3/04/2010

Anarquizar

Mãe, conheço bem esse medo de morrer e esse medo de não ser amado e como o medo vem do suspense, por incrível que pareça a certeza de morrer, escondendo a vida sob sombras, a certeza de não ser amado, devolvendo de antemão o ódio que ainda não foi criado, tudo isso diminui o medo e reconforta. Eu sei que isso é óbvio e que o óbvio é o ópio do povo, então se o que eu dissesse mudasse alguma coisa eu te diria pra anarquizar.

Anarquizar com o passado, tudo pode ser embrulhado num pacote misturado e sorteado de novo – anarquizar a mania de perseguição, que se justifica até certo ponto, o mundo é infestado de filhos da puta, mas se somos sapos peçonhentos é porque humor paralisado e aquecido lentamente vira veneno, o lance é soltar o veneno, deixar o veneno correr, apostar em qualquer tipo de alquimia que faça do veneno em movimento outra coisa, fogo líquido vermelho da fraternidade ou luz líquida do êxtase. Deixar o veneno correr é um conselho prático.

Anarquizar com a percepção e com a consciência mediante um regime regular de drogas, claro que com metodologia, objetivo e justificativa, ou então, se as drogas forem ilegais e fizerem mal à saúde, mãe, pelo menos anarquizar com algo do tipo respiração alotrópica, ou ainda anarquizar com a lucidez – se o problema é o entorpecimento organizado, os demônios mudaram de nome e agora se chamam Wyeth, Rroche Sélavy, Patrulha da Felicidade, uma gota de lucidez para eles funciona quase como água benta, aliás,

Anarquizar a felicidade – uma vez cheguei a pensar que morava numa cidade de fantasmas, mas observando as sutis engrenagens de prazer e dor que fazem o mundo funcionar rangendo, não, tudo é real, é que o real precisa ser arrancado de dentro de nós e de dentro do mundo como se arrancássemos raízes presas em nossas pernas.

Não mãe, tudo é real. Daí todos os gestos e palavras que ferem: melhor ignorar o que não se entende, quem vai buscar explicações só encontra os seus fantasmas disfarçados de silogismos. A coerência da vida é que não é real, o entendimento, as palavras, essas então, pobres coitadas.

Anarquizar com essa regra: tudo o que se entende está errado, tudo o que se conhece é delírio coletivo, tudo o que escapa mas fere, tudo o que está represado mas é movimento, toda a força e toda a lucidez tratada como doença, desvio, mas que é alegria querendo explodir, tudo isso é real. E o real é de onde se começa a anarquizar.

Um comentário:

Aldemar Norek disse...

Daniel,
você sabe como tbm me aproximo deste tema do real. Preciso, este poema.
Abraço,