1/28/2012

Mais espelhos do tempo

24.
Estranha sensação. Ou melhor, estranha ausência de palavras para uma sensação. Tédio, como o de um físico que vai descobrindo que sempre há uma partícula menor por dentro da partícula que parecia ser a menor existente no universo e, se no começo uma coisa dessas pode causar vertigem, exaltação e melancolia, no fim das contas é tédio sobre tédio. Tanta novidade sob o sol: o cosmos é como o jogo de espelhos da confeitaria Colombo e seus turistas. E ainda assim, ao mesmo tempo, a vida passa rápido demais, é tão veloz quanto o que chamamos de presente: o instante em que a imagem de um fantasma vai de um espelho a outro e é devolvida, em menor escala, a outro espelho refletido no primeiro e volta novamente ao segundo espelho, ainda menor e assim por diante até mergulhar no vazio do último reflexo no menor e invisível dos espelhos criado pelo jogo de cena. Mas nos ensinaram que não existe um tédio veloz (já que mente vazia, oficina do diabo). E outro alguém diria que se trata de duas sensações misturadas, quando de fato estamos falando de uma única, indecomponível sensação.
25.
Quando o tempo é um calabouço de paredes espelhadas que se fecham. Reflexos cada vez mais nítidos na sua asfixia, à espera de quando os ossos começarão a se quebrar.

1/24/2012

Em meio ao sono mais profundo você desperta assustado e abre os olhos e enxerga vultos respira fundo e adormece novamente, apagando-se às margens da vida. Esse é o seu grande privilégio: meus olhos são os olhos da noite, você diz a si mesmo apegado nesse breve intervalo, as pedras não suportariam o próprio peso se não tivessem nome e a indescritível obscuridade de tudo sem um relance – a potência das coisas de serem vistas se consagra na brevidade dos meus olhos. Gerações e gerações todas assim, vivendo de intervalos, feitas às pressas, me deixaram esse maravilhoso instrumento com que me consolo: a verdade é um piscar de olhos. Sei quem sou e qual é o meu papel num cenário em que minha grande contribuição é respirar. Deus me fez para que eu testemunhasse tudo e ele se apaixona em suas criaturas quando despejo MINHAS palavras sobre elas. Murmuro, balbucio fragmentos: talvez nem mesmo garatujas: quem sabe nossas palavras vaguem por aí como aqueles animais absurdos do fundo do oceano: isto é: se houver uma inteligência nisso tudo. Tudo é completamente distorcido pela compressão do Absoluto num instante, intuímos.

1/21/2012

nº 95

(imagem colhida no blog http://interessantte.blogspot.com, onde não há autoria mencionada)




A síntese de sua vida
é um móbile, décadas
perdidas dançam suspensas
dando voltas sem sentido
e cada uma é um buraco
negro, matéria
concentrada, memória feita
precipício, espelho fosco, oráculo
que não revela,
e dia após dia você raspa
com as unhas o nitrato
de prata sob o vidro
quando se debate, nas horas
livres da catalepsia que nos cabe
a cada dia,
querendo amalgamar com ele a bala
que lhe atravessasse
o peito, enquanto as décadas exibem
transparências que você forjou
sangrando os dedos, no escuro
de mais uma noite absurda
deste século vomitado
pelos outros.

Memória é mesmo o lugar das coisas mortas.




(das 'Notas Marginais')

1/18/2012

Novos espelhos do tempo

22.
Um tiro de 22 no ouvido não é uma boa idéia. A bala bate no rochedo, ricocheteia e estraçalha os tímpanos. De 45 a bala atravessa o crânio e sai do outro lado: desperdício. O revólver encostado na mandíbula, apontado para cima: tem muito osso no caminho do projétil até o cérebro. O ideal é encostar o cano no céu da boca.
Abre a janela, fecha a janela. Verificar se a porta está trancada. Saltar, com pára-quedas, do terceiro andar.
Tempo é energia sem objetivo.
23.
Me julgam porque sou sozinho. Eu mesmo construí meu túmulo, espelhado por fora. Diagramas, vetores, olhares e vozes: reflexos. Janelas que se abrem para o muro. Corações emparedados. Aquário de demônios que atiram facas pelos olhos. Anjos tremem de medo por estar entre os senhores. Meu crânio poderia ser um globo terrestre. Tudo não passa de ilusão projetiva, sobretudo o espaço, as nuvens e o mau tempo. Doei minha alma para um laboratório psiquiátrico.
A não ser pelo fato de que o tempo devora inclusive os invisíveis.

