10/02/2011

cinco ou seis maneiras de se perder na cidade

você tem cinco ou seis maneiras de se perder
na cidade Numa delas
o Livro dos Espíritos é um oráculo
tatuado em braile na pele
de meninas mestiças que dançam
nuas sobre lençóis grená
um cântico sufi enquanto
o sentido arde em suas vísceras e seus pés
escrevem um livro chamado
motel nosso lar Em outra
o labirinto de memórias detona
a dessublimação feroz
que você rasura no Breviário
das Horas, estação
por estação, como se isso
criasse qualquer âncora
entre você e o mundo E ainda uma
que repete ao infinito a metamorfose
em que diante do abismo você
é um poema escrito numa língua
estranha cujo último verso
esconde uma
chave As outras não
interessam


4 comentários:

Daniel F disse...

agora acho que vale a pena falar no "último verso": parece uma chave-de-ouro ao contrário. sempre que alguém usa essa expressão "não interessa" eu sinto como uma forma de interromper bruscamente um assunto, principalmente quando aquilo que realmente interessa ainda não foi dito. achei divertido. a impressão que dá é que (falo só no efeito da leitura, é claro) você começou a escrever e foi se cansando e chegou no final resolveu dar um fim no assunto pra poder pensar em outra coisa mais importante.

Aldemar Norek disse...

é, Daniel, eu estava pensando ali exatamente na chave de ouro ao contrário, tipo anticlimax.
também em dar um pé em certo voyeurismo que a gente carrega na leitura, pq o principal não foi mesmo dito, foi iniciado mas suprimido... Mas também tentei expressar um cansaço do pensamento. Resumindo: gol de letra.
(uma amiga tinha me perguntado ontem como é que pinta este lance de escrever, se é uma 'inspiração', mais ou menos, acho, no sentido do cavalo que recebe o santo etc. Tentei explicar, e acho que não consegui, que é um caminho de pensamento, um pensar com as palavras. E me toquei de que às vezes isso cansa).
Abraço!

Mar Becker disse...

Bah, mas eu achei uma coisa fabulosa este poema...

Fiquei no giro, no-me-perder numa cidade, como se o poema fosse criar uma âncora entre eu e o mundo.

Aqui tenho a impressão de portas que dão na cara, batem por meio da disjunção 'ou', tem esta e tem aquela maneira de se perder (e em cada maneira uma história dentro de outra)...

"[...] Numa delas o Livro dos Espíritos é um oráculo tatuado em braile na pele..."...

Engraçado, a mim os dois últimos versos soaram como o último fio de fôlego, como se estivesse à beira da morte e devesse informar alguém: "se preocupe com a chave do último verso, as outras não interessam" - e morre.

Beijo!

Mar

Aldemar Norek disse...

Que interessante esta sua leitura, Mar! É um barato esta abertura de interpretações, onde de repente estão todas valendo.
Bjo!
Aldemar