10/30/2011

Álbum de perfis

Álbum de perfis. Será que estas efígies que me dirigem nos olhos seus rostos olhando pro lado

pra onde?

Essas múmias cujas faixas são sinais elétricos, entenderão a intensidade desse gesto passado, este sorriso sem pé nem cabeça, uma lembrança sem antes nem depois: o sorriso de expectativa do lado do terreiro noturno da dona Dalva, por exemplo

à espera de quê? Será que ainda? Gravado não sei como não me lembro o motivo, na alma e

onde ficaria a alma, afinal?

Se a memória não é mármore é mar rarefeito no tempo, água-viva, o passado arde na pele do presente, será que estas estrelas

-marinhas que me vivem no sangue algum dia vão entender por que isso é tão nítido, como se agora mesmo eu estivesse sonhando com você aqui sorrindo ao que nunca vai suceder, e outros, tantos outros tão mínimos, nas suas cabeças talvez

não pra mim. Pra mim nada é mínimo. Ou sou um homem feito de mínimos.

Cada mínima ferida
Alegrias menores e o resto
É vazio – vazio de mar

E o cadáver chegou à praia inchado de água, todo marcado por pequenas mordidas de peixe:

a pequena voracidade do tempo.



E como entender que nessas lembranças tão nítidas não há nada

de decisivo, ou que elas são sustentadas por coisa alguma, um duradouro quase nada e mesmo assim elas saltam aos olhos como peixes coloridos e silenciosos e outra:

como entender que apesar disso, elas não são vagas indiferentes. São como feridas que passaram e não deixaram cicatriz e sangram

indolores.

O fodão do colégio que me jogou na lata de lixo, não era bullying, isso não existia, hoje é fotógrafo de casamento – é o que me diz sua múmia. Você, que me disse que os professores me odiavam e isso era sinal de que meu “trabalho” estava sendo bem feito e eu devia continuar. Aquela coisa que ia acontecer na Casa dos Padres e não rolou, Paulinha. Andar de carona no carro velho depois do curso de formação política – comunista aos 13 anos de idade. Qualquer coisa, uma frase, um gesto e um desejo



de sair perguntando: você também se lembra disso? Você também se lembra disso? Se só eu me lembrar então quem sabe

tudo não passou

mesmo de um sonho e querer sair do sofrimento é como se esquecer que se mora numa casa que está

pegando

fogo:



água salgada é fogo condensado,
tudo nessa história é refração,
cenas soltas

não

compõem uma vida.


De quê então
uma vida é composta? Uma vida

é composta?

A memória é um mar iridescente de gestos e frases
irrisórios que emergem
do nada.



ou pensarão

que este xarope pirou porque lembra demais?

10/26/2011

sábado em copacabana

a menina olha o mar
do outro lado da avenida Ela está parada
no calçadão enquanto
os carros passam
as noites passam
as suas chances
passam enquanto seus olhos
trilham o meio do breu das águas
e se perguntam onde foram parar
os dólares e os euros
que clientes americanos e italianos
largavam em cima
do lençol molhado de suor
e esperma Ela não sabe que a máquina
de fabricar notas verdes
está emperrada no além
do breu das águas e os gringos
andam agora com as mãos
nos bolsos no olho
da rua Ela tem sonhos
psycho em que dança
nua com as colunas de uma igreja
abandonada entre
espasmos
numa batida trance
numa batida trance
numa batida trance Ela
tem sonhos ácidos em que seus dedos
gozam quando tocam as notas
verdes que saltam de uma pauta
como cédulas de cinqüenta
na batida
do funk Ela tem sonhos
mínimos em que seu corpo
acende feito neon quando milhões
de mãos se esfregam
em suas pernas
perfeitas de cleópatra
do subúrbio
e seus poros aspiram moedas
que douram seus pelos
como água oxigenada e vão
direto para uma conta
bancária através de cabos
subterrâneos Copacabana
é um delírio nas retinas, este lugar
é um sonho em que você
não consegue dormir uma noite
que seja, ela
pensa de dentro
do inferninho da beira da praia
à meia-luz Ela tem sonhos
turvos com um paraíso
cheio de lojas que seu dinheiro
pode comprar porque Copacabana
tatuou em sua pele
com saliva
todas as línguas
que o mundo fala
quando não quer
dizer nada

Considerações sobre um questionário

A minha área:
Aérea.

