10/25/2013

De um trago
                        bebo o trevo amargo:
                        - O mar, cor de
                        verde tequila.

                        Trago o mar em mim,
                        sal na respiração,
                        corais marulhando na voz.

                        Em tudo percebo
marejar a monstrumaravilha.

                        Meu sangue é verde
                        verde marear.

                       
*
           
                        Mar, cor de
                        cobre
                        espuma do delírio
                        livra-me
                        da praia, fogueiras
                        caem da lua, em gotas.

                        Estranhos
                        olhos de feras
                        habitam teu ventre,
dentes – ondas
mastigam sanidade de turista.
                       
Desenho círculo de anjos
                        voando como insetos
                        ao redor do mau olhado
                        de oito-olhos:
                       
liberdade fere
                        e refere –
e desejo livre.
                       
                        Memória do mar
                        no primeiro desdobrar-se
                        do coração em lucidez
                        na primeira lágrima
                        em prismas de areia.
                       

                        

10/17/2013

Sol negro

A luz do sol
            perturba:

            Injete bílis negra
            até a raiz das penas amarelas
            contra a transparência vítrea
            da vida, do ardor nos olhos
            até a escuridão se enovelar
            ao redor do tempo –

            por dentro dos túneis da cidade
            dos vasos sanguíneos,
            da capilaridade do terror –
           
            Um redemoinho
            em forma de coração
            com poeira
de sol carbonizado.

*
Encubra o sol
das tuas pupilas na praga-nuvem e na praga-vento
interrompido por um denso raso
ou fino profundo,
empalidecido até a brancura:

que o sol se sufoque de todo o céu.

*
Que o sol se refugie
além da chuva mais forte
como um trem descarrilado
em flashes tremendo vagamente
através de todo o ar
e fluxos de duplas incríveis de fogo vermelho-violeta
bifurcadas ou em zigue-zague,
ondulando no mesmo instante
e duradouras no olho por pelo menos meio segundo:

Mas que seja um preto seco véu
que nenhum raio de luz do sol possa penetrar
ao sol alimentado pelo betume de todos os caminhos
ao sol holofote abstrato que vai te engolir na rua sem saída
através do imutavelmente sombrio abril,
por meio do desanimado maio
e escurecido no junho da manhã,
ou depois da manhã:

cinza

envolto assim.

E isso é uma coisa nova, e muito terrível.

*
O novo sol
parece, em parte, como se fosse feito de fumaça venenosa –
existem, pelo menos, duzentas chaminés de fornos num quadrado de dois quilômetros em cada lado de mim.
Mas a mera fumaça não sopraria para lá e para cá dessa forma selvagem.
Ele olha mais para mim como se fosse feito de almas dos mortos, os que ainda não estão fora, aonde eles têm que ir, voando aqui e acolá, duvidando, eles mesmos, do lugar.
Você sabe, se é que há coisas como almas
e se algumas delas assombram lugares onde foram feridas, deve haver muitas acima de nós:
sem chuva para falar e nenhum vislumbre de azul











10/13/2013

A POESIA ESCRITA POR MULHERES























A POESIA ESCRITA POR MULHERES


Tua delicadeza feita de garras
serve suaves lianas que envolvem
o corpo, o pensamento e seus sepulcros
num abraço de cisne e de serpente.

Consideras com cuidado a carne: é tenra,
pensas, é tenra, dizes delicada
e acrescentas que tem a soberbia dos deuses
e veste a inocência da lã;

é tenra, dizes, enquanto as mãos
passeias de enfermeira pela pele
e os dentes entremostras, aguçados,
naquilo que entenderei como um sorriso

- desses que são a última lembrança antes do sono,
o primeiro calor após se ajeitarem as cobertas,
a mão deslizada pela testa
              antes de me cravares a dor aguda e luminosa da morte.


(Jorge Wanderley, Adiamentos - 1974)

10/11/2013

                                   Lembranças
                                   de relógio parado
                                   casa entre lagos
                                   mãos sobre a grama
                                   pássaros em círculo.

                                   Tecendo lembranças,
                                   a farsa da memória.
                                  
                                   Farsa de memória é sangue
                                   do tempo:
                                   o real nos pulsos suicidas

                                   das lembranças.

