2/27/2011

A irmã siamesa da minha namorada. microconto

Quando eu conspirava com os pássaros bêbados do Jardim Oricellari, a irmã siamesa da minha namorada me fez uma visita. E eu nem sabia que minha namorada tinha uma irmã siamesa. Todo o ônus estético da cirurgia de separação dos corpos ficou por conta da tal irmã. Minha namorada é linda, pele elástica e suave, a sua irmã tem a metade direita da cabeça cheia de manchas vermelhas, a pele enrugada, como se ela tivesse passado por profundas queimaduras. A pupila de seu olho direito é prateada, quando ela fala soa como um dueto desafinado, porque sua voz é estranhamente dissociada em duas. A irmã siamesa da minha namorada se ofereceu para ser minha amante. Nela, eu poderia confiar cegamente, porque o sofrimento e a destruição levariam à virtude. Minha namorada, disse a sua irmã, tem seus momentos de maldade: a beleza leva a um tipo de inocência um tanto perversa. E eu sofreria muito por causa disso. Isso me soou estranhamente a um canto de sereia, ainda que lodoso, sacrificial. Afastei de mim o cálice, despertando para a lucidez do dia. (Mais tarde, descobri que a irmã siamesa de minha namorada tinha chegado no porta-aviões de Noé. Sua verdadeira intenção era bisbilhotar, descobrir como estávamos vivendo, nós, os seres marinhos viventes do dilúvio).

2/25/2011

[Fuga para a realidade] Prólogo a Alberto Caeiro

Quando estou cego diante das coisas utópicas que o ser humano criou, quero apenas voltar para os campos, olhar o mar e a planície ventosa ao final de tarde, homenagear o pôr-do-sol e, depois de tomar um banho de realidade, voltar ao mundo das ilusões.
Quando vejo o sol, apenas o vejo. O sol não engana nossos sentidos, pois o seu movimento está aí. O mar nunca me enganou, pois sabe que devo respeitá-lo. A terra também não nos engana, pois sinto o seu calor ao final da tarde, sua poeira que levanta com o vento e traz seus respingos em meu corpo, cumprimentando-me. A noite se inicia, com seu ritual sagrado, vejo cada estrela em sua posição e apenas aceno para elas, em respeito à realidade. Agora, posso voltar.

2/21/2011

1. quando eu era criança em noites de lua nova tinha uma pescaria em que o rastro da rede na água salgada do rio brilhava como num sonho ou tela de cinema as pegadas que ficavam pra trás ficavam cheias de pontos prateados brilhantes a noite tinha que ser bem escura a gente chutava a água e cada gota que caía era um brilho a mais será que poderíamos plantar flores na lua você me disse meu codinome é democracia não exatamente você mas na sala escura a tela brilhava a garota vestida de flores no seu rosto o lado esquerdo na sombra o olho negro brilhante o lado direito o olho prateado uma lua mais intensa e psicodélica era a sombra de seu inteiro rosto em minha imaginação,

2. o sol da manhã inclinado sobre a areia até a sombra era dourada os grãos não eram uniformes roídos pelo mar pedaços de cristal do vermelho ao branco ao brilho transparente eu corria olhando o chão eles querem matar o amor o rastro de luz sempre ia além mais rápido areia clara areia amarela seu rosto dourado no quarto azul sob a lâmpada incandescente areia escura multicolorida na sombra dourada as duas metades de um sorriso a brisa a pele salgada de suor de maresia a mais perfeita matéria-prima pra compor sua imagem na memória,

2/18/2011

Inferno de bolso na cidade barroca

Amanhece, por que o céu tende ao vermelho, o galo canta, por que o dia range como roldanas enferrujadas manejando tristes marionetes. Quem beijaria o peixe morto? Somos cruéis e sorrimos com o canto da boca enquanto o peixe agoniza numa gaiola. Nas estatísticas que brotam dos jornais jogados contra a cara violeta da madrugada, nada sobre pesca, nada sobre Oswald de Andrade, nada sobre a Caixa Econômica Federal. O demônio é a mentira sonhada por um animal triste. Os 12 apóstolos eram cães farejadores e serão nossos inimigos pelo resto da vida.
Brisa noturna, chão de pedras irregulares, varanda virada para a igreja, quantos batismos e uma constatação: somos carnívoros, amor.

