Quando você é vulgar: apenas negocia convenções, não domina os segredos, qualquer um pode dizer que árvore é o nome de uma cidade, que cidade é o nome de uma arma, que arma é um sentimento, que sentimento é o nome de um faraó. A língua epistolar é a conversa vulgar no desentendimento, mesmo que este ocasione encontros repentinos e imprevistos. É quando uma criança autista diz pra você: se o mundo gira, porque você não fica tonto?
o álbum de toda a minha vida erótica por apenas R$ 1,99 num bazar que comercializa pirulito, bombinha e revólver de espoleta. letreiro imenso, de neon, cor verde militar.
é tempo de tortura.
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os negativos gritam na sala de revelação. correspondências.
se nas fotos aperto o bico dos seios, na outra margem me enforco. (a corda presa ao gancho em que mamãe estendia a rede durante o verão.)
para cada imagem em que surjo deitada, na cama, uma tragédia naquela sala. atropelamento: o sangue empoça no asfalto. é vermelha
a luz.
boquete, suicídio: tiro pela boca.
anal, empurram-me de um poço estreito, fundo, noturno. (abro os braços e as pernas para me amparar nas laterais do PVC, mas o limo não perdoa: escorrego devagar por este cano
metafísico. fisicamente metido
em mim.)
*
é tempo de tortura. um sargento sem corpo, sem voz, sem lugar, emerge deste açude escuro (no furo) do pensamento.
ouve-se o apito: mortos dormem em posição de sentido.
1. No começo da viagem, propósitos claros. Mas, com o seguinte cuidado: você pensa que está no controle da situação quando o assunto é a sua mente. Um pouco mais de atenção vai te mostrar que a mente é uma parafernália de motos-contínuos independentes e quando você entra num desses movimentos... Bem, isso é o que entendemos por cotidiano, essa banalidade orquestrada por detalhes extravagantes. O pôr-do-sol mais bonito que eu vi foi a bordo de um avião: as nuvens brancas tão retilíneas e contínuas – como se voássemos sobre um continente de vapor branco. 2. Na entrada do espetáculo tudo voltado para nos lembrar que sonhamos por dentro de um grande animal holográfico projetado pelo dinheiro. Animal que regurgita robôs sanguíneos, que expele o desejo como se vomitasse algum alimento mal digerido. Nada tem sabor, nenhuma sensação: tudo representa algo e esse algo é a coisa mais insossa, inodora jamais inventada. A luz dos holofotes parece dar vida a uma pasta cinzenta. O que chamamos de mundo. 3. Eu e meu irmão, apesar disso, vamos realizar um sonho: ver o Lynyrd tocando ao vivo. O Lynyrd possível. Boa parte dos caras morreu: queda de avião, acidente de carro, ataque cardíaco, maldição dos anos Karetas, enfim. Vai ser um dia dedicado à amizade celebrando estilhaços do rock’n roll. Aliás, não só nesse dia, sempre é como se uma bomba de babaquice tivesse explodido sobre o mundo e os estilhaços dessa bomba tivessem danificado a parte de nossos cérebros onde a liberdade e a alma se refugiavam. Gaguejamos liberdade e de vez em quando vemos estilhaços de alma brotando entre nossas palavras (geralmente, só mesmo por música). Até por isso não entendemos porque alguns fãs levam a bandeira dos confederados ao festival: subserviência? Esse lado da banda, que por vezes vai gritar no imenso painel luminoso atrás do palco: é melhor não ver. Viemos aqui por causa do rock, do blues, da força e da simplicidade das músicas de Ronnie Van Zant. É assim que a máquina abusa da própria voz e no dia seguinte está rouca, quase muda, de tanto gritar. Um dos motos-contínuos da mente é esse: jogar de volta na cara do mundo algumas doses de raiva, revolta, sensibilidade, emoção bruta (apontar o dedo para o céu bêbado e lembrar que tudo que existe é sagrado – Citação anacrônica? Não vejo motivo para Adam Smith ser mais longevo do que William Blake. A frase virou clichê? Não se você entra no circuito sagrado de tudo o que existe se deixando explodir com os estilhaços da alma e da liberdade). Isso está on the Road demais pro seu gosto? Chega! 4. Por vezes é como se eu andasse com uma bomba-relógio no bolso – é tenso. Nunca vi ninguém arrumar tanta confusão e em tão pouco tempo fazer amizades repentinas justamente com as figuras com quem acabou de quasebrigar quanto o meu irmão. Parece um ritual: quem sobreviver e souber que não é para ele os insultos, passa de fase. E não se trata de insultos propriamente ditos, comuns, mas blasfêmias sobre querer ser tratado como as outras marionetes, sobre pizza com e sem orégano e o abuso do molho pomodoro. Gritar sobre o amigo que caga em todo boteco que entra, observar como Peter Gabriel começou no Genesys e acabou no Apocalipse. Tem muito maloqueiro nessa festa. 