10/29/2007

nº 55




Na paisagem flores de concreto a prumo brotam ostensivas
da areia num ímpeto veloz, com ou sem
vista para o mar, desnecessárias, ao lado de mensagens
extramuros, fora
de qualquer porta, mais
lá fora que você agora, luminosas
ou sem luz são só eclipses
do sentido em sua vida
sem adornos dentro de uma cápsula, num bólido de lata
sobre rodas que arrasta a pique seu corpo
para o esquecimento e a ruína, no frio
artificial em que suas retinas amplificam
tudo que vaga abaixo da pele
do mundo, enquanto
você insiste e segue avulso
como uma caixa da qual ignoram
o destino, no extravio
desta tarde.

(das Notas Marginais)

10/28/2007

nº 56



Hoje pela primeira vez, como se inaugura
um porto ou um jardim, você
disse a palavra, 'é inaudível, eu sei', você disse sem resposta, sem
estoques de esperança ou mapas, não rola
pela ponte cediça em que você está
sozinho, não rola
aquilo que reverbera, e então,
olhando ao largo, arrisca: “arregaça, arregaça
os punhos, paixão, e termina logo
com este estupro, como quem
não quer nada
”, mas no deserto o som
atravessa a miragem, que diz “não sei mais
como lidar com isso
” e segue, na vertigem
do infinito.
(das Notas Marginais)

10/26/2007

nº 54



Curvar-se até o chão diante
da inocência, ou mais além do pavimento
duro, se fosse tão gasosa assim
a matéria da alma que num ponto
nunca definido arranca um grito
ao ar quando atravessa os tais
dos campos vastos, triscando balizas do tempo, lentamente,
fingindo obedecer a relógios
e, neste empuxo,
despenhar-se junto aos dias e às promessas
só pra aumentar o monturo e os escombros
a seus pés.
(das Notas Marginais)

10/25/2007

Partido, o erro é meu

A vida gira em torno de eixos muito simples.

Domingo. Brasília é uma tarde parada entre carros e o quase silêncio de seus reflexos na pista. Mas trancado no quarto eu finalmente mergulho na moça que me cativou o dia inteiro com uma cumplicidade displicente. Ela se liquefaz num rio que me suga para suas águas turvas. O quarto é um aquário e somos sua matéria-prima densa.

Ou uma tarde qualquer. A invasão mascarada sob condomínio fechado, a gaiola para os abutres de garganta seca é silenciada por uma luz singular. Um sol que não fere a vista, mas desce sobre o dorso das coisas e suaviza em tudo levemente dourado. Pela primeira vez, a cidade aérea tem profundidade. Meu irmão olha a paisagem. Minha mãe olha meu irmão e a paisagem. Eu, pela janela, vejo a varanda, minha mãe, meu irmão e a paisagem.

Há ainda a manhã se expandindo em azul-marinho dentro de outro quarto, quando Giovana abre a janela e o dia apenas começa, e o azul invade a tonalidade de seu rosto, dos seus braços. Os porta-retratos, até então escondidos no escuro, ganham os contornos de uma vida desconhecida.

Existem outros momentos, situações dispersas como túmulos na areia da praia. Ou a certeza de que a parede quente do apartamento aprisiona gritos, em voz baixa. Ou em frente ao muro, próximo ao mar noturno, a memória melodramática de um moleque mijando e chorando ao mesmo tempo.

Nada disso é perdido pelo Semprevigilante Oito-Olhos. O renegado Oito-Olhos e sua coleção de crianças mortas. Mas num dia de muita chuva eu jogo uma semente alucinada em sua consciência universal. Eu sou uma semente alucinada na consciência universal, mas ela não precisa de mim e segue seu curso. Ao contrário, eu é que me alimento dela como um autêntico parasita.

A poesia é um fruto delicado oferecido às garras de rapina da consciência universal. Por isso, ó senhora cansada e moralista, não renegue a merda da consciência universal, simplesmente. Não parodie a palavra merda. A merda está cheia de sementes alucinadas na consciência universal. A classe média fantasia-se de consciência universal em seu ninho de abutres mas abriga em seu refugo algumas sementes alucinadas.

O que fazer ó deuspai barbudo ó filho guerrilheiro impoluto ó espírito crítico se o máximo que sou é este miasma da história? Já joguei dardos na cara do cartaz do presidente. Já corri atrás da Perestroika no Itamaraty. Mas tudo isso ao lado de presidiários libertos, punguistas, trapaceiros, realejos, amoladores de facas, todos liderados por um velho saltimbanco.

Se eu aprender a rezar para o deus que deve estar por perto, já que o pressinto como um pássaro em minhas veias me ensinando que tudo pode ser leve porque todos têm o poder de voar e fazer sangrar a dita consciência universal, estes serão os elementos que me darão força para apostar numa nova fraternidade. O resto é o fluxo indiferente da vida, um peso morto que anda por aí e carrega meu nome sobre o mundo.

