força emanada de algum planeta. Mas ele, por sua vez, sustenta-se em nada. Nada disso foi planejado. Como agora mesmo, do nada, veio a expressão: furiosamente lento.
As palavras, porém, nem sequer tocam a superfície de gelo e gás que se move na distância incalculável.

6.
Colha Saturno, com os olhos. Cole o planeta numa superfície apreensível pela vista. Bege em meio ao espaço negro. Dois pontos brilhantes. Um belo acidente captado à distância. A fome cega dos anéis em quem coleciona experiências.
O planeta não me deixa esquecer mais nada. Mas ele mesmo não se lembra nem se esquece de nada.

7/01/2012

A máquina de fazer sumiço. Ou, nem tanto hermético assim


1.
Não há no que acreditar
nem motivo, a vida é o que separa
pisa-se um degrau enquanto o outro pé
fica no ar: nos movemos
como uma máquina
que respira e circula
vento.

Trata-se de raspar a pele por dentro
cavar a carne com as pás tortas
de um ventilador
hermeticamente vedado
até a possível transparência
emergir do desgaste do corpo.


2.
Ele olha pro chão e esquece e olha pro chão e esquece: a situação humilhante, o motivo da tristeza é incerto, ele apenas nasceu assim, estranho aos seus olhos – como um cata-vento
jogado no chão, você não entende, acredita que a dor real precisa de uma retórica consolidada, ninguém pode ser tão

cabeça de vento. Ele apenas nasceu assim, desconhece o roteiro entre dor e lágrimas. Ele sabe rir –
mas ninguém entende suas piadas.


3.
Ela caminha arrastando-me os pés: suas longas e afiadíssimas garras arranham, arrancam minha carne de terra do chão em que ela pisa: o mundo sangra nos pés: ela diz que nada fez: é o seu natural: fazer passar e ferir. Suas unhas côncavas como pás fazem a ferida render mais: adia-se a cicatrização, dura o machucado como pedra. Surpreendo-me suturando minhas pernas. Sem anestesia: essa é a tarefa que a terra, pálida, herdou de mim.

4.
Os coqueiros são ventiladores
Seus braços girando – ventiladores

Ventila, ventila
A solidão, ventilam
Idéias, lâminas frias
Sobre o pensamento.

Como são atraentes as máquinas que engendram sinais.

5.
Me falta malícia para ventilar convictamente as tuas óbvias mentiras.


6.
Em algum canto
do tempo
alguém guarda:

a máquina de fazer nuvens;
o interruptor de luz solar;
a lua disfarçada de moeda
sem valor de moeda
as cores das penas de um passarinho
fugitivo
que me contou, sem cantar
que quando alguém gira os braços
sabe-se lá o quê
depois do depois do mar,
sente um toque suave,
suave como se a vida fosse mesmo um sopro
de um deus ex-machina
que gira, sem nome,
com suas hélices
por dentro da alma do ar
cavando, por dentro de si
o sonho comum
da fraternidade hermética.

- que a alma é ar, ar
que a si mesmo respira:
e poesia – poesia
é pra ventilar.






6/19/2012

Roubando Foucault


Figuras adjacentes, frágeis, um pouco monstruosas em que o desdobramento se assinala,

(sou o autor: observem meu rosto ou meu perfil; é a isto que deverão assemelhar-se todas essas figuras duplicadas que vão circular com meu nome)

que falam sem parar tudo aquilo que pôde ser dito para calar o murmúrio da morte,

(sou o monarca das coisas que disse e mantenho sobre elas uma soberania eminente: a de minha intenção e do sentido que lhes quis atribuir)

que são pura contestação,

(suprimamos o antigo prefácio)

linha simples, contínua, monótona de uma linguagem entregue a si mesma,

(mas você acaba de fazer um prefácio)

abrindo incessantemente um espaço onde ela é sempre o análogo de si mesma,

(pelo menos é curto)

um murmúrio entre tantos outros – após todos os outros, antes de todos os outros.
As forças da natureza
Não seguem uma linha reta
São turbilhões encalacrados
Em manequins de shopping center.

