Neste ano desci duas vezes ao inferno. Descer talvez não seja a melhor palavra, porque o inferno não está abaixo da superfície, no porão do mundo, o inferno é apenas um certo ritmo da vida, uma desorientação fundamental que procuramos esconder sob o véu da realidade. Deixar o inferno subir até você tem um teor libertário, você não é uma presa fácil da realidade e seus artifícios. Por outro lado, o inferno é irrespirável: pensei numa imagem assim, uma sede de quem comeu girassol em pó e pra quem a água se tornou tão imaterial quanto o ar. Quem conhece o inferno precisa de três coisas (todos precisam, mas quem conhece o inferno precisa com mais intensidade): amor, amizade e arte. E aí entram os shows da Banda RioClaro neste ano. Um, em especial, num domingo seguinte ao dia em que eu pensei que queria dormir por uns 10 meses. Estar acordado pra certos encontros da vida é um primeiro passo: o encontro entre uma certa tonalidade do céu de vermelho a azul contra o lago quase dourado e a música que anima duas meninas, duas pequenas dançarinas sobre a grama intensamente verde. Depois de estar acordado, despertar. Iluminar-se. Respirar. Enfim, por isso resolvi escrever, como agradecimento, essa conversa imaginária com John Fante, seguindo uma dica do Ray (um puro devaneio, sem pretensão, não finjo dar conta de um nome consagrado, um livro que esmaga aqueles que tentam copiar o seu estilo, enquanto escrevo isso em meu computador empoeirado).
Eu: Tenho alguns textos, umas coisas meio parecidas com livros, vou soltando meio aleatoriamente porque não tenho essa convicção que vejo em você sobre duas coisas: o meu talento literário e o sentido de ser alguma coisa na vida como um escritor. A minha dúvida é: existe algum lugar adequado para os livros?
Fante: O deserto.
Eu: As cascas de laranja jogadas no chão, as velhas solitárias, os casais brigando, as crianças que nascem a contragosto, os taxistas; isso tudo não é estética, certo?
Fante: São sinais, indícios de alguma coisa parecida com salvação.
Eu: As coisas estão cheias de anjos, ouvi dizer.
Fante: Eu preferia bons charutos, uma noite com aquela mulher de pele cor de raposa, eu preferia ser o autor.
Eu: Isso você conseguiu, ser autor. Tem até seus porta-vozes oficiais e imitadores.
Fante: É uma ironia da história.
Eu: Uma mentira, e não um desejo. O sujeito começa a se levar a sério.
Fante: Do mesmo jeito, o dinheiro é bom porque liberta, mas dinheiro deve ser amado apenas platonicamente.
Eu: Também li isso em algum lugar. Também ando em torno dessa questão do amor, do amor que só faz sentido pra quem é solitário, os momentos de brilho intenso, sempre passageiros, uma recordação depois da outra, até um ponto em que tudo mal se inicia e já é despedida. A memória cansa mais do que a esperança.
Fante: De vez em quando, interrompo as divagações inventando uma perspectiva diferente, por exemplo: um rato observando um escritor debruçado sobre a poeira, sonhando com sua maravilhosa namorada mexicana. Isso dá mais densidade pra realidade, mas também indica que o tempo não é só esse em que estamos presos, esse apocalipse sem fim.
Eu: Aquela princesa que não vai se importar com o fato de você não ser um vencedor, aquela que foi menosprezada como nós. Palmeira, palmeira, palmeira, palmeira. Dois dias seguidos?
Fante: Acreditar em palavras é a pior forma de loucura.
Eu: Alberto Caeiro, Zaratustra (que é melhor do que Jesus), Bandini, muitos dos melhores sujeitos dos últimos tempos são fictícios.
Fante: A realidade asfixia. Mas a ficção não é mentira, não é o oposto do real porque é desejo.
Eu: Nesse sentido é que eu queria entender de anjo. Um anjo me trazendo uma boa garrafa de vinho. Pra te dizer a verdade, não me interesso pela literatura. Acho isso meio bobagem. Não quero um livro que não seja um bilhete premiado pra reinventar o desejo por uma boa namorada e um bom vinho.