2/11/2011

Escrito no éter da manhã

1. Caderno de poesia carbonizado no amanhecer em elevada altitude. Nunca vi a dança da minha bailarina predileta.

2. Calor frio da manhã laranja sobre a tinta azul. Alguém dorme na minha imaginação.

3. Não escovo os dentes. Saio pra rua, converso com o porteiro, o chefe, a secretária, o guarda. Gosto agridoce suor na boca que presta esclarecimentos: a profunda irrealidade de tudo.

4. Verde claro, verde escuro, verde pálido alternando-se na planície aos poucos encoberta por uma névoa fina e luminosa, verde azulado e cinza, claro – branco se adensando em novo cinza e azul. O céu é onde a planície evapora.

5. A luz estoura meus olhos – coisas entre espaço. O que alguém está desenhando neste momento.

6. Como uma lâmina corto o vapor, onde o sangue dela circula.

2/08/2011

o que é o presente?

tinha 20 e poucos anos
sabia muito pouco sobre qualquer coisa
mesmo assim
deu todos os passos certos:

os caminhos do mundo não estavam lá
Na chuva espessa
Céu vermelho-apocalipse
Olhos, formas estranhas
De animais marinhos
Quantos brilhos famintos

Você sozinha &
Sou apenas um medíocre
Poeta
Não posso te salvar.

2/05/2011

Pequeno Dicionário das Aproximações

Vida (s.f.)
Sucessão de acontecimentos em sua maior parte desagradáveis – vez por outra alguma ilusão fortuita pega você pela mão, mas fique atento: de fato, cedo ou tarde, tudo se converterá em fumaça, e esta possui como efeito colateral alguma sensação de asfixia, em maior ou menor grau, conforme o porte da ilusão que a constituiu. Se você for portador de uma sensibilidade mais ou menos refinada, irá se sentir dentro de um filme de humor de péssimo gosto, em que todos – atores, diretor, equipe técnica e espectadores – têm motivos para rir, menos você. A má notícia é que tal sensação pode lhe acompanhar durante toda a sua vida. A boa é que o filme acaba junto com sua vida. Há uma outra má notícia (o que não é novidade): o filme termina, mas alguns críticos continuarão falando de seu desempenho na fita – e em sua maioria falarão mal, principalmente porque você não estará mais aí pra se defender. Um poeta alemão metido a entender disso que chamam por alma humana (apesar desta expressão representar uma evidente contradição de termos), muito influenciado pelos antigos gregos e por Shakespeare, disse que é impossível suportar a vida sem duas ou três doses de algum tipo de anestesia. Imagino que ele se referia ao álcool, mas podemos incluir outros estupefacientes, como a corrupção, o ópio, o sexo, a comida, a exploração do trabalho alheio, a TV, a maior parte do que se produz sob o nome de arte, etc. Tudo bem, caso você seja um sujeito de sorte poderá deparar-se com duas ou três flores verdadeiras em meio a este deserto. Flores não vivem no deserto – dedique sua vida a protegê-las, mesmo que o diretor da fita diga que seu papel não tem nada a ver com isso.

TREZE

13

Que fosse um adeus para aquela
mulher rubra igual a uma
exasperação extrema. Afinal,
conseqüência da solidão soleniza.
Então, na sala, torna-se sombria
e jamais perpetua-se. Horários conexos,
reza de amantes. Morre de
si para não ser osso e terra.
Toda a forma exige epitáfio sóbrio
ao Eu oculto. O que dizemos
pode voltar como objeto, ser comum.
Ave na estória da cantoria, destino
ansioso que vem de vidas obscuras.
Se há boca, há grito, o céu é impróprio.

