É meia verdade supor que uma estrela não sente a dor de seu
próprio apagamento.
Retirar-se da nebulosa de mel azul acolhedor para o espaço
infinitamente aberto
de dentro, na própria estrela.
As flores e animais miraculosos ainda caminham e arranham seu
dorso inerte, anestesiado, a poeira vermelha, as nuvens ácidas, são imagens de
poeira vermelha e nuvens ácidas, a estrela é o rastro meramente mental de uma
dor que se apaga –
ainda assim, é um erro dizer que a dor inexiste na estrela que volta sua luz
para dentro de seu breu mais profundo, o próprio escuro de seu autoeclipse que
ela mesma cava, cava e não há lugar
não há lugar
para uma estrela dessas num tosco planetário plástico de
material adaptável:
gás de cozinha,
gás de cozinha
para dentro dos pulmões.
*
Cometas gritam meu nome, não esse que vocês conhecem,
mas um nome podre. Eles
passam a noite se espatifando contra a janela, movidos por uma atração
irresistível
e
gritam e brilham quando se quebram no vidro, querendo invadir meu quarto,
assassinos. Eles nascem no espaço mais distante, caindo da boca de uma estátua
de pedra. A estátua vagueia depois de todas as constelações, braço estendido
apontando para o mar crônico depois do além-ocidente: não dê um passo além
daqui, desse mar de gás.
*
O sentimento aziago rasgou o céu com sua longa cabeleira de
fogo. Minúsculas, pedras de gelo caem atiçadas por ácido sal – o sangue arde
como limão sobre feridas. Ver alguém esmurrar a mesa gritando a palavra amor.
*
Olhe dentro dos olhos. Estrelas mortas estendem tentáculos,
famintas. Luas de planetas desabitados procuram, em vão. Eu estive à beira da
morte. Eu sobrevivi, mas por puro medo do nada. Existe um sono muito profundo
nos isolando dentro da vida. Sonho constantemente que percorro labirintos,
espaços que se desdobram, enovelam-se, é como nadar em águas de breu entre
corredores fracamente iluminados.
Os seres de outros planetas que trazemos por dentro se
parecem com peixes e assim é você que me lê incognitamente em meu pensamento:
uma desilusão que puxa o ar inútil à beira-mar, pelas guelras. Não estou aqui
com a finalidade de ser reconhecível, não acredito em padrões de
verossimilhança. Portanto, acenda uma vela bem perto dos meus olhos, como
faziam os legistas antigos que moravam em castelos. Ponha-se à escuta, mas
cuidado com o tentáculo que procura se infiltrar, atravessando o caminho que
vai da matéria orgânica do teu ouvido ao nosso coração mais abstrato. Não
chore, não lamente o lodo que se acumula nas paredes. Despeça-se, despedace em
si esse planetário inútil.
Vamos beber do vinho verde de tantos sonhos desfeitos, apenas
porque a vida é rude demais. Alucinarei alguns momentos perfeitos, alguém
velando meu sono, fechando a porta cuidadosamente, descendo a escada, levando,
num aquário, peixes tão pequenos e brilhantes quanto sonhos mortos petrificados
em palavras.
*
Liberte-me. Não é difícil, é tão simples quanto autorizar uma
eutanásia: tudo em mim é corroído. Fora a dor constante, sou eu por onde
respiro. Noite passada um demônio, matéria-prima de janelas fechadas por dentro
do pavor, lambia minha boca com sua língua áspera de cachorro. Eu torcia meus
braços de pano e sombras escorriam deles, gotejando medo. Eu implorava por luz,
eu chamava, inutilmente, pelo auxílio de anjos inexistentes, mesmo que feitos
no óleo de automóveis. Contra a minha vontade, meu rosto fazia caretas de ódio.
Convença-se: não tenho nada a perder.