Meu território:
Onde estive
E não estou.

Meu recorte temporal:
Um caso crônico.

Minha especialidade:
Especiarias
Etéreas.

Minha escola:
Escória na tua mente
Profissional.

10/22/2011

É um cristal ou melhor: cristalização. Quase. Uma estrela
Do mar, na ponta de cada tentáculo
Dentes, de lobo: animal faminto
Devorando as bordas
Do mundo.

Oito-Olhos no centro: aranha cravada no eixo
Do nada
Patas caçando
Um porto seguro
No vazio, raízes em expansão:

Pensar num besouro caído com o dorso
No chão quente: movimentos descoordenados no ar:
Membros de uma pessoa jogada do terraço de um arranha
Céu.

Tudo isso.

Um corpo que sente a vida ser criada
Apaixonadamente, como dor, feridas
Que se cristalizam, mineralizando-se:

Assim o desejo se cristaliza em poema.
Assim o lodo se cristaliza em história.
Assim o caos se cristaliza em cosmo.

10/17/2011

inútil paisagem imóvel

diante de seu corpo, da alma
nem pensar: ela pegou
um táxi em direção
ao centro da cidade
abandonada ou se perdeu
nas revoluções
por minuto [você vai
falar de novo no eixo
inexistente, cara?] ou
se desintegrou quando viu
no espelho a própria imagem e ela parecia
antimatéria ou ainda
seu corpo, isso que produz
pensamentos, irrigado por sangue
quente, hormônios e linfa, isso
que pulsa e expele
secreções, não se reconhece
na idéia de alma As fachadas
mudaram de cor, pântanos
aterrados, flores de concreto
e vidro brotaram da terra, mas
a paisagem permanece
imóvel, áspera [não tem
negócio, meu chapa],

cenário Enquanto isso, mercadorias
incandescentes inauguram
cultos efêmeros, catedrais
instantâneas em que séquitos
depositam almas planas em suaves
prestações num jogo
de corpos imolados em epopéias
controladas por relógios
de ponto e catracas biométricas,
à espera, sempre à espera
de uma rave
tão ácida que dissolva a cápsula
impermeável da alegria
pra que ela penetre em todas
as rachaduras
dos muros
e suma
Toda manhã o sol emerge
Vomitando sinais
Cuspindo matilhas
De rancor, tantas palavras
Engrenagens

Rodas dentadas
Portando armas,
Marcas. Multidões.

Desenhar, com finos traços
Como a safira sobre os sulcos
De um disco
O azul inútil de asas
Transparentes, contra o céu.

Elucidar, na mente de tudo
O giroscópio (vazio) de anjos
Os abismos ínfimos
Onde sobrenadamos:

Que o ódio atravesse tua alma
Como as partículas sem peso
Que o universo vomita ao explodir
O sol.

10/10/2011

Como responder à objeções de um rato 2

Ratos de laboratório submetidos a eletro-choque ficam paralisados – de medo. Nem sequer procuram a saída do labirinto ou farejam a isca visível e apetitosa no centro da caixa.

Ratos também passam pela experiência

narcísica de olharem pra água à procura de si mesmos. Além de se reproduzirem em grande velocidade, os ratos se multiplicam porque tendem a ver o mundo como um amplo viveiro de fantasmas-ratos: ratos voadores com asas de anjos, ratos mutantes com flores plantadas no dorso. Todo rato real prolifera no mundo imaginário, ocupando-o com seus duplos, seus gêmeos, seus irmãos siameses, formando redes entrelaçadas por dentes finos e excrementos.

(Ai de você se um rato te tomar por espelho!)

É por isso que, mesmo que tomado de pavor, um rato sempre acredita que vence.

Entre os animais, somente dois matam outros de sua mesma espécie: o ser humano e o rato. Isso está começando a parecer uma aula de biologia. Mas não é isso. Existe um heroísmo de ratos. Uma coisa estilo pancadaria de desenho animado. Os ratos curtem andar coroados por seus próprios excrementos. Os ratos emitem sinais, guinchos: eles falam por dentro de você, da sua língua viscosa de betume, seus olhos de fio elétrico desencapado.