Vou à praia dos orixás
Bebo uma Baikal como oferenda.

Depois no sopão 24 horas
Escuto a história do feto jogado na privada
Girando e girando, antes de descer pela descarga.

Ouvido cheio de ranhuras
Palavras
Pequenas são bloqueios
Crivados de patas de inseto
Que arranham migalhas de imaginação.

O horizonte é muito curto
Me sinto bombardeado por pequenas variações
De asfixia.

A vida não deve ser nada
Além de uma fome nauseante por frutas podres.

A janela está coberta de nervuras:

A luz avermelhada sobre a praça
E a velocidade de redemoinho implícito
Na futilidade do coração do tempo
São as coisas que me conduzem

À sublimação.









6/13/2012

Anotações de viagem, Cavalcante

Anotações de viagem, Cavalcante


1. A luz bate na água asas frias de pássaros súbitos na superfície fina. Contra o rumor do remoer constante da água nas pedras e das águas se revolvendo sobre si mesmas, a voz das pessoas emerge. O som é um fluxo incoerente e contínuo de onde brotam as vozes amigas, amadas, que logo mergulham no mesmo vazio rumoroso.
2. Água e luz dançam: pulsação de asas na superfície do erro. Brilhar e mergulhar.
3. O rio, que flui sobre si mesmo suavemente abriga peixes e pedras ao sol onde insetos repousam: pratica caridade?
4. O rio, com suas águas amarelotransparente amoladoras de pedras pontiagudas, o rio cheio de dentes afiados em seu leito que friamente aperta o seu coração, contrai seus músculos e comprime os pulmões: está contra você?






6/11/2012

negrete

Foto de www.folhapaulistana.com.br






seus pés desenharam na calçada
áspera as paredes do Grande Hotel
Abismo: você é o hóspede e seus pés não têm
pra onde ir agora que o desejo
foi jogado pra fora de vez pela entrada
por ordem da gerência do Grande Hotel
Labirinto quando sonhos passavam
pelas janelas e você planejava
uma fuga se agarrando a eles  [tantos]
que flutuavam diante do Grande Hotel
Desesperança até que você percebeu
que não pode se agarrar a sonhos porque
sonhos não tem corpo nem se importam
com você sentado no chão do Grande Hotel
Demência incendiando pedras brancas
no fundo de uma lata velha até pintar
de púrpura  e dourado a noite que mora
dentro de seu pensamento com uma fumaça
bêbada agora que você perdeu
pra sempre o caminho do elevador
que levaria ao topo do Grande Hotel
Derrota onde os sinos dobrariam
por ninguém quando você medisse
a sensação do salto como a única rota
pra sair desse quadrado estreito dessas
paredes espessas como o ar da noite
quando faz voar jornais de ontem
com as notícias de sempre forrando
o pavimento neutro do Grande Hotel
Esquecimento onde não sai ninguém
por uma porta pra lhe dizer: “você
está fora, cara.”

6/08/2012

Fatos, como eu ia dizendo

Fatos se opõem ao sol que se põe, estão ali, desnudos como a mais neutra das evidências, são nervuras de uma parede que não pode jamais ser atravessada, toda palavra é estranhamente volátil diante dos fatos inclusive esta

fato, que poder de sedução na obviedade incontida do real que dispensa sentido e verdade, na brutalidade crua daquilo que atravessa os ouvidos e não precisa de grito, arranha os olhos e ignora a luz: nada como a crueza

de um fato, um pedaço de carne sangrando, um arame fisgando tua boca e te puxando pro céu, uma força irresistível dos argumentos que se movem ao redor de fatos que por si movem em si cada um por si ah quanta inteireza e verdade superverdadeira naquilo que simplesmente observamos

ou gostaríamos de anotar com supra-olhos mentais, a imaginação que é tão carnal quanto a vida, um sopro, o ar que anima nossos sonhos, as vozes alheias que brotam das paredes, o sutil sabor de doce implícito no amargo, as certezas mais simples da vida, quando um homem sensato se depara com os fatos e o fato é o que foi

feito e o que foi feito pode ser mentido e desmentido figurado e desfigurado mas não pode ser desfeito, o que foi feito é fato e aí está só

não sei porque tantas palavras, talvez elas faltem ou sobrem quando o assunto gira em torno de fatos ou sei lá talvez fatos precisem de bocas (metaforicamente falando) e olhando bem um fato é um verbo disfarçado

de substantivo, enfim acabei perdendo o fio

da meada.