*
Olhe dentro dos olhos. Estrelas mortas estendem tentáculos,
famintas. Luas de planetas desabitados procuram, em vão. Eu estive à beira da
morte. Ele sobreviveu, mas por puro medo do nada. Venho tendo momentos
horríveis, os piores de uma vida de marionete. Nem são momentos, para ser mais
preciso. O tempo é um mar coagulado, crônico, que nos comprime. Se estamos
vivos, é apenas uma questão de método. Você não sente? O perfume feito de
butano e propano? O mar que anestesia para tudo, menos a dor, infiltra-se pelas
veias e não há alívio no fato de as ruas refletirem a cidade – invertida numa
topografia de ponta-cabeça onde asas de um anjo poderiam se formar no traçado
do óleo despejado pelos carros, onde alguém te diz que uma desilusão verdadeira
é melhor do que qualquer falsificação.
Mas é mentira dizer que a morte de uma estrela é indolor.
Certamente, o conselheiro não conhece o desespero, o verdadeiro e franco
desespero – se conhecesse, saberia que a ilusão mais tosca (como a de ver anjos
no óleo despejado pelos carros) é preferível a todas as geometrias daqueles
que, com réguas a tiracolo, ensinaram que a natureza é mero acúmulo casual de
pedras e gás.
Quer-se ver de perto alguém que não seja consumido como um
fogo frio, uma luz voltada para dentro de si mesma e por isso mais escura que o
poço mais profundo, que não se esvaia para dentro de si mesmo como a matéria
podre que se acende num fogo-fátuo parteiro de cometas com suas mensagens
sinistras de guerras banais e sempre as mesmas.
*
Nada é mais cômodo do que ser amado e não ter que amar em
troca. É como jamais ser garçom, nunca de núncaras, diria a estátua pichada do
drummond. Não ter que acreditar no que se diz, nem mesmo ao ponto de ter que se
duvidar se se acredita no que se diz. Porque o que nos despedaça nas palavras é
a crença, o instante rasga o véu como um relâmpago e nem somos deuses para
tanto, quando qualquer discurso é uma sentença. Prometer-se a si mesmo que só
serão feitas promessas vagas, como atravessar a rua com um folheto de horóscopo
a tiracolo. Um homem pálido caminhava sob as chamas esverdeadas dos castiçais
entre paredes de lodo, luas eram desenhadas no teto do apartamento, retratos de
cavernas e canais subterrâneos mastigados davam ensejo a calendários servidos
frios na hora do vinagre familiar. Chapéus eram jogados pelas janelas e o sol
esmiuçado se cozinhava em banho-maria, vomitando cometas e aves de mau
agouro.
*
Da matéria viscosa e seca dos sonhos desfeitos de humanos e
alienígenas, emanam cometas. A pele de cristal dos céus também infecciona e
grita heresias contra o sol. Mas de seu vermelho sanguíneo dão saltos,
dançando, tranças brilhantes, acesas, que levam as mentes desesperadas em nova
viagem pelo espaço vazio. Perto disso (da imaginação pólvora cósmica deflagrada
em desejo) como são pálidas as promessas dos fogos de artifício. Quem não curte
a cena é o Rei usurpador cuja metade do corpo é podre e que por isso clama por
contemplação desinteressada. O Rei corre aos seus aposentos em busca de sua
arma de fogo. Tudo menos ouvir as vozes desenhadas no rastro ardente que canta
o amor num pontilhado de tranças que atravessam o céu.
Dar tiros em cometas: é a tarefa de quem não acredita no amor
e assim fica congelada a imagem do Rei cuja metade do corpo é podre: de pé na
varanda, apontando seu revolver contra o céu.
*
E se eu, como esse Rei usurpador, tivesse o seu revólver? A
facilidade então seria uma solução mais simples, dando forma definitiva à
realidade. Eu diria para ele, Rei podre, atire em meu próprio coração que todos
os cometas desaparecem como que por encanto. Eu não estaria escrevendo isso e
tendo que refazer meu planetário com estas palavras, à procura da matéria-prima
luminosa da vida.