Você, o vencedor. Você, o coroado. Você, o que se agachou – para fora da possibilidade do soco. Você, o espancador de mendigos que viu seus finos dentes caídos no chão quando um deles revidou. Você, o que superou os traumas de infância se agarrando à tesoura como objeto-fetiche e parâmetro de astúcia e agora vomita estratégias imaginárias no mundo virtual, imobilizado no seu canto da caixa do laboratório.

10/09/2011

aquelas flores que sangram se abrindo por dentro em sua carne

para helena n.



foi numa primavera hostil que deixei de te entender
e semeando ausências nos teus calendários
não via as flores mortas nos jardins
onde depositei o simulacro de outro drama
em que anjos distraídos se dissimulavam em pedra
ou em cedro dourado nos crepúsculos dos adros
e das naves escuras e vazias

já não me importa mais que as células sãs enlouqueçam
ou teçam abismos pelo corpo
abismos sangrando névoa e nuvem
e descompassem a música das esferas
nem que o silêncio venha carregado
das palavras
esquecidas num tempo em que ainda amanhecia

neste mesmo lugar deixei o mapa
que nos traria de volta a um presente que não termina
e agora
depois de todas as pontes arruinadas
vi pelo espelho dos metais que andei forjando
um rosto
que representa a ilha
num mar que transborda cinza bruma e gelo

nos acalenta agora nesta outra primavera
o fio que abre a ferida sem resposta
aquela em que
[lançando imprecisões nas cartas do destino]
finalmente
eu
não sei

10/05/2011

"Só o (palavra proibida) nos une"

Como é bom ter de novo
O silêncio
Não o mero cala-te
Boca, ou o estado definido
Do silêncio como um peso, um aperto
De mãos na garganta
Da alma.

Como é bom ter de novo
O silêncio em que palavras
Se dissolvem depois de partir
O silêncio, ínfimas
Somem, consomem-se
Quase inaudíveis como a areia
De uma ampulheta ou
O silêncio dos pássaros
Que voam alto depois de um grito
De fome:

O silêncio que segue
Pensando alto – algo como:
Não é com você
Nem comigo
Que eu estava falando.

10/02/2011

cinco ou seis maneiras de se perder na cidade

você tem cinco ou seis maneiras de se perder
na cidade Numa delas
o Livro dos Espíritos é um oráculo
tatuado em braile na pele
de meninas mestiças que dançam
nuas sobre lençóis grená
um cântico sufi enquanto
o sentido arde em suas vísceras e seus pés
escrevem um livro chamado
motel nosso lar Em outra
o labirinto de memórias detona
a dessublimação feroz
que você rasura no Breviário
das Horas, estação
por estação, como se isso
criasse qualquer âncora
entre você e o mundo E ainda uma
que repete ao infinito a metamorfose
em que diante do abismo você
é um poema escrito numa língua
estranha cujo último verso
esconde uma
chave As outras não
interessam


Rimas trôpegas de um poeta tímido

Não posso te dizer o que sinto:
é proibido.
Preciso deixar tudo bem escondido,
tudo pelo não-dito.

Mas, a cada vez que te vejo
de longe eu pretendo
te dizer o que leio
no fundo do teu olhar.

Não, não posso:
Vem à tona o remorso
e já cabisbaixo retorno
a meu profundo pesar.

Será que vês meu sofrer,
todo dia ao amanhecer,
esperando que o teu querer
possa o meu encontrar?

Não, novamente o proibido
deixa-me muito aturdido,
saio com pressa, contido,
e volto para casa sonhar...
Vivi minha vida sem mim.
Sem que eu a tivesse vivido.
Viver com alguém é prescindir de si?
Talvez, mesmo que por alguns momentos.
Mas, agora que tenho a mim mesmo,
Sinto minha ausência
profundamente.
É como se eu não sentisse sequer minha respiração.
Ausência.
Como procurar a si mesmo?
Talvez o segredo esteja em encontrar
o outro profundo que existe em mim.
Refúgio da ausência no fazer eternamente repetido
de meu poetar.
Vejo o pôr-do-sol em
um lugar qualquer,
derramo minhas lágrimas
de tinta em um papel qualquer,
e vou embora descansar.