4/30/2010

Eu (nunca) fui torturador - A confissão de Ur-Star

Da série "fazer o texto falar". Recortar as palavas do jornal, sortear
e ver no que dá. Esse foi feito sobre uma entrevista. As palavras não
são minhas, são de Ur-Star:



- à frente do Belo procurei inocentes
e Lá estavam.
contra, até eles serem como uniformes brasileiros
abdicando do seu ‘não é possível’.

- pela família, é fácil falar de tortura.
no novembro de 1972 que eu fiz
no escritório da minha Vara Crível,
no meu direito de atos de terrorismo
eu que não, em nenhuma convenção com as crianças,
eu disse: não renunciamos ao terrorismo movido
Lá no interrogatório.
um advogado, o bobalhão aqui e duas crianças...

- então na gráfica, no país por 12 horas assolado,
batemos nos menores jovens,
prisioneiros de guerra:
que levem sua parte para cá, pela guerra!

- o tratamento a ‘O Senhor não’
no direito de falar DOI com dignidade,
já as crianças da PM têm o horizonte sobre isso.

- Araguaia se refere ao entre-humanidade em que estavam.
mas eu, diariamente o próprio São Paulo,
e tudo isso para a guerra no terrorismo,
nós na cola da estrutura que ia nos presos
quando tinha uma convenção de combate que era outra,
não a de Genebra, mas a que de lá chega ao dia do Juízo.

- Tínhamos parentes, a coisa foi montada para ouvirem
ao Tio.
eles não usam depoimento,
melhor evitar a coisa suja do depor militante...
(‘Tragam o sargento César!’
só para que os pais vissem...rs.
‘Então, vai depor?’)

Eu nunca, mero delegado do comando,
disse a verdade: os adultos,
a guerra. (....)

4/29/2010

Semear (Homenagem a Alberto Caeiro)

Não sou semeador. Minhas sementes são minhas ilusões. A cada vez que abro um sulco cuidadoso na terra, deixo cair uma de cada vez, esperando seus frutos no devir. Volto para casa, espero pacientemente a cada dia, cuidando levemente de cada uma, para que não morra logo. Até a colheita, quase todas as sementes terão morrido, menos uma: a da realidade. E assim, no ano seguinte, tornarei a fazer minha solitária e paciente semeadura, como se fosse um apaixonado agricultor das montanhas, amando o mundo real em que vivo.

4/26/2010

escrito sobre o corpo


leia se puder
o que segue escrito na carne dos dias
são signos sobre signos sobre signos
soterrando o sentido
mas leia
se puder arrancar o que lhe diz respeito
se puder arrancar a luz da floresta
de símbolos
se puder arrancar das linhas do fundo
escuro deste labirinto
desenhado sobre o corpo

não
você não
pode

4/25/2010

Poesia de domingo

Num dia de luz inclinada, meio amarela, um calor suave de um sol quase ausente.

Paro pra abastecer o carro e a frentista me pergunta se fui eu o sujeito que apareceu hoje no jornal. Não sei que sujeito é esse. Ela me explica: um músico qualquer.

É a segunda vez que me confundem com isso. Em João Pessoa um garçom me perguntou se eu era um cantor de rock. Sei lá, queria ser, se bem que não, músico talvez, cantor de rock não, não do jeito que o garçom falou.

Hoje é sair com minha mãe e meu irmão e durante o almoço minha mãe calada. Algumas vezes perguntamos se ela está bem. Ela é sempre assim, olhando pra baixo, olhando pra qualquer coisa. Eu falo com meu irmão que queria comprar pra ele o livro Os vagabundos iluminados, que é sobre a procura da Iluminação em viagens de trem e longas viagens solitárias em montanhas. Digo ao meu irmão que isso apenas é possível nos Estados Unidos onde, ao menos segundo o mito, e mito não é o mesmo que mentira, um andarilho sempre encontrará alguém que o ajude, penso, e não falo com ele, no filme Into the wild, penso, e não falo com ele, em Henry Thoreau. Digo ao meu irmão que no Brasil um vagabundo iluminado se tornaria, inevitavelmente, um mendigo isolado, olhando pros lados e pra baixo como quem foge. Aqui só tem espaço pra turmas e pra alegria desesperada. E, tudo bem, eles tiveram Whitman, nós, Gonçalves Dias, e tudo bem, eles são os porcos imperialistas e nós somos a primeira democracia racial do universo. Meu irmão discorda, sobre a questão de virar mendigo, ele me diz que Deus sempre vai arrumar alguém, um anjo qualquer, pra te ajudar no caminho (minha mãe, ainda calada).