10/22/2007



Quando foi que nos seduzimos tanto
- e tanto -
até nos transformarmos em ar:
doces suspiros?

Quando foi que me deixei levar por suas mãos
- dedos -
olhos
língua
e derreti em calores no meio do peito?

Nem antes.
Nem agora.
Nem depois.

O desejo escapa no tempo
do poderia.

10/21/2007

nº 51



Difícil acreditar na luz, ela
não é nada mais do que outro lado
da treva: e mais que duvidar, você suborna
o coração com lances baratos, em surdina, até
que a iridescência perca sua autonomia,
em ciclos declinantes, sucessivos, como um prazer
ao contrário, bruto, até o chão. Deserto é tanto
o que sobrou quanto
o que estava antes, coalhado
de abismos escavados na planura. Quem foi
que ergueu esta montanha aqui?
, ele disse quando galgou
ao cume, diante
da miragem do absoluto, o riso
apontando para onde o coração (deviam
inventar um nome melhor
pra estas deformações
, ela disse, que se assemelham muito
a florações
) insiste
em construir cenários
imprevisíveis, andando rente,
tentando descobrir porque miragens
nunca reencarnam.
(das Notas Marginais)

10/20/2007

nº 53




Atravessar o deserto de carne, tantos
relevos de pele, numa aventura
da cor e do som, do gesto (tudo
é deserto
, ele disse), na terra trêmula,
e a salvação vem daí, é parte
dele ou erra exilada pelas paredes
ácidas de uma dúvida
que não cauteriza e nem
percebe ao certo. É sua alma o que vaza quase
todo dia em jatos e estertores, na hora
em que pesa mais, um pouco mais
que o corpo possa suportar. Salvação,
abrigo, redenção,
caminho, o que for,
veio tarde: seus pés
afundam no chão duro
e é aí que você vai ficar, convulsivo,
quando a miragem passar.
(das Notas Marginais)

10/17/2007

Convite


Queridos epistoleres
vou lançar meu livro de poesia e desde já quero agradecer vocês pelas leituras e sugestões!

espero todos no lançamento

beijo

Masé

10/16/2007

A escuta da história

O que pra vocês é história do Brasil chega aqui em casa pela linha telefônica. Uma voz interrompida, entre os chiados da ligação ruim e os da dor que se expande no corpo até desejar saltar pra fora em lágrimas, tão finas e profundas como as que já me tatuaram com agulhas fabricadas nos laboratórios dos Anjos Convulsivos. Lágrimas que faíscam como se o telefone fosse uma serra circular roendo minha cabeça, por fora e por dentro.

Mais além do que o aparelho alcança há um velho que fala sozinho em língua desconhecida e forjada por estilhaços que parecem ter sido um belo vitral, em tempos sem memória.

O velho está debruçado sobre o mapa de um lugar esgarçado, onde a desgraça é vendida, trocada e usada como matéria-prima na fabricação de moedas e churrascos.

A rede puída em que o velho espera a morte é o pergaminho da desgraça dos mortos insepultos, dos gritos torturados sob a castanheira grande e das crianças que ainda morrem de fome ou são sufocadas por latas de cerveja.

Meu cérebro é vidro moído, nele há uma bonita e muito triste mulher enterrando sonhos que não são apenas seus à beira de um rio silencioso. Rio que de tarde é vermelho, no anoitecer é roxo, à noite é negro e na madrugada uma cidade sem luz invadida por sereias com garras de aves de rapina.

Com esta matéria perfuro-cortante os anjos convulsivos preenchem livros adotados no Colégio Saber é Vencer. O professor digere as letras para as crianças o importante é o exercício cerebral. O senso crítico se lamenta, queixa-se patrioticamente do país que deu errado, fecha a cortina e apresenta uma alternativa de V ou F para o próximo vestibular.

10/11/2007

No lugar em que você está




aquilo que se diz avança no espaço
a 360 m/s
e assim, se você estivesse aqui
agora,
meu verso saltaria no ar, num átimo
e como um bólido rasgaria o ar
até surfar em seu ouvido,
amargo ou doce, do jeito
que ele quiser.

o que você está olhando
agora, neste deserto
branco, é uma voz
suspensa, no meio
do salto, esperando você
chegar.

onde você está agora?

Nova metodologia para o Autoconhecimento

Fazer coisas inúteis dá muito mais
trabalho. Isso é pra quem te acusar
de desocupado.

Rei Lear.