1/12/2012

Mais espelhos do tempo

19.
Aos poucos, a chuva pára de cair. Nada é súbito. Gotas batem, arrítmicas, contra o vidro da janela. As rodas dos carros deslizam sobre o asfalto espargindo o que ainda resta de água. Espelho de pássaros (que cantam porque têm fome). Tem dias em que o tempo é lento e determinado, implacável:
Não tenho pressa. A sua hora vai chegar.
20.
Logo após escrever o número 19, saio de casa, para dar uma carona para minha irmã mais nova. Quanto mais me aproximo do lugar onde ela está, a chuva piora. Minha irmã está naquela fase da vida quando o sujeito precisa mostrar merecer as migalhas de felicidade jogadas do céu por Oito-Olhos. Uma densidade encobre o horizonte, deixa tudo numa cor de branco apagado, coeso (uma brancura opressora, indecifrável). A realidade deixa de ser visível, é tátil e brutal: as gotas da chuva oblíqua como luvas de pelica com que o tempo dá tapas nas sensações. O tempo às vezes é um espelho nublado mudando constantemente de figura (sem nunca perder a agressividade). O tempo é emocionalmente instável, talvez devido aos excessos cometidos durante sua gestação.
De qualquer modo, não é aconselhável fazer generalizações sobre o tempo.
21.
O deus azul inexistente vomita um arco-íris: muralhas da cidade quando aprender a ser livre. Há pequenas utopias coloridas piscando na janela, reflexos das luzes de natal aos olhos da menina:

Arrancar
Com seriedade
A alegria enterrada
No jardim das flores frias
E das latas de cerveja.

Resgatar
Os livros trancafiados
Em estantes de metal
Que acumulam
Insetos e invernos,

Abrir
Suas páginas contra
O sol: jogo de espelhos
Para um arco-íris sem razão.

1/08/2012

à sombra do rei taumaturgo

brota a flor incerta, tateando a terra
a máquina bruta movida a dor a suga

brota a flor, labaredas pétalas
a máquina bruta movida a dor a suga

brota a flor, suave carne
a máquina bruta movida a dor a suga

brota a flor, traços de nanquim
a máquina bruta movida a dor a suga

brota a flor, água explosiva
a máquina bruta movida a dor a suga

brota a flor, dentes pétalas
a máquina bruta movida a dor a suga

brota a flor, terra ascendente que se dissolve
a máquina bruta movida a dor a suga

brota a flor, seiva de lágrima
a máquina bruta movida a dor a suga

brota a flor, animal flecha ao alto
a máquina bruta movida a dor a suga

brota a flor, por onde anjos falam
a máquina bruta movida a dor a suga

brota a flor brota a flor brota
a máquina bruta movida a dor a suga
a máquina bruta movida a dor a suga
a máquina bruta movida a dor a suga
a máquina bruta movida a dor a suga


rei besta fera, aborto com flores tatuadas na pele.

