Fazer coisas inúteis dá muito mais
trabalho. Isso é pra quem te acusar
de desocupado.
Rei Lear.
Para piorar você era aquela história do menino que se escondeu no quarto e que de tanto comer papéis acabou se tornando um sapo peçonhento. O sapo que de vez em quando se abrigava na idéia de que as páginas brancas poderiam ser asas de uma grande mariposa. Mas, no final das contas, um sujeito envenenado que foi migrando e se desfazendo em estilhaços, parcelas de histórias alheias.
Está escrito em algum lugar que o destino de cada um é sua cota no cosmos, moira, mas isso pressupõe a existência de harmonia. O destino pode ser uma quase-ausência no turbilhão dos destinos alheios ou mera doença da linguagem.
Daí aquela constatação óbvia: todos te conheceram melhor do que você mesmo, mas você não se reconheceu em qualquer retrato alheio. Sua imagem mais fiel pode repousar num site (www.danielfaria.org, por exemplo). Mas você desconfia que sempre teve o dom de irritar carolas. E desconfia que ateísmo é presunção ridícula. E desconfia que melhor seria agir como o bom demônio e dar porrada nos mendigos que penduraram seu retrato no interior das autobiografias só porque você é uma esmola suficientemente miserável para o sentimento de satisfação que lhes basta.
Você, ou seja: o que você é. Sua última desculpa seria então, não importa o que eu sou, mas sim quem eu sou. Um cara confuso. Um invejoso mesquinho. A promessa do ano. Uma pérola. Babaca pra caralho. O libertário. O revoltado. O trator acadêmico, “eu achava que você era normal”. O que desafiou os leões e suas frases de roteiristas de desastres aéreos. O amigo dos porteiros, dos gatos de telhado e dos jovens massacrados pela horda dos professores ressentidos. O que gostaria de ser qualquer coisa destas, mas não é nada disso.
Não é nada disso mas, por outro lado, a situação assusta. O que fazer se você não acredita em horóscopo, espírito de época, teologia ou materialismo dialético? Foi por isso que num momento de desespero você virou a história daquele homem que acreditou na metodologia Oito-Olhos para o autoconhecimento, “fazer de sua alma um livro aberto”? E anotou os números que te localizam no mundo (identidade, CPF, CEP, telefone, conta bancária, data de nascimento) e foi à biblioteca em busca dos livros correspondentes? E no livro situado no número do seu nascimento, 090, página 37, linha 6, deparou-se com ninguém menos do que Petrarca e estas dicas: “a turba vai zombar de sua busca, mas persista espírito gentil”, “você é o tipo do animal que não descansa nem de dia nem de noite”, “você mais parece um homem selvagem apaixonado por uma fera”, “baixe a bola, a morte não se esquece de você”, “humildade é para os trouxas, eu quero a Laura, a Laura que tem a lua minguante como brinco”? No CEP, lá estava John Wisdom, Problems of mind and matter, numa página sobre conteúdo, componente, constituinte e forma, discutindo uma coisa que pode estar na outra sem ser conteúdo? Afirmando que, sendo o fato uma relação entre coisas, estas podem se aproximar sem comporem necessariamente um fato? Uma coisa como uma direção no vácuo, sem forma? A página termina laconicamente com a frase “isto explicaria seu”, isto parece certo.
No telefone você achou Paz Alonso, um livro sobre a história de Cuba no século XIX? Você não entendeu direito, mas pescou as seguintes frases, “você é um espanhol de segunda classe”, “você é uma coisa entre o reformador irreflexivo, o inteligente mas desfocado e o preguiçoso”? No CPF você leu Joseph Boskin, Sambo, na página que fala de alguém vestido como um palhaço, montado num cavalo, um escravo que dava cambalhotas para alegrar o coração dos proprietários e ainda ouvia a crítica de Josiah Quincy sobre o possível enegrecimento da alma das crianças brancas que se divertiam? E o número da conta bancária, então? Esta caiu na prateleira de Serviço Social, que tem por objetivo o homem racional e procura ajustá-lo, reajustá-lo e educá-lo? O importante é inserir o vagabundo em algum grupo, tendo em vista a felicidade individual e a utilidade social?
Certas coisas da vida são tão arrumadinhas que não convencem. Por exemplo, o fato de as obras completas de Menotti DelPicchia terem sido publicadas no Edifício Mário de Andrade. Ou o fato de que foi impossível encontrar qualquer livro que correspondesse ao número de sua identidade, apesar de todos os esforços. O bom demônio que se esconde no livro inexistente ensina: identidade não vale o esforço, a única ilusão digna é a liberdade.