Fante: Devaneios. Deus devia ter lido Nietzsche antes de criar o mundo.
Eu: Quando o Bandini diz que poderia ser qualquer coisa, um milionário, um jogador de beisebol, um escritor, eu, diferente de muita gente, acho que é a sério. Ele poderia ser qualquer coisa mesmo, e por extensão, você. Mas você não é Bandini, do mesmo jeito que ele não é o jogador de beisebol. Ele e você e eu somos o que poderia ser qualquer coisa dessas, pessoas comuns. Essa é toda diferença, que acho que alguns confundem quando pensam que fazendo de conta que são Bandini (por exemplo, reclamando da falta de grana) vão virar John Fante. Eles se esquecem, acho, que tudo é possível, incluindo Zaratustra e Caeiro, por conta desse poder ser mesmo, são prisioneiros do ser. Uma coisa é um cara que aspira a ser milionário, outra é o que é milionário, que se confunde com esse papel, a mesma merda rola com o sujeito que se convence que é escritor.
Fante: Eles não reconheceriam um gigante nem que um moinho de vento estivesse indo pra cima deles com tudo.
Eu: Falando em Dom Quixote, a falta de grana transforma o dinheiro numa coisa metafísica?
Fante: É estranho você dizer isso, parece papo acadêmico, porque é uma metafísica que dói no estômago.
Eu: É como se escrever fosse uma coisa suja, uma dedicação a uma atividade até ofensiva, como, por exemplo, procurar beleza e encantamento numa cidade por mais sórdida que ela seja, e você precisasse de um álibi razoável do tipo: escrevo, mas com uma finalidade, ganhar dinheiro.
Fante: Pode ser, mas a falta de grana é real, no meu caso. A vida é a continuação da literatura por outros meios.
Eu: É que a poesia separada do resto é uma coisa sórdida.
Fante: Que resto?
Eu: A vida.
Fante: Por isso eu odeio cadernos culturais.
Eu: Você imaginava que ia ser usado como pretexto pra um tipo exibicionista de literatura confessional?
Fante: Seja como for, eu não tenho nada a ver com isso. Eu não disse que prefiro Zaratustra a Jesus ensangüentado na cruz?
Eu: E a culpa que corre no seu sangue? Eu, por exemplo, depois de um ano de merda, estou começando uma nova história, um novo amor. Às vezes me flagro pensando que essa história toda vai dar merda, vai dar merda, vai dar merda. Mas não sei se faço isso só pra não perder o orgulho quando der merda, eu dizendo: pelo menos eu sabia que ia dar merda.
Fante: Você não viu pra quem eu dediquei meu livro? To falando de mim, não do Bandini. Tem gente que confunde experiência com experimentação. Experimentação é coisa de sociólogo, gente sem imaginação ou sentimento. Experiência é outra coisa. A vida pode dar um romance, mas a vida não é arrumadinha como um romance. Ou você vive o seu tempo, a sua condição e mergulha nisso, ou vai fazer outra coisa. Caso contrário, todos os roteiros estão traçados pelo conjunto de lixo que você leu e ouviu. Inclusive o meu livro pode virar lixo numa situação dessas.
Eu: Camisa pólo, sapatos brancos e óculos escuros, não é por aí? Nunca fui a Los Angeles e o que me impressiona é a variedade e o número de formas de destruição da cidade. Terremotos, maremotos, animais selvagens perdidos devido à expansão das avenidas, especulação imobiliária, um ar meio apocalíptico que torna a beleza mais urgente, a vida sempre está logo ali, a um passo, mas nunca é real porque sempre está à beira da morte.
Fante: Você não devia se gabar disso, você é de Brasília. Você deve entender alguma coisa de deserto. Poeira também não falta, cada palmo de terreno conquistado à moda turbulenta do velho oeste, tempestades de areia cobrindo a cidade inteira, o céu vermelho, azul de sanguessugas, branco, translúcido e você ali sozinho, debaixo dessa luz que nunca está parada, afundando nos monumentos paranóicos, você também ali sonhando com a sua princesa maia ou pelo menos acreditando que um dia vai encontrar a palavra certa, o percurso que vai fazer da poeira e do brilho uma coisa só, ao mesmo tempo bela e decadente. Que vai dar um pouco de alegria para os solitários e perdidos.
