Pelo menos não
tenho que fingir
Brasília
amanheceu sob névoa de amarelo nunca antes visto, o fogo desnaturado se
aproxima e nesse ar de inseticida – quando fala sua língua lembra uma centopéia
agonizante, como é triste esse jeito de sorrir, não é um sorriso forçado, não é
isso, mas um sorriso de ambigüidade, sente-se por trás das pupilas uma névoa
amarela de melancolia prévia a tudo, anterior mesmo ao despertar, a voz vem
como se tivesse que passar através de uma máscara de gás, e as flores do ipê
vão caindo, sendo pisadas, maceradas sobre o asfalto e como as pessoas se
cumprimentam, vão embora, você tem esse tom de pétalas mortas por agente
laranja no cabelo e sorri tristemente no panorama, sob essa gravidade na
respiração algumas coisas não deveriam mas voam, asas pesadas, outras se arrastam,
marionetes soltas, sem noção de movimento, aguardam, esperam, cansam-se e
resolvem limitar-se a que o tempo passe. Inevitavelmente passará, deixando em
seu rastro uma névoa amarela de velocidade em armas químicas, progresso,
monumentos corroídos e um almejado dom de invisibilidade por sobrevivência,
total anestesia para o corpo colonizado,
deve
contudo existir outro ritmo, pulsações, um estado de alarme implícito na
fluidez mortífera de nossa atmosfera, do seu ar de abandono, sob um fingimento
tão normal.
*
Com
toda facilidade, criamos escamas e estamos prontos ao mergulho, furando o
asfalto, deitando raízes, traços de sangue pelo chão e fertilizamos o tempo
esponjoso, o tempo morto, o irreversível, a atmosfera indiferente do subsolo
que tomou conta de toda a cidade e que as pessoas respiram com ar de
insignificantes: sem raiva não brotaria nenhum fruto apreciável, principalmente
o fruto mais obscuro, com polpa de estrelas, de fogo alquímico, com agulhas de
tatuar cumprindo seu papel de sementes anunciando: abençoada seja toda ira
criadora.
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