Paramos numa farmácia. Eu e meu irmão ficamos no carro, ele me pergunta se já estou melhor, depois da separação, se já esqueci, respondo que tem horas em que esqueço e horas em que me lembro, penso, não falo com ele, se isso quer dizer que esqueci ou não. Eu ia dizer pra ele que o mais difícil não é me separar dela é me separar das coisas que ouvi, mas minha mãe volta ao carro e não falo sobre o assunto, ela não vai querer ouvir, porque o que ouvi é uma acusação contra várias gerações, aquele lance grego de miasma de sangue familiar que não presta. Um papo meio nazistinha, ou pelo menos inspirado em eugenia, a psicóloga da minha ex-mulher deve ser um misto de Walter Mercado (o sotaque espanhol) com Renato Kehl.

O que falo com meu irmão é que estou com muita preguiça de parecer interessante e as mulheres em geral ficam esperando isso, não que você seja interessante, não sou interessante, mas que você mostre que está se esforçando em parecer interessante. E a única pessoa que parece valer a pena mora muito longe e deixou de responder meus emails.

Depois disso, sigo sozinho, mas não posso voltar pra casa, minha ex-mulher quer visitar a gata e me disse por email que outro dia seria impossível porque ela, palavras dela, “tinha um compromisso” no sábado. Dou um volta um pouco maior de carro por Brasília, escolho um caminho que me permita ver o lago. Fico pensando se eu usaria essa expressão com alguém, uma pessoa que tivesse de sair de sua casa pra que eu entrasse. “Tenho um compromisso”, no mínimo eu seria mais específico, uma reunião de trabalho, um almoço com amigos, qualquer coisa. (Uma vez eu estava num banco, uma yuppie entrou na minha frente e me disse exatamente isso: “Licença, mas eu tenho um compromisso”, eu respondi: “tenho certeza de que o seu compromisso é mais importante que o meu”, sei lá, eu devo mesmo ter cara de cantor de rock ou vagabundo ainda não iluminado).

Mas não, neste caso eu apenas disse amém, assim seja, e saí pra dar uma volta de carro por Brasília. No caminho ouço aquela música do Bob Dylan, most of the time she ain’t even in my mind, I wouldn’t know her if I saw her she’s that far behind. Most of the time.

Não disse pro meu irmão, mas pensei em como eu gostaria que o poema fosse um tipo de oração, comprei um livro sobre sufismo e imaginação criativa. E no sufismo a poesia é uma oração e só há oração com poesia, mas poesia cheia de prosaísmo, o prosaísmo da vida, os problemas singulares comuns, que é como penso em deus. Não alguém que faz planos pra gente, mas como o puro prosaísmo da vida: uma luz meio amarelada, um sol quase ausente em seu calor frio, o som ligado, um pouco de vagabundagem. Não uma coisa inteira, plena, mas aquilo que foi quebrado, os estilhaços, as rachaduras no muro (caso contrário, não veríamos a luz) e isso no momento em que toca aquela outra música Everything is broken.

E tem dias em que a poesia bate na sua cara, é difícil de explicar, tem dias em que um prosaísmo mais intenso quase vira poesia e você se pega pensando em como gostaria de ser um poeta melhor pra dizer as coisas necessárias.

4/23/2010

nº 94


O meu desejo vagou por cada sombra
do labirinto, quer dizer, do paraíso
e se contaminou, riscando
com as unhas mensagens nos muros
até que escorresse o sangue, não sei
se do muro, das letras ou
da pele – se elas sangram não importa
mais, as dores
eram outras e esperavam
congeladas dentro do corpo, bomba
subterrânea que murmura “a qualquer
momento, a qualquer
momento
”.

Diálogo inconcebível

A - Vamos criar um manual de instruções para ir da China à África sobre uma folha de papel?
B - Ótimo. Quantas pessoas podem ir sobre a folha?
A - Não sei, mas elas não podem afundar o papel.
B - Entendo, mas... salvo melhor juízo, não é possível viajar sobre o papel, ainda mais da China para a África, não?
A - Quem disse que não é possível? Nós somos o possível!
B - Ah, bem... não seria melhor fazer uma canoa ou pagar um avião?
A - Não, porque é muito melhor usar papéis. Neles, podem ser postos nossos sonhos, nossas frustrações, nosso mundo, porque os papéis são mais seguros que as canoas ou os aviões. Você já viu alguém naufragar sobre um papel?
B - Não, mas nunca vi alguém viajar sobre um.
A - Tudo bem. Você verá que é tudo uma questão de tempo. Eu já vi tudo o que é possível fazer sobre papéis. Estudei durante anos a resistência do material e posso comprovar. Logo, logo, você me entenderá...
B - Não sei. Acho que é possível acreditar em muita coisa, mas nisso, com a devida vênia, não dá.
A - Ok. Então vamos fazer aviões de papel e mandá-los até a Rússia.
B - De novo com papéis?
A - Ok, ok. Que tal inventarmos um explosivo plástico para explodir estátuas? Não há papéis aí...
B - Ótimo. Quantas pessoas são necessárias para criá-lo?
(...)