6/02/2012

A máquina de influir

Estamos todos conectados à realidade

do meu pesadelo enquanto alguém digita depois de ele ter pensado nos meandros da máquina de influir

neste exato momento em que digito neste instante em que antevejo a letra cobrindo de negro o brilho branco da tela até mesmo antes a pregnância da idéia, do pensamento que é um vácuo formal à espera da substância das palavras e todos os processos gerações e gerações de rodas dentadas em tudo isso vê-se a mão delE

no momento do xeque-mate havia um homem oculto sob o robô – o capeta tem um rabo tão comprido quanto as rodas de um monociclo – as lentes do pensamento – o rastejar da lesma sobre o muro, o risco – a alma que é um devaneio de alguém – o teu nome

é como aquela cenoura presa à testa do asno – baixa a bola – cai na real – não me lembro

quem foi que disse isso e quem foi

que disse isso e isso também

que acabei de dizer quem foi?







5/30/2012




É
se você canta ao som
do samba
- enredo -
imagina e explora
introduz e seduz
vocábulos
sintaxes
e temas
densos
É
fortes
É
você dança
direitinho
guiado
pelo anão que rebola
Ú
no ritmo
É
no ritmo

e esquece da cuíca que grita

e goza a Vida


Nãoãoãoãoão com eco

Não quero rir das suas piadas por educação. Tem uma coisa na mente que preciso destravar, um vínculo estranho com a sociedade de massas e a suspensão do calendário e as calêndulas nas máscaras do consumismo e não me interessa que na hora H você apele à polícia ou ao Magnífico Reitor, não há caminho reto quando o que resta de fogo está nas lâminas da palavra não e como me aferro

ao meu direito de dizer não, é o direito de um sujeito acuado, é o direito de um sujeito que dá de cara no muro, não é o sim do símbolo dos teus sonhos, mas é meu pequeno território de nada no eixo do vazio êmbolo em que proclamo a absoluta nulidade de todas as tuas afirmações

oito-olhos. E sigo no meu não, que seus cães tutelados venham ao meu encalço mande um carteiro com uma correspondência registrada e um revolver a tiracolo, ainda sim vai sair da garganta meio apodrecida de um sujeito que queima à luz do anonimato um renego como madeira velha em que o vinho adormeceu por muitos anos, o não como um grito

existe algo de afirmativo nesse não, como existe algo de fogo no vinho e como tudo de humano emerge apenas como ferrugem em tuas facas afiadas, não é?

é um não estranho não é mesmo, não é qualquer não, é um não que parece se chocar, entrar em choque, criar um desalinho, fazer do mundo um colorido todo especial, quantas nuances na última corrida da cadela Baleia enchendo a pança de preás

inexistentes, quanto vigor naquela corrida – o não coloca o mundo em suspenso vem de onde pode brotar qualquer sonho e todo delírio é permitido e no mínimo estamos dizendo que o mundo não é o que está aí, flutuando a favor das correntes,

você pode até me puxar pelo braço, mas como vai segurar o meu não inexistente? É melhor o Sr se acostumar, oito-olhos, outros já tentaram

de tudo, de hipnose a coerção, de valores morais à verdade da maioria, de chicotes à sangria desatada a lágrimas nos olhos a ofertas irrecusáveis, multidões marchando em palácios esportivos, todo tipo de ginástica

conceitual, todo tipo de bandeira, brandura e ameaça, mas parece que não

existe algo de incorrigível em nossa condição ou o incorrigível é nosso último refúgio, com uma

labareda, ao centro: queimando-se ao contrário, produzindo ar.