Quando você é vulgar: apenas negocia convenções, não domina os segredos, qualquer um pode dizer que árvore é o nome de uma cidade, que cidade é o nome de uma arma, que arma é um sentimento, que sentimento é o nome de um faraó. A língua epistolar é a conversa vulgar no desentendimento, mesmo que este ocasione encontros repentinos e imprevistos. É quando uma criança autista diz pra você: se o mundo gira, porque você não fica tonto?
10/26/2012
10/17/2012
O blues do rato de biblioteca
Você não esperava tanta ternura
de um rato de biblioteca e o silêncio dos planetas
e o infinito que assusta e tanta especulação
barata, assim à toa passo os dias conversando com mortos
em páginas de livros, microtelescópios, tabuleiros espíritas
e a luz do sol batendo nas páginas, uma cartela
de ácido lisérgico como calendário.
Você não esperava mas um coração de papel é mais inflamável
apesar de tão remoto que o silêncio dos planetas ali se inflecte
e cada livro é uma faísca adormecida esperando na estante
em que se escuta por um instante a lendária confabulação
entre dor e esperança, toda filosofia quer ser música
e toda música: blues.
Quando o blues faz até as paredes pulsarem nas capas coloridas
dos livros, como há algo de blues nos contrastes das cores dos planetas
e nas cores anímicas das emoções desencontradas
o blues é mais azul que toda melancolia de um coração vermelho
faço de conta que não é comigo e pergunto sobre a metafísica
de tudo isso o que pensavam os antigos
sobre o conceito de alma e invento a metáfora desprevenida
um peixe azul que brilha no aquário obscuro da vida, ressonâncias
de vidro e água, o blues é uma luz de cobre, é tudo que se entreouve
nos vestígios deixados pelas gerações que compõe uma única
e incoerente música no modo como o filósofo caminha
na solidão do poeta, na posição dos planetas
compondo um invisível e atuante cenário para os atos funestos,
o percurso da lágrima pelo rosto Entristecido, entretido em sua profunda tristeza.
O romantismo é azul celeste e gruda na alma como uma rima
nas paredes do quarto – existe na dor ancestral
da idade da árvore arcaica e blue da lamentação
onde os velhos cantores concentravam a dor de tantas gerações
e gerações: toda dor, afinal anônima como a invenção do blues
sob a mesma antiqüíssima árvore, de acordo com a história
que li num livro qualquer blues é seiva espessa e lenta
misturada ao sangue é como se desde criança
você tivesse comido a lua em pedaços mínimos numa colher
e meu sangue então é frio e reflete o brilho do seu coração
no escuro.
E tudo isso é música, o blues é o comum dos lugares-comuns
a faísca que acende o fogo no coração de papel.
Meus amigos intelectuais não se enganam comigo
eles sabem que quando os vejo eles são como peixes num aquário
e o cosmos é mesmo uma cúpula de vidro de onde deuses observam
e nossas verdades são bolhas que logo estouram contra a superfície
que quando os escuto eles não dissertam, mas cantam
um canto sem letra ou mensagem, uma entonação
de arrogância, frustração e miséria pedante.
A desolação, Bárbara é mais criativa que todos nós
e até merece um nome
próprio, Desolação, escoadouro de brilho estrelar
pra onde todo fluxo vital é banido e retorna, como um filho pródigo
aproveitável: sem o quê não haveria cores para planetas
e nem olhos que registrassem tais cores e nem almas se perguntando
por meio do blues, sobre o sentido de tudo isso.
(Garotos cantam o hino nacional
olhos vermelhos dentro de um camburão –
porque cantavam um blues no ponto de ônibus:
venho da cidade mais desolada onde até os punks são blue).
