Quando você é vulgar: apenas negocia convenções, não domina os segredos, qualquer um pode dizer que árvore é o nome de uma cidade, que cidade é o nome de uma arma, que arma é um sentimento, que sentimento é o nome de um faraó. A língua epistolar é a conversa vulgar no desentendimento, mesmo que este ocasione encontros repentinos e imprevistos. É quando uma criança autista diz pra você: se o mundo gira, porque você não fica tonto?
1/31/2008
Falado
retirando as escamas da imaginação (repara o brilho
de prata, fugidio,antes de mergulhar
na sombra, sem a menor possibilidade
de sonho) sobrou esta substância
informe, espessa e sem mágica
que a gente depois pendura em ganchos
nos incêndios sucessivos (onde quem se queima
somos nós) das palavras.
1/28/2008
nenhum mar (trechos)
Copacabana não me engana mais:
hoje tenho o cinismo que roubei
de todos os espelhos em que vi
o outro, este que fui sem nenhum zelo
recuperado porque destilei
mil litros de suor com que escrevi
seu nome nos lençóis de hotéis de quinta
com o amor que move o sol e outras estrelas
...
mas quando ponho a máscara estou nu
falando pras gaivotas, sem um puto,
versículos neon à beira-mar
enquanto a forma ao fundo se entrelaça
despedaçando o espelho que fui eu:
era como se o corpo prosseguisse
e eu dissesse à beira de um abismo
‘amor, sei que estou vivo’, e desse um passo
1/27/2008
A arte de não ver com olhos livres em 3798 palavras (Ou Aula sobre Abaporu na Pinacoteca)
- Ver o vermelho (pra explicá-lo)
- O vermelho representa
alguma coisa: vasos
sanguíneos,
sensualidade, fogo ou
buceta em flor depois da foda:
o sangue pode estar em transfusão
ou saindo por um corte
que por sua vez
pode ter sido por faca
garfo, lança ou espada:
o fogo pode estar
diminuindo
mas é um fogo imaginário
em tudo isso há
um núcleo de vermelho
decifrado.
- A essência da tela
posta em questão
está escondida
na haste vermelha.
- A metade de cima
é o que seria um shoppingcenter
pra vocês (na sua imaginação)
a de baixo é uma praia
de paulistanos,
- Modernidade, atraso
missão civilizadora
bandeirismo, escritores
em Ouro Preto, essas coisas
estão espalhadas
nas partes verdes do quadro.
- Aliás, pensando bem,
deixem de fora a buceta sublinhada
no início do passeio
não era esse o projeto
modernista
que enquadra.
- Em dúvida
cruzem a rua
e confiram
Gilberto Freyre e a relação
entre a família patriarcal
e o açúcar, congelados
em microondas.
- O bicho tem uma boca pequena,
não dá pra saber
se domina a língua
portuguesa.
- Ver com olhos livres
não é ver como se queira,
- Caros visitantes
todos os olhos são armados
o de fulano com uma bazuca
o de beltrano com um alicate de unhas
o de cicrano com a colubrina
vamos então espicaçar
o Abaporu
o bicho tem que se explicar,
e sim senhor
dar uns passos pra trás
e coçar a barba
faz bem.
- O direito de existir
é o que está em pauta
ele deve se comportar
como o canibal patriótico,
é o que se prescreve
num caso como este.
- Se ele foi adestrado?
- Continuando meus queridos
este pé inchado
pode ser de bebedeira
vejam os olhos de ressaca
do animal,
mas claro que estou
simplificando pra vocês,
é o inefável
da anedota e o registro
não é do pitoresco.
- Pode ser que ele tenha
pisado um formigueiro
antes de ser flagrado
pela artista genial
num hotel de Florença
ou sob a estátua de Stalin
- Mas tem que ser alguma coisa
nada é que não dá, por que
a moldura é prateada?
- E se for alguma coisa
você deve dizer logo
(virando-se pro bicho)
- Como quem cala consente
adianto que:
verde é natureza &
vermelho é fogo,
de fogo vem ar
de ar vem água
de água vem terra
de terra, umbigo,
daí pra língua é um passo
e a mente retorna
ao fogo.
- Ver-se na pintura
não pode se perder,
o animal ou se domestica
ou que morra de fome
no fundo do mar (vai
fazer companhia
pra Dom Quixote
em bronze no porão
do museu).
- E você aí garota
calma não precisa chorar
esta paisagem é só São Paulo
vai lá fora e veja por si mesma.
- Não, o animal não está se mexendo
como um peixe confinado
num aquário muito pequeno,
não ele não está sumindo
- Deve ser a depressão de fim de férias.
- Não, ele não vai sair do quadro.
