7/29/2011

A vida num dia

Entro no elevador. Um garoto, por volta de 12 anos, cego de um olho, entra com seu pai: um vaqueiro. Fico olhando o mostrador, como fazem todos os que se incomodam com esse tempo curto mas lento de nada fazer e intimidade forçada em elevadores. De repente, o vaqueiro me segura pelo braço. Nada posso fazer, sou um fraco urbanóide. Ele fica me dizendo, por que você mexeu com meu filho? Foi ele, não foi filho? Foi sim. Eu? Eu mesmo? Tem certeza? Vocês não estão me confundindo com alguém? Escuta aqui, você está sentindo o que está na tua barriga, olha pra baixo. Olho e vejo e assim que vejo começo a sentir a pontada de uma faca. Vai você meu filho, vai você. Fico olhando perplexo, sem ter o que dizer.
Na luz do dia, ela me diz que eu devo ter sido um fazendeiro filho da puta numa vida passada e no sonho fui cobrado por isso. Eu não, não acredito em vida passada, não desse jeito: um eu que vai se desdobrando, rebatendo, entre situações, como uma bola quicando pelo mundo. Mas, por outro lado, tudo o que acontece tem causas infindáveis e intricadas de um modo quase ininteligível, para além da imaginação e do controle do euzinho aqui. Poderia ser o seguinte: meus antepassados do nordeste, suas fazendas, suas histórias. Sempre ouvi que eles cometeram as piores violências. A donzela enterrada viva com o escravo com quem tinha trepado. De tudo isso há memória em meus pequenos atos de arrogância. No sonho fui cobrado por isso. O menino deve ter cismado com uma de minhas primas, hoje misturadas à poeira, e teve o olho direito vazado, só como lição.
Começo de noite. Desço o túnel: íngreme espiral. Monotonia de espaço curvo, fracamente iluminando, com chão, teto e paredes cobertas pelo mesmo carpete marrom. Ando colado à parede: a curva é fechada, como se andássemos em círculo ao redor de uma simples coluna cervical, vertigem leve num estranho labirinto. Ao fundo, a cratera iluminada, onde ela me fala de amor trocando olhares com outro. E fala sem dizer nada, apenas girando o corpo, os braços quase transparentes sob a luz intensa brancoverde. Ela e o outro se olham fixamente, eu me vejo sendo amado por meio de um artifício que me faz ser ninguém. Entre os deuses ctônicos, a vida pega fogo: ela se desdobra como se de seu corpo brotassem pétalas-labaredas que só se acendem quando se chocam com minha mentecoração. Eu estou ausente, no escuro: novelo de nervos expostos. No fim de tudo, ela me procura.
Dormimos abraçados. No vazio.

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