Para piorar você era aquela história do menino que se escondeu no quarto e que de tanto comer papéis acabou se tornando um sapo peçonhento. O sapo que de vez em quando se abrigava na idéia de que as páginas brancas poderiam ser asas de uma grande mariposa. Mas, no final das contas, um sujeito envenenado que foi migrando e se desfazendo em estilhaços, parcelas de histórias alheias.
Está escrito em algum lugar que o destino de cada um é sua cota no cosmos, moira, mas isso pressupõe a existência de harmonia. O destino pode ser uma quase-ausência no turbilhão dos destinos alheios ou mera doença da linguagem.
Daí aquela constatação óbvia: todos te conheceram melhor do que você mesmo, mas você não se reconheceu em qualquer retrato alheio. Sua imagem mais fiel pode repousar num site (www.danielfaria.org, por exemplo). Mas você desconfia que sempre teve o dom de irritar carolas. E desconfia que ateísmo é presunção ridícula. E desconfia que melhor seria agir como o bom demônio e dar porrada nos mendigos que penduraram seu retrato no interior das autobiografias só porque você é uma esmola suficientemente miserável para o sentimento de satisfação que lhes basta.
Você, ou seja: o que você é. Sua última desculpa seria então, não importa o que eu sou, mas sim quem eu sou. Um cara confuso. Um invejoso mesquinho. A promessa do ano. Uma pérola. Babaca pra caralho. O libertário. O revoltado. O trator acadêmico, “eu achava que você era normal”. O que desafiou os leões e suas frases de roteiristas de desastres aéreos. O amigo dos porteiros, dos gatos de telhado e dos jovens massacrados pela horda dos professores ressentidos. O que gostaria de ser qualquer coisa destas, mas não é nada disso.
Não é nada disso mas, por outro lado, a situação assusta. O que fazer se você não acredita em horóscopo, espírito de época, teologia ou materialismo dialético? Foi por isso que num momento de desespero você virou a história daquele homem que acreditou na metodologia Oito-Olhos para o autoconhecimento, “fazer de sua alma um livro aberto”? E anotou os números que te localizam no mundo (identidade, CPF, CEP, telefone, conta bancária, data de nascimento) e foi à biblioteca em busca dos livros correspondentes? E no livro situado no número do seu nascimento, 090, página 37, linha 6, deparou-se com ninguém menos do que Petrarca e estas dicas: “a turba vai zombar de sua busca, mas persista espírito gentil”, “você é o tipo do animal que não descansa nem de dia nem de noite”, “você mais parece um homem selvagem apaixonado por uma fera”, “baixe a bola, a morte não se esquece de você”, “humildade é para os trouxas, eu quero a Laura, a Laura que tem a lua minguante como brinco”? No CEP, lá estava John Wisdom, Problems of mind and matter, numa página sobre conteúdo, componente, constituinte e forma, discutindo uma coisa que pode estar na outra sem ser conteúdo? Afirmando que, sendo o fato uma relação entre coisas, estas podem se aproximar sem comporem necessariamente um fato? Uma coisa como uma direção no vácuo, sem forma? A página termina laconicamente com a frase “isto explicaria seu”, isto parece certo.
No telefone você achou Paz Alonso, um livro sobre a história de Cuba no século XIX? Você não entendeu direito, mas pescou as seguintes frases, “você é um espanhol de segunda classe”, “você é uma coisa entre o reformador irreflexivo, o inteligente mas desfocado e o preguiçoso”? No CPF você leu Joseph Boskin, Sambo, na página que fala de alguém vestido como um palhaço, montado num cavalo, um escravo que dava cambalhotas para alegrar o coração dos proprietários e ainda ouvia a crítica de Josiah Quincy sobre o possível enegrecimento da alma das crianças brancas que se divertiam? E o número da conta bancária, então? Esta caiu na prateleira de Serviço Social, que tem por objetivo o homem racional e procura ajustá-lo, reajustá-lo e educá-lo? O importante é inserir o vagabundo em algum grupo, tendo em vista a felicidade individual e a utilidade social?

Certas coisas da vida são tão arrumadinhas que não convencem. Por exemplo, o fato de as obras completas de Menotti DelPicchia terem sido publicadas no Edifício Mário de Andrade. Ou o fato de que foi impossível encontrar qualquer livro que correspondesse ao número de sua identidade, apesar de todos os esforços. O bom demônio que se esconde no livro inexistente ensina: identidade não vale o esforço, a única ilusão digna é a liberdade.

10/06/2007

O outro convite

Sempre fui um penetra em minha própria festa. Na única ocasião em que usei casaca irlandesa, num jantar em minha homenagem pela vitória na competição de comer palavras emendadas e vomitar notas de rodapé, fui pego em flagrante ao roubar pedaços de rosbife e esconder no bolso. Era pra curar a ressaca do leite em pó com vodka, mas os seguranças armados com paranóia elétrica e distorções de Robert Musil não acreditaram.