5. A amizade, contudo, começa quando aos irmãos e sua fraternidade de sangue circulando entre o noturno e o diurno, vida e morte revezando-se como Cástor e Pólux, soma-se um terceiro. Um encontro inesperado cuz the Candyman is in town. As luzes coloridas que vêm do palco batem no muro de metal que cerca a área vip e rebrilha nas lentes escuras de seus óculos. O paraíso em gotas envolvido num plástico. Então, os três (e o número 3, quando as formas têm potencial, quando os caminhos se dividem em me todos, o círculo intangível do nascimento), então, os três caminham enquanto esperam, em conversas não menos absurdas esperam, e caminham. E às vezes param: onde era mesmo que estávamos indo? Ao show do Lynyrd, lembra? 6. Aos Amarelinhos, só uma coisa a dizer: Perderam, malucos! Algumas sensações foram oferecidas em sacrifício, é verdade, jogadas no asfalto e esmagadas nas poças de chuva e mijo. Mas, passamos por vocês e vocês não nos ganharam. E não foi por falta de esforço, diga-se. Fomos rastreados, vigiados, controlados. Um Amarelinho chegou a se aproximar de mim e farejar como se ele fosse um cachorro na alfândega de um aeroporto e eu fosse exatamente isso: uma mercadoria a ser contrabandeada, apropriada pelo Estado e revendida pelos circuitos extra-oficiais da corrupção policial. 7. É preciso saber o óbvio, que isso aqui não é Woodstock? É uma versão limpa, organizada, normal como Peter Gabriel usando passagens da Nona Sinfonia (“lovely lovely Ludwig Van”) para compor algo no estilo Tenya e trilha sonora da Pequena Sereia. É como se ao invés de álcool e drogas, os jovens românticos do rock tivessem morrido por excesso de anestesia. Mas, também é bom lembrar que nem Woodstock foi tão Woodstock assim. Aquilo aconteceu, apesar do objetivo primordial de tudo: fazer dinheiro. 8. Escapamos atravessando as estruturas montadas com corpos mutilados de jovens anestesiados, seguranças sádicos e empreendedores culturais, e chegamos ao momento. Chega a ser estranho tanto esforço por uma coisa tão simples, uma música tão simples quanto uma conversa entre um menino e sua mãe sobre a importância de ser simples. É que essas coisas não são dadas de mão beijada e o Absoluto pôs o dinheiro e o policiamento no caminho para nos lembrarmos disso: a simplicidade custa esforço. Precisamos do contraste: auto-ajuda, que seja. A sofisticação não passa de outro engodo: Peter Gabriel, você sabe. Johnny Van Zant dedica Free Bird a todos os que estão no paraíso do rock’n roll: e quando a música explode por dentro de nossas cabeças como se tapássemos os ouvidos e falássemos com uma voz estranha, só por curtição, é como se o sonho rompesse as travas do sistema (as bocas que falam sobre e são o sistema, esse véu inexistente que cobre o mundo e interdita) e atravessasse inclusive as nuvens pesadas e cinzentas que pairavam sobre o mundo naquela hora – o sonho subindo mais alto a bordo de um avião conduzido por um piloto alucinado que decidisse subir sem parar para além do limite suportável pela máquina. É como se o sonho rompesse tudo e descobríssemos, para logo depois esquecermos: que as coisas têm coração. 9. Na volta dois maltrapilhos, dois mendigos de sensações com restos de alucinação espalhados como migalhas na mente, fedendo a mijo, cachaça e pizza, orégano e pomodoro entram no avião. Uma turbina quebrada e o vôo foi adiado. Mas, depois de idas e vindas, chegamos em casa. Por enquanto, parece que o mundo voltou ao normal. No dia seguinte me lembro de um poema de Leopoldo María Panero que traduzi assim: Não temos fé do outro lado desta vida só nos espera o rock and roll me diz a caveira que tenho entre as mãos dança, dança o rock and roll para o rock o tempo a vida são miséria o álcool e o haxixe não dizem nada sobre a vida sexo, drogas e rock and roll o sol não brilha por causa do homem o mesmo para o sexo e o rock e as drogas: a morte é a buceta do rock and roll. Dance até que a morte te chame e diga suavemente vem entre no reino do rock and roll
O ódio da horda caçadora por dentro do teu ódio dentro do teu ódio o ódio das ratazanas contra outras de outra ninhada por dentro do teu ódio ninharias milenares dentro do teu ódio o ódio de gerações por dentro do teu ódio as guerras que estão sendo planejadas dentro do teu ódio todo sentimento é lenha pra fogueira do teu ódio por dentro do teu ódio quanta alegria alheia como uma pedrada na boca do teu ódio por dentro do teu ódio a nostalgia dentro do teu ódio por dentro do teu ódio uma mistura de remorsos e respostas afiadas teu ódio por fora