1/24/2008
Aproximação à parte 2 do Uivo (aproximação quer dizer: tentativa equívoca de tradução amadora)
que esfinge de cimento e alumínio abriu seus crânios e comeu seus cérebros e imaginação?
Moloch! Solidão! Imundície! Feiúra! Cinzeiros e dólares intocáveis! Crianças gritando sob as escadas! Garotos enrabando militares! Velhotes chorando nos parques!
Moloch! Moloch! Pesadelo de Moloch! Moloch o sem-amor! Moloch mental! Moloch o
pesado juiz dos homens!
Moloch a prisão incompreensível! Moloch a cruzóssea desalmada jaulamorada e o Congresso dos lamentos! Moloch cujas edificações são julgamentos! Moloch a vasta pedra da guerra! Moloch os governos atordoados!
Moloch cuja mente é pura maquinaria! Moloch cujo sangue é dinheiro circulando! Moloch cujos dedos são dez exércitos! Moloch cujo peito é um dínamo canibal! Moloch cujo ouvido é uma tumba fumegante!
Moloch cujos olhos são mil janelas cegas! Moloch cujos arranha-céus ficam nas ruas longas como infinitos Jeovás! Moloch cujas fábricas sonham e cacarejam na neblina! Moloch cujas chaminés e antenas coroam a cidade!
Moloch cujo amor é pedra e óleo a perder de vista! Moloch cuja alma é eletricidade e bancos! Moloch cuja pobreza é o espectro do gênio! Moloch cujo fado é uma nuvem assexuada de hidrogênio!! Moloch cujo nome é a Mente!
Moloch em quem eu me sento solitário! Moloch em quem eu sonho anjos! Louco em Moloch! Chupador de pica em Moloch! Desamor e sem buceta Moloch!
Moloch que entrou cedo em minha alma! Moloch em quem sou uma consciência sem corpo! Moloch que me espantou do meu êxtase natural! Moloch que eu abandono! Acordar em Moloch! Luz fluindo pra cima do céu!
Moloch! Moloch! Apartamentos robôs! subúrbios invisíveis! tesouros esqueléticos!
capitais cegos! indústrias demoníacas! nações espectrais! hospícios invencíveis! picas de granito! bombas monstruosas!
Eles arrebentam as costas carregando Moloch pros céus! Pavimentação, rádios, árvores, toneladas! carregando a cidade aos céus que existem e estão em todo lugar sobre nós!
Visões! presságios! alucinações! milagres! êxtases! soçobrando no rio Americano!
Sonhos! adorações! iluminações! religiões! toda a baboseira sentimental!
Penetrações! sobre o rio! arranques e crucifixões! indo pra inundação! Altos! Epifanias! Desesperos! Urros e suicídios de animais de dez anos! Mentes! Novos amores! Geração louca! caindo sob as pedras do Tempo!
Real gargalhada sagrada no rio! Eles viram tudo! os olhos selvagens! os berros sagrados! Eles acenaram adeus! Eles saltaram do telhado! à solidão! oscilando! carregando
flores! Pra dentro do rio! na rua!
1/21/2008
nº 70
eles guardam pode flutuar até
que outros olhos, na voragem, capturem
imagens dispersas, desejos, fragmentos –
ou então vagar sem rumo ou se
deixar ficar no mundo, entre as coisas,
tateando na busca do que
se perdeu, “porque
pode não haver caixa preta nem
arquivo” ele disse, “repara como tudo
tenta se agarrar, galhos soltos
nas margens, sempre
violentas”.
Fim de semana em Brasília
Eu me chamo quer dizer meu nome é um chamado. Eu me chamo não quer dizer eu me dou meu nome, mas alguém recebeu um convite.
A luz ataca Brasília como os olhos vão percebendo cortinas xadrez fechando a paisagem quando a cidade quase desmaia porque se levantou de repente e tem a pressão baixa.
Da janela do hospital o doutor fica alucinado porque assistiu de camarote o mergulho do gavião contra um pássaro qualquer.
Satori de anestesia geral.
Agora pegue este tupperware com a carne branca amarrada com linhas pretas e leve o seio da sua mãe ao laboratório mais próximo. No caminho converse sobre o clima ou a revolta da vacina e saia dessa cara de enterro.
1/14/2008
Matiz
Não dá pra chamar de plúmbeo este céu, tampouco
argênteo, que um
afunda a sua dor num espectro
engalanado e o outro
aspira a um brilho que
não tem e assim
disfarça o céu que é por tudo cinza,
apenas cinza em sua solidez e lixa
em nossos olhos o que a superfície opaca e rarefeita
aflora de áspero: resíduo, pó, rescaldo
de um incêndio, também chamado, às vezes,
vida.
1/13/2008
Feridas Marinhas
Feridas Marinhas
Primeira Ferida
Pássaro de bico pontiagudo
Que absolutamente não canta
Salta do liso e verde mar
E fere meus olhos.