(c. ronald, in Caro Rimbaud)

2/03/2011

deus do azul profundo



deus do azul profundo, pele blues, olhos pétalas brancas que flutuam em águas suaves, não deixe que o sangue coagulado cegue meus olhos, agulhas brotam das paredes, gritos grudados na parede quente, invisíveis multi-armados lançam luz vermelha de mira noturna dança em meu peito, todo nascimento precede morte precede renascimento precede morte renascimento morte, todo nascimento é inesperado e ainda assim rezo, deus que ao mover os braços flui o tempo me ensine a renascer, o vermelho espalhado no chão sob as árvores são pétalas é sangue são pétalas sangue coagulado do meu amor pétalas, a poesia de nada serve é uma ferramenta de que esquecemos o uso mas a poesia rasura a solidão, é uma reza pra você deus inexistente força do tempo azul dos acordes blues das pétalas que brotam vermelhas inesperadas do sangue coagulado vermelhoazul, das palavras que rasuram a solidão como o amor é uma rasura que cobre a solidão e esta reza com cara de rasura faz de conta que solidão inexiste deus,

nós sabemos deus sem-líderes que a corrupção da família nos leva ao inferno por muito tempo, estou no vazio e pedras caem sobre mim, uma chuva de pedras pesadas e ninguém me abraça ela achou melhor que eu abraçasse a solidão deus do vazio-procriador-do-vazio-no-peito das lágrimas películas de água salgada vazias por dentro, ninguém está em casa em lugar algum, programadores de imagens terríveis e canibais o seu nome é inferno, você que testemunha tudo com seus milhares de olhos que transbordam carinho, você que ensina que a tristeza não é boa conselheira, eu repito não quero mais sofrer não quero mais sofrer não quero mais sofrer e me pergunto se isso é digno e o deus me diz: as flores não pedem perdão por encantarem o viajante solitário e ainda assim encantam o viajante solitário o viajante solitário se encanta nas flores e as flores se encantam o que seria das flores sem o viajante solitário flores sem o viajante solitário sem encanto,

mas você sabe deus transbordante a guerra em estilhaços a guerra imemorial e seus estilhaços e somos estilhaços de uma guerra sem começo, por que as noites são tão longas se melhor é o pesadelo diurno, o vazio longo das noites, os estilhaços as pedras que caem num corpo que flutua no vazio e ela preferiu que por hoje eu abraçasse a solidão com meus olhos coagulados de sangue, ela as pétalas vermelhas ela as flores que encantam o viajante solitário ela a mensageira do deus azul escuro,

então me diz deus imóvel é lutar ou abandonar matar ou mendigar e o deus me ensina: a morte é certa para aquele que renasce a tristeza não é digna daquilo que renasce e o deus que-tudo-atrai me pergunta: então você me conhece só por ouvir falar incompletamente ignorante e sábio talvez, a dor manda lembranças e você queria um deus existente e uma poesia com resultados você queria outra coisa da poesia além da poesia não era isso o que você queria desse jeito nem toda água bastaria para a sua sede, a raiva seduz o intelecto com girassol em pó a sede que não cessa e se você não faz nada mesmo assim o inferno age em você e você se lamenta pelo fim do sofrimento, ladrão de flores,

e o deus blues me ensina que é em mim que as flores se encantam mas sem mim as flores me encantam e o deus me diz: você quer o que você já tem mas precisa fazer de conta que não tem para querer, você daria pedra ao seu filho se ele pedisse pão, a perfeição não chama pelo nome a palavra da qual brotam todas as palavras é sem significado a solidão rasura a mente do solitário não há começo último para tudo que se inicia as pétalas se coagulam para que a flor mande lembranças o vermelho dança em seu peito o telefone não tocará esta noite nem só de palavras sonoras vive a divindade aprenda a rezar como quem fala como quem diz ontem senti saudade de você e recebe um sorriso e um silêncio em troca a flor é intocada pelo encanto que ela tece na mente do viajante solitário o sofrimento é feito de ar azul você é azul por dentro o tempo é azul sangue é matéria-prima de pétalas,

cedo ou tarde mas nunca na hora ainda ou rápido mas nunca agora assim nesse descompasso de tempo as coisas são criadas não se renasce na hora prevista e a morte sempre é iminente e acabou de acontecer, quem se apaixona por fantasmas, mas deus me ensine que mesmo do sangue coagulado podem brotar pétalas, não se curam feridas alheias lambendo a própria ferida, quem escreve quando escrevo talvez o amor desenhando a si mesmo ou o inferno agindo por conta própria mas me diga deus das coisas singelas e incomparáveis como ir além das comparações, me faça ver o brilho de tudo no brilho singular de cada objeto cada animal cada planta cada anjo que não se parece um com o outro apesar do mesmo nome o mesmo brilho e como o coração dela bateu em meu peito e como hoje meu coração bate sozinho e ainda assim é o coração dela que faz o sangue circular pétalas em mim porque não estando aqui esquecida da minha saudade é aqui que ela me encanta como as flores se encantam na mente do viajante solitário que diz hoje não amanhã talvez