10/06/2013

Kiss me to build a dream on (sobre a foto daquele que não era Herzog)

Kiss me to build a dream on


            Na sala, uma mesa redonda ocupada por um grupo de indivíduos distintos. Uma comissão da Comissão Especial para a Vigência da Inteligência. Cada um deles exibia o orgulho por estar ali, eles não tinham se dedicado tanto à toa  - aliás, por uma promessa que lhes fora feita quando ainda nem sabiam que diabos era uma escola. Desfrutavam da vitória após terem sido aprovados em concorridíssimo concurso, montado por outra comissão de especialistas em selecionar os mais capazes, os mais aptos, os mais confiáveis, após análise detalhada das curvas de desempenho num requintado exame de conhecimentos específicos. Pelo menos viviam numa sociedade aristotelicamente meritocrática, em que os iguais reconheciam seus iguais.
            Naquele momento, eles analisavam uma fotografia projetada na parede da sala escura (diga-se entre parêntesis: tratava-se da foto de um homem nu, com jeito de prostrado, olhando para o chão – não como os humilhados bíblicos, por que estes olham candidamente para o céu – por simples e puro cansaço, aparentemente não pensando em nada, e sobretudo não em ser erigido como herói alguns anos depois – porque se fosse isso ele estaria pagando um preço alto demais – e muito menos pra contribuir com a circulação de algum jornal sensacionalista. A foto apontava ainda para outro alguém, este atrás da câmera, atrás da lente, focalizando a coisa, uma espécie de olho que devassava o homem nu, situado no mesmo ponto de observação que os futuros observadores da fotografia, dentre os quais a dita Comissão Especial para a Vigência da Inteligência, os leitores de jornais e os historiadores do futuro).
            A pessoa que presidia a Comissão, ajustando os quatro óculos de invulgar modernidade, iniciou a sessão:
            - Hoje espero que vocês me apresentem seus relatos e relatórios, reitero apenas minha única exigência: sobretudo não me venham com o óbvio, vocês não são pagos para isso. Um intelectual nunca deve dizer o óbvio, isso é o que a Academia nos ensina, o óbvio não é digno de crédito, desqualifica e denega a nossa especialidade. Se a mediocridade imperante também não diz o óbvio isso não é problema nosso, mas como diria o grande assessor de Capanema, e nas horas vagas poeta Carlos Drummond de Andrade, deixemos pra lá os inocentes do Leblon.
            - Eu observei um detalhe intrigante na fotografia em questão (aqui o leitor visualiza uma pessoa especialista em relojoaria). Mas o homem visado pela câmera usava um relógio antiquado, mesmo para os dias em que se passou a sessão fotográfica: ou ele era um desleixado completo, ou alguém vindo das classes proporcionalmente mais desfavorecidas pela sorte. Tudo o que pude então concluir é que não se trata de um milionário, uma vez que este reúne duas qualidades que nosso objeto de estudo não traz, riqueza somada à preocupação com a imagem pública.
            A pessoa especialista em nutrição pede a voz;
            - Não pude calcular exatamente a quantos dias o sujeito alvejado pelas lentes não se alimentava. Isto porque ele apresenta um curioso estado de magreza, que não se sabe se correspondia a seu estado natural – é lamentável que não possamos vê-lo ao vivo, porque então uma simples olhadela em suas pálpebras nos revelaria se ele estava ou não anêmico – enfim, não sei se ele era magro ou se tinha sido emagrecido.
            Tomou a voz a e vez a pessoa especializada em história, admiradora que era da obra de Foucault:
            - Não acredito que vocês se percam nestas especulações irrisórias, e nem sequer toquem no foco da questão. Por coisas como estas que sempre afirmo que nossa sociedade iria à falência não fossem os historiadores. O mais importante é o cenário meus caros! Vejam aquelas paredes rachadas e úmidas, aquelas traves de metal sobre as janelas, em estado evidente de enferrujamento! O lugar, naquela época - e já se vão muitos anos aquela, eu ousaria dizer, pré-história – já era histórico, já tinha as marcas do tempo, imaginem o que ele seria hoje! Chego a sentir o cheiro de musgo e mofo que emanava naquele ambiente. Precisamos descobrir imediatamente o local iluminado pelos flashes pra construir um museu histórico, um espécime em estado bruto da engenharia do passado longínquo, pra que nossas crianças conheçam seu passado. Êta povinho sem memória!
            A pessoa que presidia a reunião retomou a voz:
            - Hora do intervalo! Peraí pessoal, deixa eu resumir nossas conclusões técnicas (amanhã vou mandá-las pros jornais, senão as pessoas vão ficar sem assunto quando forem ao Beirute): a pessoa em questão não era nem pobre nem rica, não era gorda nem magra, não se pode dizer se estava ou não passando fome, estava num lugar histórico mas que não sabemos exatamente onde ficava... Tem mais alguma conclusão a que não chegamos?
            Diante do silêncio, a reunião deu-se por encerrada. Todos saíram da sala, mas esqueceram ligado o aparelho que projetava a imagem fotográfica na parede. Após longos minutos, o homem nu começou a se mexer – como fazem os peixes num aquário muito pequeno – até que conseguiu sair da fotografia. Então, dirigiu-se ao aparelho projetor, apertou um botão e desapareceu da sala.