Inocula um líquido negro e denso,
Negras lunares flores marinhas.
Pássaro daninho:
Depois disso
Em tudo o que digo
Sinto
Cheiro de pétalas negras.
Segunda Ferida
Vocês nem perceberam
Mas lentamente
Um mar em mim crescia.
De águas pesadas e absinto
Verde apenas na aparência
Da superfície lisa –
Sob a pele fina
Uma substância escura,
Outras águas
Fervendo geladas,
Águas natimortas que cresciam
O mar que em mim crescia.
Vocês não viram, não vêem,
Mas seus olhos
Perderam o brilho
E seus dentes trincaram
Nas insidiosas águas
Do mar que em mim cresceu.
Terceira Ferida
Vejo
Um corpo à deriva
Sem olhos
Dentes amarelos
E pele cinza
Preso num daquelas gaiolas
Aquelas que os mergulhadores usam pra se verem livres
Dos tubarões.
Vejo o corpo
E sei que ele é frio
Porém vivo com sono e fecho a tela
Verde-líquido.
1/12/2008
cinema contemporâneo
e escorreram pela tela
como no tempo as horas sem direção,
mesmo (penso) que rumo a um vazio sem nome
e sem volta e no entanto
sempre tocando, circulares, seus princípios do modo como faz
quem, com saudades de alguém
morto, projeta por dentro em sua tela
o instante exato em que ocorreu
o crime, e considera
com extrema dor a extensão
do vilipêndio ao se lembrar que as coisas
são materiais, tangíveis, e não se dão
como acontece no cinema (quando
acendem as luzes no fim da sessão
e você enxuga a lágrima ou esquece
o riso e torna a pensar
nas contas a pagar, no engarrafamento
e no que vai comer
em casa), as coisas
são palpáveis e orbitam num tempo
circular que afasta
qualquer abstração no que elas
passam batendo pelos muros da memória
e afinam em seu corpo, ao longo
das fibras da carne, as cordas sempre tensas
da mágoa e da tristeza, ou da alegria, é assim
mesmo e nesse mesmo instante
que me lembro.
1/09/2008
Buscas (caminhos pelos quais se pode chegar a um blog de poesia...)
coceira no ânus,
garotas peladas,
filme que termina com homem
saindo de dentro da baleia,
oração taoísta, não
estou dizendo que
você é vulgar,
fissuras na língua,
síndrome do pequeno poder,
vômito amarelo,
perpedra,
símbolo, todo bem
tem um lado mau e todo
mau tem um lado
do bem,
poesia,
moças fodendo,
aldemar norek,
linguagem epistolar,
significado
do nome (...), autismo,
felinos assassinos,
fenomenologia visita cidade,
fotos de afta na lateral
da língua, uma poesia
com o nome Giovana,
daniel f.,
psicografias,
escada caracol metal
ponta grossa,
poesia,
a linguagem dos navios,
poema foda-se, orações
da prosperidade,
qualquer coisa:
e a poesia
não sabe
o que acha
e o que perde
no meio das coisas
todas
tontas.
1/07/2008
O novo ano chega com o chiado atrapalhando a voz no telefone.
Ele me chama como um bicho assustado que passou a madrugada exposto ao orvalho. Mas é das lágrimas que caem em meus sapatos como areia descendo a ampulheta, e eu sou pesado, quase impossível de carregar, melhor me virar sozinho, até porque menti quando pensei em areia, deveria ter falado numa ampulheta com cimento.
Ela diz que quando seus cabelos caírem vai se mudar para uma casinha escondida num condomínio de Brasília. Medo da morte: vergonha de viver. Ou a dor no corpo mesmo, que leva ao desabrigo.
Ela puxa o ar com violência, chorar acaba com o fôlego de qualquer um, e em cada respiração é uma parte da minha alma que desce pelas rodas dentadas do aparelho. Mas a minha alma é figura de linguagem, como todo o resto. A alma é o meu sintoma neurótico
da mesma forma que
Jesus é o sintoma neurótico de Moisés
A grama é o sintoma neurótico do esterco
A história é o sintoma neurótico do tempo
O câncer é o sintoma neurótico da vida
E eu sou o sintoma neurótico daqueles que me amam.
1/03/2008
Aproximação a Cummings
Ó espontânea e doce
terra quantas vezes
insípidos
percucientes filósofos apalparam
e perfuraram
teu dorso
,indigitados indicadores
da ciência profanaram
tua
beleza .quantas
vezes a religão te prostrou
sob ásperos joelhos
esmagando-te e
esbofeteando-te quais teus mais venerados
deuses
(mas
a par
do incomparável
toque da morte teu
rítmico
amante
replicaste
apenas com a