11/08/2011

Sua história não é minha (uma carta)

1.
Nada mais assegura a integridade do eu

do que a composição orgânica única e refinada que o sustenta e faz de cada corpo uma totalidade reconhecível no mundo, entre outros. Isso, apesar de a pele descamar constantemente, os fios de cabelo descerem pelo ralo, o sangue sair da aorta na velocidade de um conversível esportivo (vide a echarpe de Isadora Duncan presa nas rodas do veículo) –

p. ex. leio as palavras impressas num livro qualquer e é como se elas não entrassem olhos adentro perfurando o cérebro; não, elas fazem uma curva ao redor do meu crânio, são como o vento, circundam a cabeça, o pescoço: a integridade

fictícia

do corpo.


2.
Querida família:

Andar de Jet Ski nas bordas de uma privada de luxo no Terminal Rodoviário de EsgotoCity, usar as fezes expelidas pelos intestinos irritados dos viajantes como creme de proteção solar, o catarro das Múmias entubadas do cu ao nariz nas catacumbas cheias de esqueletos à guisa de loção pós-barba para a night na boate, a cruz de prata usada pelo Capuchinho Cavazzi num ritual de exorcismo serve de colherinha pra adoçar o capuccino numa tarde em Casablanca, igual ao Steven Seagal recorrer ao cartão de crédito como estilete para cortar o pescoço do guardador de carro do estacionamento, algas marinhas na cabeça fazendo uma peruca, concreto armado por dentro do terno – só pra manter a atitude. Sai caro, mas vale a pena.


3.
O seu passado

não me pertence, nem sei onde eu estava quando meu passado aconteceu ou quem era aquele com ar de ausente na fotografia, não sinto calor algum no simples fato de empunharmos um álbum de fotografia como se fosse um salvo-conduto e um domingo dedicado a tais memórias não seria inspirador, enfim, venho por meio desta pra dizer porque não irei ao encontro e nem me sinto compelido a agradecer

não sou dos seus, ainda assim me empenho a explicar: entre vocês sou um estranho sem nome que caiu de pára-quedas, um figurante que atravessa o melodrama e a heráldica com olhos vidrados, perdidos & sempre que digo feliz natal bom ano novo o faço

M-A-Q-U-I-N-A-L-M-E-N-T-E

4 comentários:

Mar Becker disse...

Bah, que baita texto, tchê... Tenho trocentas coisas pra fazer, mas comecei a ler este e não deu pra parar.

Na primeira parte, a integridade (fictícia) do eu. Na segunda, a coisificação dos pedaços do eu (sai caro, mas vale a pena)... Na terceira, um não-lugar para tudo isso, para esse não-tudo isso.

Gostei demais deste, Daniel.
Um beijo,
Marceli

Mar Becker disse...

PS - Não sei se há relação entre as partes, suponho que sim; acho que, se há, entre a segunda e a terceira é mais evidente, mas não sei...

Mar Becker disse...

Daniel, posso publicar este no De Ter de Onde se Ir?
Se sim, aguardo envio pelo e-mail!

Daniel F disse...

Oi Mar,

acho que tem sim uma relação entre as partes. não é linear mesmo. mas todas, em modos diferentes, giram em torno do tema de que eu não faço parte da minha própria história.