7/11/2014

Pelo menos não tenho que fingir

Pelo menos não tenho que fingir

Brasília amanheceu sob névoa de amarelo nunca antes visto, o fogo desnaturado se aproxima e nesse ar de inseticida – quando fala sua língua lembra uma centopéia agonizante, como é triste esse jeito de sorrir, não é um sorriso forçado, não é isso, mas um sorriso de ambigüidade, sente-se por trás das pupilas uma névoa amarela de melancolia prévia a tudo, anterior mesmo ao despertar, a voz vem como se tivesse que passar através de uma máscara de gás, e as flores do ipê vão caindo, sendo pisadas, maceradas sobre o asfalto e como as pessoas se cumprimentam, vão embora, você tem esse tom de pétalas mortas por agente laranja no cabelo e sorri tristemente no panorama, sob essa gravidade na respiração algumas coisas não deveriam mas voam, asas pesadas, outras se arrastam, marionetes soltas, sem noção de movimento, aguardam, esperam, cansam-se e resolvem limitar-se a que o tempo passe. Inevitavelmente passará, deixando em seu rastro uma névoa amarela de velocidade em armas químicas, progresso, monumentos corroídos e um almejado dom de invisibilidade por sobrevivência, total anestesia para o corpo colonizado,
deve contudo existir outro ritmo, pulsações, um estado de alarme implícito na fluidez mortífera de nossa atmosfera, do seu ar de abandono, sob um fingimento tão normal.

*


Com toda facilidade, criamos escamas e estamos prontos ao mergulho, furando o asfalto, deitando raízes, traços de sangue pelo chão e fertilizamos o tempo esponjoso, o tempo morto, o irreversível, a atmosfera indiferente do subsolo que tomou conta de toda a cidade e que as pessoas respiram com ar de insignificantes: sem raiva não brotaria nenhum fruto apreciável, principalmente o fruto mais obscuro, com polpa de estrelas, de fogo alquímico, com agulhas de tatuar cumprindo seu papel de sementes anunciando: abençoada seja toda ira criadora.   

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