"A pica é sua, Aspirante." (Capitão Nascimento)

4/20/2010

Sentença

Numa classificação incerta entre ambigüidade, duplo sentido e dois sentidos claramente distintos, sentença pode ser uma proposição qualquer, uma frase lapidar ou uma decisão de magistrado ou autoridade científica (ex., sentença de morte e diagnóstico à distância). Qualquer coisa que se disser é uma sentença, mas algumas sentenças têm sentido, outras, além disso, são memoráveis e encerram sabedorias e burrices milenares. Outras são qualquer coisa que se diz, têm sentido, são memoráveis e ainda por cima são destino. Estigma, ou seja: tatuagem, as agulhas de Kafka.
Apesar de qualquer um poder dizer qualquer coisa e assim produzir uma sentença, com ou sem sentido, nem todos detêm o instrumento mágico que transforma essa qualquer coisa em sentença estigma. É o poder de nomear que Jeová outorgou a Adão (dê o nome dos animais etc) e que, mesmo depois da Queda, prosseguiu como testemunho de que o homem já andou pelo Éden. Professores, psiquiatras, juízes, médicos, policiais, todos desfrutam dessa pequena parcela do Paraíso. O pequeno poder de matar, simplesmente emitindo sentenças. E quem não se deixa levar por esse gozo? Que no fundo remete a dois termos: culpado e inocente (de fato, um desafio lógico, porque são proposições extremamente sintéticas, mas, nesse caso, toda palavra a mais seria um luxo desnecessário).
Agora, vejamos as sentenças:

- Foi você que botou dentes nas amebas?

- Foi você que dançou lambada com George Bush?

- Foi você que lambeu pastel antes de atravessar a rua?

- Foi você que piscou o olho antes de vomitar?

- Foi você que assaltou o banco de espermas?

- Foi você que viu o capeta vendendo acarajé na Santa Sé?

- Foi você que pediu x-nada sem bacon na barraquinha de cachorro quente?

- Foi você que bebeu água do Tietê?

- Foi você que cuspiu em cima da bandeira do Nepal?

- Foi você que entrou sem pedir licença no salão de beleza falido?

- Foi você que pôs uma formiga pra andar em cima do pau duro?

- Foi você que transmitiu raiva pros cachorros?

Como se pode imaginar, a lista de sentenças poderia ser interminável. E o abuso é um caminho perigoso: a maioria achará incômodo e sem graça, outros, aqueles, os pequenos Adões, poderão até te destinar a um internamento definitivo. Mas, se você olhar bem, é lá no fundo dessa baboseira toda que repousa o pouco de milagre que te restou. Finalmente, saberemos entre deus e o diabo quem é o sacana nessa história toda. Sabe aquela sentença mais ou menos “escolhi as coisas loucas pra confundir as sábias”? Por fim, é claro, a fraternidade, a verdadeira, sonhada fraternidade, a eterna inocência: “porque quem ama nunca sabe o que ama, nem sabe por que ama, nem sabe o que é amar”.

4/17/2010

corpo, mas


o corpo, mas um pouco além
do corpo, o que o inflama na vertigem
dos hormônios (sim, os hormônios
e suas trilhas velozes, milhares de milhas
por dentro através das décadas, sempre
por dentro, ou mais, cada vez
mais rumo a um longínquo centro carregando
no espaço
de cada instante o que se quer dizer
pelo calor da pele), os poços
escuros onde você afunda
a carne, estreitos,
mas aquilo que acende a sua urgência,
sem nome e sem itinerário,
à deriva como estas
linhas, como estar agora
aqui.

4/13/2010

Prescrições médicas do Dr Parasquavedequatriafobia

Num caso como esse só mesmo:

Glossectomia total
Extração radical da bílis negra
Trepanação craniana pra instilar, ou seja

O medo, fobofobia & suas variantes:

Hidrofobia: Hidrofobofobia.