hoje não quero sofrer deus azul escuro, eu queria poder renascer de um jeito mais duradouro sem ter que morrer novamente para renascer novamente, renascer dói deus dos braços líquidos fluidos como o tempo, renascer cansa e minha dor e meu cansaço eu ofereço ao deus do renascimento azul que me apareceu na forma de um coração alheio batendo em meu peito como pétalas vermelhas que brotam de uma força multicolorida, eu tremo diante do deus blues com seus dentes pontiagudos que podem triturar o mesmo amor que o deus brotou em mim e ainda assim mesmo quando tremo de pavor agradeço, mas deus dos braços líquidos quando ela me abraça é você que me abraça porque ela me abraça com a alma, ela a minha flor azul, não existe a arma que assassine a alma amálgama luz à avessa gravada naquilo que é luz em meu sangue, luzflor

me ensina matador de demônios que mesmo durante a morte a alma fica latente em si, só existe alma gratuita num abraço de pétalas gratuitas a graça se agradece pelo que tem de gratuita cem beijos blues, amor não é ritual e agradeço deus mestre das palavras indivisas cada ato é gratuito e pleno em si que pena daqueles que se devotam por lucro reconhecimento ou descanso após a ilusão do trabalho cumprido, se a poesia e o amor ensinam algo é por meio dos seus azuis braços líquidos o fluir dos dias sem antes ou depois, nem flores são floreios nem agradecer é louvor não há mérito em ser feliz e nem dignidade na tristeza, o caminho inverso dos apressados pressurosos porque eis o pressuposto ter não é reter, o viajante solitário encantado na luzflor se não agradece destino ingrato de ladrão de flores não sacia a sede ao beber água é pecado o que desce por sua garganta, deus que de nada precisa inexiste e ainda assim floresce e assim naquele que medita as chamas da vela pétalas na parede na pele e o mundo é uma inteira flor,

desejo de posse é matar ou morrer e o deus que se entende por música me diz: fazer de conta que nada está acontecendo os afazeres do nãofazer tanto faz como tanto fez prosseguir não é seguir cada ato como se inato ver sem observar falar sem inquirir beijos sem beijos cem beijos, deus solitário também precisa ser amado e se ama quando a amo e ela me ama e te ama no meu amor e seu nome é amor, deus apaixonado por si mesmo em mim e nela quando nos apaixonamos, deus que enxerga sua própria beleza quando ponho meus olhos nela, deus fruto e deus saliva deus que se alimenta de si mesmo, deus fogo que come o ar deus ar que apaga o fogo, deus que acorda quando desperto me ensina a despertar e prosseguir, amar conversar desfrutar florescer caminhar combater resistir escrever sem enredar-me, não a palavrateia a palavrarmadilha a palavramira o bombardeio de estilhaços sim a palavrasemente a palavrafruto a palavrapaladar prometer-se no ato imediato entregar-se prometer sem comprometer-me, dar-se como quem dança dançar-se e o deus superalma me inspira que a mente pode fazer de mim seu jardim tanto quanto a mente pode morder a alma com finos dentes metálicos, egoísmo de cerca elétrica enredando insaciável poder orgulho quantos demônios o coração de um vivente pode abrigar, caridade cheia de dentes e felicidade lâmina fria na alma da cidade, demônios comedores de pedras invejosos da pureza que no entanto habita adormecida em seu próprio sangue, mas

o céu vazio e intocável envolve tudo e assim a alma o amor a poesia e o deus inexistente uma fina camada azul chamada tempo eterno produtor de pétalas, tudo o que se entende por música o que está além mas une dois corpos abraçados o que está sob a superfície mas chama os olhos como um ímã, o amor que está em mim nela e nela em mim mais além e envolve cada animal cada anjo cada planta cada pessoa como a vida é intocável e desdobra mundos quem renasce para si para o amor renasce para tudo, Agradeço deus azul profundo, ela renasceu você em mim deus alma de tudo, ela as pétalas vermelhas ela as flores que encantam o viajante solitário ela a mensageira do deus azul escuro ela luzflor ela,