floresta de dentes ou por fora teu ódio macio como caninos disfarçados de pétalas fora do teu ódio quantas palavras bonitas em teu ódio por fora ou severas: lágrimas, castiçal, fato, flora, metalinguagem por fora teu ódio também se arma de conceitos e as pétalas afiadas e brancas são viscosas de veneno gorduroso por fora do teu ódio o aroma de perfume
excessivo
dentro do teu ódio toda descoberta é tardia por dentro do teu ódio a soma alucinante de desistências e sacrifícios dentro do teu ódio algumas boas verdades dentro do teu ódio que cresce em você como um feto de dentes afiados que você acaricia com unhas de ferro por dentro do teu ódio a certeza do desejo da vitória e como é mesmo o nome daquele sábio chinês que mandou decapitar os covardes por dentro do teu ódio você pensa que seu dia vai chegar de dentro do seu ódio quem mandou você nascer por dentro do ódio neste maldito mundo de ódio por dentro de um elevador com serviçais carregando as malas do teu ódio por dentro do teu ódio nadando como um peixe num aquário de ódio e fora do ódio você sabe
é o absurdo e nada te deixa mais por dentro do teu ódio quanto
do que a composição orgânica única e refinada que o sustenta e faz de cada corpo uma totalidade reconhecível no mundo, entre outros. Isso, apesar de a pele descamar constantemente, os fios de cabelo descerem pelo ralo, o sangue sair da aorta na velocidade de um conversível esportivo (vide a echarpe de Isadora Duncan presa nas rodas do veículo) –
p. ex. leio as palavras impressas num livro qualquer e é como se elas não entrassem olhos adentro perfurando o cérebro; não, elas fazem uma curva ao redor do meu crânio, são como o vento, circundam a cabeça, o pescoço: a integridade
fictícia
do corpo.
2. Querida família:
Andar de Jet Ski nas bordas de uma privada de luxo no Terminal Rodoviário de EsgotoCity, usar as fezes expelidas pelos intestinos irritados dos viajantes como creme de proteção solar, o catarro das Múmias entubadas do cu ao nariz nas catacumbas cheias de esqueletos à guisa de loção pós-barba para a night na boate, a cruz de prata usada pelo Capuchinho Cavazzi num ritual de exorcismo serve de colherinha pra adoçar o capuccino numa tarde em Casablanca, igual ao Steven Seagal recorrer ao cartão de crédito como estilete para cortar o pescoço do guardador de carro do estacionamento, algas marinhas na cabeça fazendo uma peruca, concreto armado por dentro do terno – só pra manter a atitude. Sai caro, mas vale a pena.
3. O seu passado
não me pertence, nem sei onde eu estava quando meu passado aconteceu ou quem era aquele com ar de ausente na fotografia, não sinto calor algum no simples fato de empunharmos um álbum de fotografia como se fosse um salvo-conduto e um domingo dedicado a tais memórias não seria inspirador, enfim, venho por meio desta pra dizer porque não irei ao encontro e nem me sinto compelido a agradecer
não sou dos seus, ainda assim me empenho a explicar: entre vocês sou um estranho sem nome que caiu de pára-quedas, um figurante que atravessa o melodrama e a heráldica com olhos vidrados, perdidos & sempre que digo feliz natal bom ano novo o faço
sangue sangue sangue sangue plástico sangue carbonizado flor de laranjeira sólido cristal mancomunado com as forças ocultas do orgasmo natal porque tantos peixes nesse campo viscoso seminal saber se Jesus ejaculava a lua ri cheia de dentes na minha imaginação um ímã atraindo os cães do pesadelo notívago lustres flores capturas de repente me lembrei do padre Ivo
veia de arame farpado aranhas sobre a pele adormecida estátua sonora de vulto inconstante espaço aberto gelo ventania, confessar-se e dez ave marias
pétalas facadas um revólver na mão do abominável homem de neve Jesus cristo e os santos uma assembléia de cães gatos e sapos ornitorrincos no campo solto do sonho de onde vem a luz do sonho uma lanterna um leão agoniza uma sombra uma caverna um vulto sem nome uma enxada cortando a cabeça do herói medusa rasteja sob o orvalho o longo fio de cabelo do pássaro morto na memória é tão fácil lutar contra uma abstração onde esqueci a coleira o refúgio a nota de rodapé o produto interno bruto o Sr ministro advoga uma causa perdida entre os escombros
nevoeiro lama respiramos fumaça na cidade incendiada fogo pelos poros pela pele foi a vodka que matou a moça e agora pastor pinguço e sua palestra premiada e seu cartão de ingresso na Festa Absoluta e o rigor da vestimenta a capa vermelha a espada o escudo o míssil a bomba a tiracolo no lugar da pasta e seus papéis e todos os carimbos e os títulos de inspetor do esgoto abúlico do fruto proibido faminto de nozes mordidas pela casca dura dentes quebradiços como uma folha de parreira cobrindo o Ivo viu a vulva de Eva: