4/20/2010

Sentença

Numa classificação incerta entre ambigüidade, duplo sentido e dois sentidos claramente distintos, sentença pode ser uma proposição qualquer, uma frase lapidar ou uma decisão de magistrado ou autoridade científica (ex., sentença de morte e diagnóstico à distância). Qualquer coisa que se disser é uma sentença, mas algumas sentenças têm sentido, outras, além disso, são memoráveis e encerram sabedorias e burrices milenares. Outras são qualquer coisa que se diz, têm sentido, são memoráveis e ainda por cima são destino. Estigma, ou seja: tatuagem, as agulhas de Kafka.
Apesar de qualquer um poder dizer qualquer coisa e assim produzir uma sentença, com ou sem sentido, nem todos detêm o instrumento mágico que transforma essa qualquer coisa em sentença estigma. É o poder de nomear que Jeová outorgou a Adão (dê o nome dos animais etc) e que, mesmo depois da Queda, prosseguiu como testemunho de que o homem já andou pelo Éden. Professores, psiquiatras, juízes, médicos, policiais, todos desfrutam dessa pequena parcela do Paraíso. O pequeno poder de matar, simplesmente emitindo sentenças. E quem não se deixa levar por esse gozo? Que no fundo remete a dois termos: culpado e inocente (de fato, um desafio lógico, porque são proposições extremamente sintéticas, mas, nesse caso, toda palavra a mais seria um luxo desnecessário).
Agora, vejamos as sentenças:

- Foi você que botou dentes nas amebas?

- Foi você que dançou lambada com George Bush?

- Foi você que lambeu pastel antes de atravessar a rua?

- Foi você que piscou o olho antes de vomitar?

- Foi você que assaltou o banco de espermas?

- Foi você que viu o capeta vendendo acarajé na Santa Sé?

- Foi você que pediu x-nada sem bacon na barraquinha de cachorro quente?

- Foi você que bebeu água do Tietê?

- Foi você que cuspiu em cima da bandeira do Nepal?

- Foi você que entrou sem pedir licença no salão de beleza falido?

- Foi você que pôs uma formiga pra andar em cima do pau duro?

- Foi você que transmitiu raiva pros cachorros?

Como se pode imaginar, a lista de sentenças poderia ser interminável. E o abuso é um caminho perigoso: a maioria achará incômodo e sem graça, outros, aqueles, os pequenos Adões, poderão até te destinar a um internamento definitivo. Mas, se você olhar bem, é lá no fundo dessa baboseira toda que repousa o pouco de milagre que te restou. Finalmente, saberemos entre deus e o diabo quem é o sacana nessa história toda. Sabe aquela sentença mais ou menos “escolhi as coisas loucas pra confundir as sábias”? Por fim, é claro, a fraternidade, a verdadeira, sonhada fraternidade, a eterna inocência: “porque quem ama nunca sabe o que ama, nem sabe por que ama, nem sabe o que é amar”.

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