10/06/2013

Kiss me to build a dream on (sobre a foto daquele que não era Herzog)

Kiss me to build a dream on


            Na sala, uma mesa redonda ocupada por um grupo de indivíduos distintos. Uma comissão da Comissão Especial para a Vigência da Inteligência. Cada um deles exibia o orgulho por estar ali, eles não tinham se dedicado tanto à toa  - aliás, por uma promessa que lhes fora feita quando ainda nem sabiam que diabos era uma escola. Desfrutavam da vitória após terem sido aprovados em concorridíssimo concurso, montado por outra comissão de especialistas em selecionar os mais capazes, os mais aptos, os mais confiáveis, após análise detalhada das curvas de desempenho num requintado exame de conhecimentos específicos. Pelo menos viviam numa sociedade aristotelicamente meritocrática, em que os iguais reconheciam seus iguais.
            Naquele momento, eles analisavam uma fotografia projetada na parede da sala escura (diga-se entre parêntesis: tratava-se da foto de um homem nu, com jeito de prostrado, olhando para o chão – não como os humilhados bíblicos, por que estes olham candidamente para o céu – por simples e puro cansaço, aparentemente não pensando em nada, e sobretudo não em ser erigido como herói alguns anos depois – porque se fosse isso ele estaria pagando um preço alto demais – e muito menos pra contribuir com a circulação de algum jornal sensacionalista. A foto apontava ainda para outro alguém, este atrás da câmera, atrás da lente, focalizando a coisa, uma espécie de olho que devassava o homem nu, situado no mesmo ponto de observação que os futuros observadores da fotografia, dentre os quais a dita Comissão Especial para a Vigência da Inteligência, os leitores de jornais e os historiadores do futuro).
            A pessoa que presidia a Comissão, ajustando os quatro óculos de invulgar modernidade, iniciou a sessão:
            - Hoje espero que vocês me apresentem seus relatos e relatórios, reitero apenas minha única exigência: sobretudo não me venham com o óbvio, vocês não são pagos para isso. Um intelectual nunca deve dizer o óbvio, isso é o que a Academia nos ensina, o óbvio não é digno de crédito, desqualifica e denega a nossa especialidade. Se a mediocridade imperante também não diz o óbvio isso não é problema nosso, mas como diria o grande assessor de Capanema, e nas horas vagas poeta Carlos Drummond de Andrade, deixemos pra lá os inocentes do Leblon.
            - Eu observei um detalhe intrigante na fotografia em questão (aqui o leitor visualiza uma pessoa especialista em relojoaria). Mas o homem visado pela câmera usava um relógio antiquado, mesmo para os dias em que se passou a sessão fotográfica: ou ele era um desleixado completo, ou alguém vindo das classes proporcionalmente mais desfavorecidas pela sorte. Tudo o que pude então concluir é que não se trata de um milionário, uma vez que este reúne duas qualidades que nosso objeto de estudo não traz, riqueza somada à preocupação com a imagem pública.
            A pessoa especialista em nutrição pede a voz;
            - Não pude calcular exatamente a quantos dias o sujeito alvejado pelas lentes não se alimentava. Isto porque ele apresenta um curioso estado de magreza, que não se sabe se correspondia a seu estado natural – é lamentável que não possamos vê-lo ao vivo, porque então uma simples olhadela em suas pálpebras nos revelaria se ele estava ou não anêmico – enfim, não sei se ele era magro ou se tinha sido emagrecido.
            Tomou a voz a e vez a pessoa especializada em história, admiradora que era da obra de Foucault:
            - Não acredito que vocês se percam nestas especulações irrisórias, e nem sequer toquem no foco da questão. Por coisas como estas que sempre afirmo que nossa sociedade iria à falência não fossem os historiadores. O mais importante é o cenário meus caros! Vejam aquelas paredes rachadas e úmidas, aquelas traves de metal sobre as janelas, em estado evidente de enferrujamento! O lugar, naquela época - e já se vão muitos anos aquela, eu ousaria dizer, pré-história – já era histórico, já tinha as marcas do tempo, imaginem o que ele seria hoje! Chego a sentir o cheiro de musgo e mofo que emanava naquele ambiente. Precisamos descobrir imediatamente o local iluminado pelos flashes pra construir um museu histórico, um espécime em estado bruto da engenharia do passado longínquo, pra que nossas crianças conheçam seu passado. Êta povinho sem memória!
            A pessoa que presidia a reunião retomou a voz:
            - Hora do intervalo! Peraí pessoal, deixa eu resumir nossas conclusões técnicas (amanhã vou mandá-las pros jornais, senão as pessoas vão ficar sem assunto quando forem ao Beirute): a pessoa em questão não era nem pobre nem rica, não era gorda nem magra, não se pode dizer se estava ou não passando fome, estava num lugar histórico mas que não sabemos exatamente onde ficava... Tem mais alguma conclusão a que não chegamos?
            Diante do silêncio, a reunião deu-se por encerrada. Todos saíram da sala, mas esqueceram ligado o aparelho que projetava a imagem fotográfica na parede. Após longos minutos, o homem nu começou a se mexer – como fazem os peixes num aquário muito pequeno – até que conseguiu sair da fotografia. Então, dirigiu-se ao aparelho projetor, apertou um botão e desapareceu da sala.     





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