7/31/2009

O dia em que a Hiena do Cati assombrou a Rua do Ouvidor. (A Federação, Porto Alegre, 19/09/1905)

Quem diria a hiena do Cati ao chegar ao Rio causou o frisson de um sanguinário degolador, sedentos instintos brutais resguardados em moderna fortaleza medieval, na aridez gelada da fronteira sul, na paisagem do rio de mijo, das árvores cujos galhos são ossos humanos, das pétalas de flores que são dentes de hienas, onde os suicidas recorrem ao método feroz da autodegola

(reza a lenda a hiena arranca dentes, capa, degola e estupra inimigos, depois manda os soldados montarem acampamento sobre os cadáveres pra se acostumarem, estoicamente, ao cheiro da morte)

Quem diria a hiena do Cati, neste momento aqui entre nós não destoa do delicioso Chateu D’Yquem, do soberbo Mouton Rotschild e do lubrificante Bourgogne, aqui, entre estas taças o monstro lendário fica ridículo diante do homem

Quem diria a hiena do Cati veio ao Rio e se fez amigo do soberbo, delicioso e lubrificante Coelho Netto, quem vê a hiena nestes espelhos que se desdobram se misturam se multiplicam soberba e deliciosamente a lubrificante figura da hiena sorri feliz, brindemos aliviados, então o “monstro” é este homem!

Ele, o criador do mais moderno valhacouto de degoladores fala, com propriedade, de Zenão e Marco Aurélio? Ele, que já dormiu sobre corpos em decomposição, reconhece os mais finos perfumes? Um feroz criminoso lombrosiano, da mais baixa espécie? Um patriota? Um empresário e escritor?

Hoje, entre estes espelhos, uma lenda morreu, para o bem da humanidade.

7/27/2009

Trajeto




Entrar (, violento, abrupto como cápsula
de metal, nave que incandesce enquanto
cai no ar denso, metáfora brilhando
rubra na escuridão do céu, diáspora
em que não se sai, antes se mergulha
no nada até rebentar no chão qual
semente e, assim, germinar) no real,
cair (, precipitar-se numa fuga
pelo abismo, voluntário mau passo
no vazio, deixando o chão que o arranha-
céu alçou, artificial e estranha-
mente, ao antes impossível espaço
dos pássaros, verter-se até o fim
como quem não vai se encontrar) em si.

Beleza

A beleza
Agride como a paz, como um dia
De luz cortante como lâmina fria
Após uma noite de sono profundo,
Como alguém conversa
E te escuta, profundamente, ali está
A beleza, confunde como quem te conhece
E não te leva a sério, docemente.

Ali está você, olhando pra dentro e pra fora
Sem saber como dizer
Porque a beleza, sem pedir licença,
Decidiu capturar os seus olhos.

A beleza tira o fôlego
Do travesseiro quando você
Chega em casa, e te divide entre
A rua, neste momento vazia, e a solidão.

A beleza te deixa desabrigado
E você bem gostaria que a sua casa
Fosse um hotel, qualquer coisa
A beleza te convida
A deixar-se ir, a fantasiar-se, a sumir
A ser esquecido, a ter o nome apagado
Dos documentos.

A beleza
Cabelos molhados como flores
De um amarelo translúcido
Não colhidas e jamais encarceradas
Em cones plásticos, nunca vendidas
Nem expostas em vitrines frias.

A beleza não anestesia
Nem convoca um batalhão de idéias,
Não é uma confirmação
Do socialmente aceito como beleza,

Flora, as pessoas renegam a beleza
Que eu preferia não ter conhecido
E mudam de assunto.

A beleza fere.

Publicitários não entendem
De beleza, belas palavras não são
Beleza, paisagem não é beleza
Beleza não é um jargão.
Beleza não se veste de vermelho,
Não procura cores gritantes
Nem precisa de cumplicidade ou confirmação,
Ou suspiros que são como legendas
Derrotadas de um filme

Mudo. A beleza não
Fala.

A beleza escolhe o azul
Dança de azul, a beleza não faz questão
De ser bela, a beleza não fala, apenas dança e some
Quando sua festa acaba.

7/22/2009

"Well, my mother told my father,
just before I was born,
I got a boy child's comin,
He's gonna be, he's gonna be a rollin stone"

Muddy Waters

"Você há de rolar como as pedras que rolam
na estrada."

