12/21/2009

Elegia ao CPF defunto

Pra onde vão
os CPFs dos mortos?

Números cheios de júbilo
ou vergonha,
às vezes rodas metálicas dentadas,
ou orgânicos e doloridos dentes finos e afiados
de quando em quando números mordidos, dilacerados
em praça pública, agora
calados – eles que foram como retratos
abstratos de nossos dorians grays interiores,
eles que gozaram e nunca souberam
o motivo do gozo, eles que brincaram
como bichinhos de estimação ao teu redor, eles que franquearam
o acesso a todo tipo de comida e embriaguez,
eles que se exibiram na tua indignidade
diante de todos, na loja de filtros, na cia
telefônica, no self service – carapuças
tão ajustadas ao nosso ego quanto o elmo
de dom quixote, logins para o id, do id –
o login da sua identidade, e estes números
não, estes números têm cu
e podem cagar sobre o meu nome
como perversas consciências morais.

Pra onde vão estes números ;
a seqüência singular e sua aura–
pode a distância entre duas estrelas e a terra
ser a mesma, pode se repetir
a combinação de um sorteio lotérico,
mas o CPF não, ele é tão exclusivo quanto você
e seu cadáver e seus algarismos,
onde vão parar estes não mortos,
exatamente, mas indisponíveis
números melancólicos, esquecidos
ou, pior, transplantados por vis falsários
que recorrem às imunidades dos zumbis
até se tornarem alvo fácil e rotineiro das perseguições
policiais e das risadas de um William Bonner qualquer.

E aquela combinação
única, aquele encaixe perfeito
e memorizável de uns e oitos e cincos não tem mais uso
e o mais absurdo: não morre na mesma hora que o morto
vai mais tarde, depois das últimas transferências
nas derradeiras seqüelas das heranças
nos últimos giros bancários, nos registros
que pulam, rodam, tremem no pós-morte como corpos de galinhas
recém-decepadas.

Sim, onde irão parar
O meu e o teu CPF quando tua e minha alma
Nada forem além de carniças? Em meus sonhos
vejo a vida secreta do guardião
amoroso dos números perdidos
por excesso de delicadeza, sua pele
tem um tom esverdeado, seus olhos são sensíveis
à luz, ele habita o arquivo morto, tem uma relação
erótica com as manivelas que movimentam
as estantes, sabe onde estão os velhos
enfeites de natal e nos feriados os usa no pescoço
como colares havaianos, domina os registros de compra
de umidificadores pra residência do senhor ministro,
e, claro, lembra de cor e salteado
onde jazem, inertes, os CPFs dos falecidos
indivíduos,
porque a Ordem
repudia dois raios que caem no mesmo lugar
defenestra irmãos siameses
impõe aos números uma vida limitada
mortal e antinatural, tal como
a de seus proprietários, a Ordem, meus senhores,
exige o tempo irreversível.

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