5/25/2012

Tudo é tão simples


1.
Tudo é tão simples quanto ter nascido como quem é lançado sem proteção contra a violência solar e tem a pele irremediavelmente queimada e sensível ao mínimo toque quanto ter nas mãos uma sentença de morte contra todo aquele a quem se toca quanto realizar hipnoses alheias quando o único toque entre você é o mundo é a sua respiração que emana do inconsciente da vida, a crueza primordial da luz e seus cortes da respiração e seus influxos mágicos, um amuleto de carne e sangue nas mãos de um deus que sente e pensa como quem dorme, um deus cujo templo único é o invisível impulso de tudo: tudo é tão simples quanto a vida ser a alegoria escrita sob os mandamentos de um transtorno obsessivo compulsivo – quando um anjo cai e se levanta cai e se levanta

e


2.

Quando eu estava no presídio, meu vizinho de cela colecionava livros sobre budismo e estatuetas de Siddhartha. Ele só tinha dois dentes, mas tinha vários objetos raros e longínquos. Sua conversa não era permeada de sagrado, pelo contrário, ele só dizia o óbvio. Isso tudo era inverossímil e deve assim parecer ao leitor.
Criamos um território imaginário denominado de possível: contudo, o impossível atravessa os poros do muro como um fluxo invisível e insidioso.


3.

Estávamos sentados num canto da sala. Usávamos um cobertor laranja. As pessoas pensavam que era por causa do frio.
Minhas mãos são cheias de linhas do destino, como se tudo fosse embaralhado. Uma leve sucção puxava a ponta dos meus dedos. Não existe nada mais macio e nenhum lugar mais apropriado. Queria usar esse molhado para deixar minhas impressões digitais, quando o Estado me reclamasse.
“Se você quiser mais, estou te esperando lá fora”.

5/22/2012

desvio para o vermelho, 5






Alice olha sua alma indo pelo ralo como água suja  Atravessa
a sala na diagonal sonhando com os cacos de uma consciência
estilhaçada iluminando a aproximação do nada O acontecimento
perde-se pra sempre enquanto Alice ingere 1% de veneno
em cada palavra do poema infinito que recita enquanto olha
sua alma indo pelo ralo como água suja  e atravessa a sala
na diagonal fazendo da repetição o seu discurso particular
do método infinitesimal pra se reconhecer na vida olhando
a alma indo pelo ralo como água suja ao som do sangue
em câmara lenta pelas veias na vertigem de uma dança
benzodiazepínica regada a álcool e silêncio no caleidoscópio
estilo pole dancing do seu inferninho tosco recitando um credo
incompreensível e em tempo real atravessando o quarto
na diagonal pensando na repetição como talvez o último
recurso que se pode às vezes lançar mão pra segurar a alma indo
pelo ralo como água suja enquanto atravessa a sala na diagonal
fazendo da repetição a arma cuja munição são cacos de uma
consciência vilipendiada A violência sempre há de chegar com toques
de delicadeza e Alice se equilibra sobre o arame que atravessa
a sala na diagonal olhando sua alma indo pelo ralo como água
indo  ao cume do arame sobre o picadeiro e uma plateia de tacos
gritando ‘pula’ mesmo enxergando a inimaginável altura
de seus sonhos e a rede inconsistente Alice olha sua alma indo
pelo ralo como água brusca e quer saltar quer se soltar mas
prende-se ao arame que é uma diagonal marcada no vazio
cuidadosamente entre os abismos de todas as frestas
que são leitos onde o corpo já não sente mais as sombras
que dissolvem a luz nesse presente assim sem espessura
enquanto Alice adiciona 1 grama do princípio ativo em cada palavra
do poema indo pelo ralo pelo sangue adentro pelas veias
pra inscrever no corpo uma camada ácida uma charada falsa
uma verdade brusca antes do salto mas Alice espreme
em suas mãos a massa informe de um presente espesso
e sente entre seus dedos uma gosma fina que lhe escorre
e escapa carregando o último sentido como escapa a alma indo
pelo ralo como água suja saturada de veneno e espanto