Lupicínio Rodrigues


Ao contrário do que parece,
Meu irmão é leve.
O que puxa uma sensação de peso para o centro
É a extensão de sua voz.
O que puxa uma sensação de peso para o centro
É a dinâmica dos gestos, de aceno a soco.
O que puxa uma sensação de peso para o centro

São os dentes, quando ele ri ou ameaça,
Como se eles tivessem sido polidos no rio
De pedras.
O que puxa uma sensação de peso para o centro
São os endereços trocados por engano.
O estado de alerta, as garrafas de cerveja
Jogadas no palco porque a banda não presta.

Mas no centro nada.
No fundo eu e meu irmão somos dois vácuos
Que produzem o próprio peso.

Como não podemos ser exatos – a leveza desgoverna –
Acreditamos em fantasmas ou anjos ou lobisomens
E esperamos o Milagre, vagando por aí.

Nós mesmos somos, por dentro, fantasmas sem contorno,
Escondidos sob o pano branco onde se desenham rostos que são máscaras
De raiva e alegria e tatuagens,
Anjos que apenas são asas se desfazendo sob o sol,
Naquele instante antes da queda.

Ao contrário de nossa leveza,
Acreditamos que nascemos como pedras que caem.

7/18/2009

o que é a poesia?

Depois que os pais morreram
voltou à sua cidade
para vender a casa antiga
onde passou parte da infância

cambiou a quantia obtida na venda
por euros
e transferiu o montante para sua conta
em Bruxelas

onde vivia num pequeno estúdio
alugado, 3 peças dando para os fundos
o que tornava muito silencioso
estar ali, exceto
nos dias de chuva quando as gotas
tamborilavam nas folhas
de zinco sobre a varanda

no ano passado foi encontrado
morto, um assassinato sem pistas que
deixou a polícia aturdida

mas a chuva
nas tardes em que chove
ainda reverbera no telhado
de zinco a sua música
apenas abafada pelos
relâmpagos, quando isso
acontece.

7/14/2009

Por dentro, por fora







Vivendo como um pária, neste exílio
de uma pátria que não existe, a não
ser na mais absurda alucinação,
nenhum dia traduz o seu sentido.
Mas isso é por dentro: além do corpo,
mundo afora, as coisas seguem normais
em seu destino, superficiais
até o limite e assim é o mundo todo.
Só que isto é por fora: sob estas coisas,
sob a pele das coisas arde um tal
incêndio, uma inconstância, um vago mal
estar sem ponto fixo, entre as doidas
vertigens da espiral que é pensar,
via inútil entre tudo o que há.

7/04/2009

Nenhum mar (trecho)




Give it away

Red Hot Chili Pepers

Language is a virus...

W.S. Burroughs

1.

falando às estantes do sebo, às seis,

a porta de enrolar desce forçada

e arranha meu destino e meus ouvidos.

Lanço o corpo na rua em meio aos gases

e a fumaça do que penso me intoxica:

se até deus é abismo, eu tento em vão

não pensar em mais nada, e meus amigos,

as mãos nos bolsos, muitos sem emprego,


seguem sem esperança ou direção

(alguns nas dobras da burocracia).

Os tempos que virão nada de meu

terão, porque já dormem loteados

por mercados futuros e outros lances,

nem me seduz o bonde que me leva

a um futuro já colonizado,

mas sigo em frente mesmo sendo eu mesmo.


De pé no cruzamento da avenida

falando com o relógio digital,

Copacabana ruge e cospe cinza

e ele marca 39 graus.

São quase seis e quinze, os carros passam,

ele parece não me ouvir nem ver,

esfinge de metal e sem enigma.

Pergunto pra ninguém, feito um babaca:


pra onde foram todos os hidrantes

e certas pulsações da minha infância

que se perdeu nas dobras da cidade?

Não vou surfar de volta pro passado

porque é lá que não me reconheço,

de lá não sou quem parte pro futuro

pra me encontrar aqui desencontrado

à espera de zarpar, e nenhum mar.

Flip, Chico, eu, ausência e mais o vazio


- observem:
faz tempo que eu
aqui me encontro
ausente


vejam bem
alguém ausente
ainda é algo
que é lembrado
como o esgoto
a casca de banana
e as formigas
nem sempre as vemos
mas estão cá, lá, acolá
e estão vivas


como disse Chico
no (a) Flip:
- escrever é uma chatice!
prefiro ler
(eu) prefiro ler
e Borges também disse isso.
somos cópias das cópias
das cópias
e Caetano também disse isso.

não estou mais aqui
porque estou
ausente
frio
longe
vivo
perplexo
morto

tão perto do vazio.