E foi desse mesmo jeito que, à porta da casa em que fui escolhido pra morar como invasor, bateram os convidados de uma festa à fantasia não-programada. Desconfio que os convites tenham sido enviados pelo famoso vírus virtual que expande as telas dos computadores e forma uma cúpula azul sobre desavisados.

Agora estão comigo: Mairowi, meu famoso pequeno amigo verde; as Quatro Pombas com os óculos infravermelhos de astronauta; a Garota Língua-Seca de Papagaio e seu colete à prova de balas feito com pele de porco-espinho; São Capeta dos Espelhos. Eles não foram convidados. Eu também nem sequer me convidei quando entrei nesta festa alheia. Mas fazemos um brinde triste enquanto Campinas derrama asfalto derretido em nossas gargantas. E como somos orgulhosos, cada um bebe por conta própria.

Mas não faço de conta que todos são bem-vindos. Disfarço com o canto do olho e vejo figuras que me causam ressaca antecipada: Maria Bentham, Oito-Olhos, a Babaca P.S. Silva, o Boca Seca Chupadora de Pirulito de Pimenta e o Iconoclasta de Taubaté. Eles são muito escrotos: é uma festa à fantasia, mas vieram com suas roupas de ofício. Acho que é por preguiça que eu não.

Desconfio que a festa é deles, que eles são sócios do escritório dos Advogados com Terno de Embalagem de Miojo: ou seja, que eu, além de tudo, sou inquilino destes filhos da puta. Isso explicaria os nuggets frios servidos como petisco, à moda do porto (que eu não encomendei). Me vingarei deles com a surpresa escondida no fundo da geladeira: Schincariol de Alagoinhas, a cerveja visceral.

10/04/2007

nº 50



Alguma coisa que não se resolve, e nem
é mistério, num monolito em suspenso
o rótulo todo rabiscado onde
está inscrito 'alma' entre outras besteiras (espia,
tudo aqui é fissura
), essa conjunção
de partículas de treva parece ser
sua - aí, ele disse,
a crise atinge a página
do tempo, agora mesmo, e num instante você
se sente ligado ao presente mas
é só um efeito das palavras, na seqüência
de rajadas, e empena
acima o olho estoura
diante da luz
simulada.
(das "Notas Marginais")
imagem: acrílico sobre tela de Eduardo Iglesias.

10/02/2007

Verde verde vômito como amarelo – amor amor o caralho solidão – meu ego é minha cela meu sétimo selo ainda ontem uma criança desenhava em traços grosseiros o que bom dia ser uma forca mas era uma chave duas chaves voando ao redor de um trem tosco o que me fez pensar no corpo no corpo no cadáver no resto que era silêncio nos restos mortais no porque agora sim agora não agora sim agora não eu te amo meu bem ve se sai do meu caminho peste se eu entrasse naquele trem que mais parecia um funerária ferroviária desenhada num caderno verde verde como vômito amarelo bem que eu veria todas as faces pétalas podres num ramo seco

Agora outra questão é se o rancor tembém tem dedos como as palavras de amor – o rancor as palavras entrando como um cotonete na uretra como agulhas nas veias – tudo o que passamos juntos meu bem teus sonhos me dão náuseas ah messias menina civilizadora e seus colegas cafajestes fantasiados de sentidos embaralhados mas sabendo que cada coisa em seu lugar a luz acesa os copos sobre a mesa as palavras certeiras o a ser dito e a não ser dito – ai esta maldita coceira no ânus

da burguesia que palavra mais antiga –

a primavera começou o frio ainda é forte muitas indefinições palpáveis pelo menos é o que diz o meu horóscopo acho que odeio campinas que odeio brasilia que odeio o que amo que amo o que odeio que fico rodeando o que sinto como mosca na merda atrás de que alguma pureza

bem não vou pensar nos dias perdidos no alarme do despertador no que devia ter lido o que está escrito no que ainda não li? Talvez a mesma a mesma letra morta escrita à margem das citações e se eu me tornasse um agente da expansão civilizadora? Se eu ensinasse as artimanhas do corte e costura da postura boa ou má tanto faz se eu me vestisse de lobo pra entrar nos teus sonhos e te dizer liga pra liga pra mim estou muito sozinho mas pedir já seria demais pra nossa paciência tão gasta não é minha gérbera?

e se eu te levasse no trem desenhado grosseiramente pelo menino ontem à noite (ele mal acabou de desenhar e já estava dormindo) acho que lá dentro depois da fina parede de papel entre o papel e a mesa dentro do trem deve haver outra chave um rabisco apenas que eu chamo de chave por comodidade mas que é outra coisa outra coisa ainda

não era bem isso que eu estava dizendo