9/08/2011

Depois de ler A Arte da Memória de Frances Yates


Você grava na mente o planeta que se expande como um vôo e

De leite a branco, de branco a ar, de ar a outono. Declinar-se frio e úmido. Alma evapora do mel, alimento de deuses. Semear o girassol vermelho. Fazer amor com a puta de olhos furados e orelhas cortadas. O leão é manso aos pés do mago. Um carneiro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de elefante.

Você grava na mente a lua que se dissolve e cria musgo em seu sangue e

De lírio a azul, de azul a água, de água a inverno. Declinar-se frio e seco. Alma evapora do leite, alimento de deuses. Semear o trigo branco. Fazer amor com as chamas de um incêndio. O lobo é manso aos pés do mago. Um touro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de leão.


Você grava na mente o planeta que se enrola em suas veias como arame farpado e

De sangue a ocre, de ocre a terra, de terra a primavera. Declinar-se quente e úmido. Alma evapora do trigo, alimento de deuses. Semear o lírio verde. Fazer amor com a princesa na cama de espinhos. O elefante é manso aos pés do mago. Um carneiro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de lobo.

Você grava na mente o sol até que ela cada vez mais quente brilha e
De trigo a amarelo, de amarelo a fogo, de fogo a verão. Declinar-se quente e seco. Alma evapora do lírio, alimento de deuses. Semear o mel azul. Fazer amor com a virgem de dentes pretos e língua de serpente. O leão é manso aos pés do carneiro. Um touro, de chifres fortes, vem em sua direção no escuro: melancólicos têm memória de mago.

Tudo isso supondo que os caminhos são bifurcações em série a partir de um mesmo centro brilhante esquecido mas real e que o mergulho ou o vôo levam à mesma divindade, que a sua matéria-prima mais íntima pode ser vista se você olha para o alto e a dor ou a alegria na sua alma repercutem nos cristais celestes, quando por seu lado, melancólico leitor de livros de história, você olha pela janela e se depara com o nãocriado e persistente silêncio e o escuro, ou, mais que escuro, transparente silêncio que persistirá e não precisa de você e a memória é uma sangria desatada correndo para todos os lados enquanto se indaga sobre como harmonizar estilhaços do sol.

Sem começo, sem fim: quer dizer, pelo menos sem começo pelo que eu me lembre e sem fim porque não adivinho o sentido. Quando eu era criança, tínhamos no apartamento um armário que me dava uma estranha sensação de mistério. Ele ficava na área de serviço, era embutido, pequeno, quadrado, baixo, muito escuro por dentro. Para piorar, em seu fundo a parede estava meio arrebentada: como se ele tivesse um buraco, uma outra porta, um portal. Mas ele era usado para guardar garrafas vazias, de cerveja, vinho, cachaça (um pouco mais ou menos do que 30, mas não exatamente 30). Ainda assim, tínhamos que ficar longe dele. Teia de aranha e cheiro de barata morta. Eu não o imaginava como um esconderijo, mas uma passagem. A fantasia mais apaixonante era que ali eu encontraria um túnel que me levaria ao terraço do prédio. Um túnel: as garrafas estavam ali fazendo o papel das coisas usadas pela banalidade da vida, tédio e rancor lento entre as paredes frias. Mas, eu poderia passar por elas, mesmo que me ferindo um pouco, eu não tinha medo da asfixia: minha própria respiração produziria, magicamente, o ar puro necessário. O escuro absoluto seria vencido por minhas pupilas que iluminariam por si mesmas minha própria visão.

Pos-escrito: Existe um novo modo de as palavras operarem mágicas: é o mundo que se desperta quando elas são pronunciadas, a vida que apreende seus próprios caminhos, cada nova enunciação é uma carta de intenções cósmicas enviada à sua memória pelos recantos em que a imaginação faz a passagem entre o seu destino e o coração perdido das coisas.
Esse é o meu Teatro da Memória.

4 comentários:

Aldemar Norek disse...

A memória é um fardo ou um oásis?

Daniel F disse...

Oi Aldemar, esse livro da Frances Yates é muito bonito, ela mostra a tradição mágica renascentista, especialmente em Giordano Bruno, do uso da memória como acervo de talismãs. como se a memória fosse fonte de poder, e não simplesmente um tipo de pesadelo. então, acho que pode ser as duas coisas. não que o uso mágico faça tanto sentido mais. mas que a memória nos deixa com dispositivos fundamentais pra uma sobrevivencia criativa.

Daniel F disse...

to achando muito bom que voce voltou a participar mais do blog.

Aldemar Norek disse...

O bacana é mostrar que rolam tendências bem fora do mainstream da história....

Do Renascimento ainda hoje só se fala da racionalidade....

p.s. minha ausência daqui nunca foi (ou é) pacífica.... Sinto sempre saudade e vontade de estar/postar/conversar.

andei fazendo uns sambas nestes meses de ausência.... Se fosse um blog de música postava tbm....rs.

Abraço, Daniel!