É por isso que sou um rato de biblioteca e mesmo assim ouço o blues.
ou queria cantar, o que dá no mesmo e fecho o livro
porque o canto do blues é o canto
um gole de vinho
derramado sobre o conceito de quem procura o blues
Saturno está mais forte nesta noite
o céu é uma cúpula líquida que filtra o brilho de estrelas
quanto mais azuis mais incandescentes
Mexico city blues repousa na estante
estando no blues desde antes do início.
de um rato de biblioteca e o silêncio dos planetas
e o infinito que assusta e tanta especulação
barata, assim à toa passo os dias conversando com mortos
em páginas de livros, microtelescópios, tabuleiros espíritas
e a luz do sol batendo nas páginas, uma cartela
de ácido lisérgico como calendário.
Você não esperava mas um coração de papel é mais inflamável
apesar de tão remoto que o silêncio dos planetas ali se inflecte
e cada livro é uma faísca adormecida esperando na estante
em que se escuta por um instante a lendária confabulação
entre dor e esperança, toda filosofia quer ser música
e toda música: blues.
Quando o blues faz até as paredes pulsarem nas capas coloridas
dos livros, como há algo de blues nos contrastes das cores dos planetas
e nas cores anímicas das emoções desencontradas
o blues é mais azul que toda melancolia de um coração vermelho
faço de conta que não é comigo e pergunto sobre a metafísica
de tudo isso o que pensavam os antigos
sobre o conceito de alma e invento a metáfora desprevenida
um peixe azul que brilha no aquário obscuro da vida, ressonâncias
de vidro e água, o blues é uma luz de cobre, é tudo que se entreouve
nos vestígios deixados pelas gerações que compõe uma única
e incoerente música no modo como o filósofo caminha
na solidão do poeta, na posição dos planetas
compondo um invisível e atuante cenário para os atos funestos,
o percurso da lágrima pelo rosto Entristecido, entretido em sua profunda tristeza.
O romantismo é azul celeste e gruda na alma como uma rima
nas paredes do quarto – existe na dor ancestral
da idade da árvore arcaica e blue da lamentação
onde os velhos cantores concentravam a dor de tantas gerações
e gerações: toda dor, afinal anônima como a invenção do blues
sob a mesma antiqüíssima árvore, de acordo com a história
que li num livro qualquer blues é seiva espessa e lenta
misturada ao sangue é como se desde criança
você tivesse comido a lua em pedaços mínimos numa colher
e meu sangue então é frio e reflete o brilho do seu coração
no escuro.
E tudo isso é música, o blues é o comum dos lugares-comuns
a faísca que acende o fogo no coração de papel.
Meus amigos intelectuais não se enganam comigo
eles sabem que quando os vejo eles são como peixes num aquário
e o cosmos é mesmo uma cúpula de vidro de onde deuses observam
e nossas verdades são bolhas que logo estouram contra a superfície
que quando os escuto eles não dissertam, mas cantam
um canto sem letra ou mensagem, uma entonação
de arrogância, frustração e miséria pedante.
A desolação, Bárbara é mais criativa que todos nós
e até merece um nome
próprio, Desolação, escoadouro de brilho estrelar
pra onde todo fluxo vital é banido e retorna, como um filho pródigo
aproveitável: sem o quê não haveria cores para planetas
e nem olhos que registrassem tais cores e nem almas se perguntando
por meio do blues, sobre o sentido de tudo isso.
(Garotos cantam o hino nacional
olhos vermelhos dentro de um camburão –
porque cantavam um blues no ponto de ônibus:
venho da cidade mais desolada onde até os punks são blue).
É por isso que sou um rato de biblioteca e mesmo assim ouço o blues.
ou queria cantar, o que dá no mesmo e fecho o livro
porque o canto do blues é o canto
um gole de vinho
derramado sobre o conceito de quem procura o blues
Saturno está mais forte nesta noite
o céu é uma cúpula líquida que filtra o brilho de estrelas
quanto mais azuis mais incandescentes
Mexico city blues repousa na estante
estando no blues desde antes do início.
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