Sendo o Rhabidovirus um agente
Clandestino da felicidade, sendo assim:

Xantofobia como cura da cólera

Logofobia pra evitar a fuga do poder performativo
Dos diagnósticos (lá vai
O canceroso, cá está
O aidético, mais além
O deprimido e depois
O revoltado com tapinofobia)

E melofobia como antidepressivo.

Sarmossofobia pra curar o romantismo
Encruado, ripofobia pra curar a sarmossofobia
E paranóia pra curar todas as outras
(desde que com doses reguladas de oneirofobia).

(Não quer ir ao psiquiatra? Iatrofobia
Também é doença catalogada:

Hipopotomonstrosesquipedaliofobia, está entendendo?
Uma explicação não-técnica é muito demorada
Mas um pouco de catagelofobia pode funcionar no seu caso)

Se o poder de não ser é a liberdade
Negativismo é doença e ser feliz dos males
O menor.

Agora vamos à descrição da sua personalidade:
O senhor é paranóico, esquizóide, anti-social e instável.
Histriônico, anancástico, evitativo e dependente.

Com episódios de Transtorno Tripolar.

4/11/2010

prosa completa

Se, como quem não quer
nada, sobre os lençóis (neste momento
os dedos se perderiam na maranha
reluzente e tão negra como o artifício
de um céu noturno um átimo
depois da explosão
dos fogos) fossem mencionadas ruínas
sob o azul, tão brancas
em sua opacidade
aflitiva sem dar
conta do sol
que as ilumina, e explodir (quando os mesmos
dedos se perceberem
úmidos e quentes) a lembrança
do púrpura e do carmim
que as revestia, o que se quer dizer é vertigem
do corpo, e isso quer dizer
labirinto, ou a cara do anjo que agora
fecha os olhos, e se uma palavra
como amor for mencionada
foi por apuro ou mera
distração – não se fala mais
nisso, e isto agora quer dizer clímax,
anticlímax, retorno das horas,
espera, segredo,
surdina.

4/09/2010

A banda RioClaro no Feitiço

É difícil tocar com os braços
Colonizados por sanguessugas.

Não há pureza na música, nem piedade
Apesar do cansaço dos garçons
E apesar dos dedos engordurados do fiscal
Que compara os direitos autorais ao óleo
Reutilizado na fritura dos croquetes.

Ou sou eu que me refugio atrás do som
Como numa barricada ou
Seus aplausos não me comovem

Repercutem

O barulho de uma chuva rala sobre a grama
Que repercute o barulho de uma pequena fogueira
Apagando-se em fim de festa
Que repercute o barulho de um pequeno inseto
Arranhando com as patas
A janela de um quarto fechado

Quando

Melhor seria o barulho do vidro estourando
A janela se abrindo num golpe
Os parafusos depois recolhidos e guardados numa caixa
Como recordação do espaço que foi abolido:

Porque isso é a sua vida interior, o que você supõe vir de dentro
E a música não está do seu lado de fora

Não

Você pensa que está gritando quando a música está gritando você
E esse grito não vem de outra pessoa,
O músico inexiste quando é o sangue
Estourando as sanguessugas
Uma porrada na boca das janelas
Uma risada que implode por fora seu corpo mortal

Quando você é uma engrenagem vazia e os sons
Convertem sua alma

Quando a música se toca
E é o coração de um mundo sem coração.

4/04/2010

A monja atéia, de L. M. Panero

As monjas adoram a seu Deus que não existe
enquanto o Papa aperta o gatilho
e diz Deus não existe
é imaginação da Igreja
que está morrendo aos poucos
os ateus choram aos pés de uma estátua.
E o mundo diz Deus não existe
é imaginação do Papa
enquanto os ateus
choram e choram pela beleza perdida
e Deus já não existe
está chorando no Inferno.

Esta é a estátua inteira do nada.

4/02/2010

Serenidade, de L M Panero

a Martin Heidegger

1.
Só existem duas coisas: meu rosto desfigurado
e a dureza da pedra.
A consciência se acende
Somente quando o ser está contra si:
e assim todo conhecimento
e a matriz de toda figura
é uma ferida,
e só é imortal
o que chora.
E a noite, mãe da sabedoria
tem a forma interminável do pranto.

2.
Luz, a luz
quando estava demasiado perto do mar
limite do deserto
do deserto em que florescem rosas cruéis
famintas do homem.

3.
As palavras
constroem o bosque
uma árvore só é árvore
quando tocada pelo poema.

4.
Os sinos varrem o som
enunciam letra a letra o deserto
em que uma flor apodresce entre as mãos
murchas de uma velha
que chora por ter perdido o nome.