1/06/2012

Não sou nem quero ser poeta

Não sou e nem quero ser poeta. Não tenho facilidade com palavras e nem sei dizer coisas bonitas. Meu pai quando bebe, mesmo um pouco, já gagueja e quando eu era criança fui um dos únicos na sala de aula a não reconhecer meu nome escrito na cadeira que me tinham reservado. Também não sei inventar nada. Não sou criativo. As palavras não são como nos dá a entender o dicionário. Dicionário é pura meia verdade. O que mantém as palavras ativas é a força empregada na sua criação e na sua condução – por homens feitos às pressas, inúmeros, a perder de vista no fundo do tempo e além. Palavras são destino. No sentido de caminho. No sentido de ponto de chegada. No sentido de maldição. Você nasce num mundo em que há mais palavras no ar do que oxigênio, mais do que microorganismos hostis. As palavras não pedem licença: vão entrando e substituem o puro vazio da sua mente, a força sem destino que é seu íntimo, por uma superfície que lembra uma forma, parece uma coerência, faz pensar numa figura. Meias verdades. Ai de quem acreditar mais nas palavras que na vida – e sei bem em que paradoxo estou me metendo, afinal de contas vida é apenas mais uma palavra. Palavras são fortes, em conjunto, embora ínfimas quando isoladas, frágeis como vírus. Meias formas de vida. Elas corroem, espicaçam, alfinetam, ferem, fazem você dizer bobagens e fingir acreditar em si – quando é nelas que você acredita. Palavras inoculam certezas e outras variantes menos nítidas de veneno. Essa luta ínfima e cotidiana contra elas é o que chamo de espiritualidade. Não sou nem quero ser poeta: tudo o que sei é que quando escrevo fico menos ansioso – por algumas horas.

1/03/2012

O perigo da rede social para os poetas

Meu pressuposto é o de que há uma boa dose de anti-sociabilidade em ser poeta, porque ser poeta é uma descortesia com a camada de conversa fiada que mantém a sociabilidade (pelo menos a atual, que tem como mola propulsora os reclames publicitários). É difícil encontrar pessoas mais orgulhosas do que entre aquelas que pretendem ser escritoras, eu diria até umbiguistas – acreditar que com a escrita você vai além do disciplinar é, de qualquer maneira, querer demais. Mas, ou exatamente por isso, e isso é um tema comentado exaustivamente por todo tipo de escritor: esse mesmo sujeito orgulhoso se comove como o mais sentimentalista dos publicitários diante de qualquer elogio. E quando digo qualquer elogio, é qualquer mesmo. Cada elogio tem um sabor próprio: o chamado elogio consistente, feito por um crítico ou escritor reconhecido (essa palavra é o X da questão, por sinal), o elogio do chamado leitor comum – o fato de estarmos falando de figuras míticas não diminui o impacto afetivo da coisa, muito pelo contrário. O facebook tem um negocinho maldito, o tal do botãozinho curtir. Mas, isso tudo não é coisa só da internet. Um elogio feito à escrita, em qualquer situação, parece ser algo poderosíssimo, o que no fundo revela a imensa fragilidade e solidão do ato de escrever gratuitamente: o caso extremo é daquela pessoa antes considerada uma anta, uma capivara, qualquer um desses animais que tornam o homem mais garboso e saciado à sua vista, que depois de elogiar o poeta passa a ter algum valor, uma percepção aguda, uma sensibilidade especial. Sabe, no fundo ele não é tão idiota assim. E quanto a toda essa babaquice em torno de animais e metáforas pra burrice, é bom lembrar que quase todos os escritores preferem ser considerados homicidas a burros. Se quiserem chamar isso de doença, tem outro nome clichê: narcisismo. Outro dado que aponta para a força da questão (e vamos dizer que as palavras escritor e autor podem ser, elas mesmas, os agentes causadores da moléstia): poucos escritores não sucumbem ao próprio sucesso, e não chamo de sucesso aqui a obra bem realizada - necessariamente. Kerouac é um estilo: decadência lastimável simultânea ao reconhecimento. Rawet: reconhecimento fulgurante seguido de queda irremissível na solidão mais amargurada – os elogios mais como lembrança do elogio perdido. Outro estilo: Graciliano Ramos e Clarice Lispector (essa, naquela conhecida entrevista na TV cultura) – tipos que assumem o sarcasmo, o distanciamento forçado e mesmo a hostilidade diante da horda de elogiadores, como se isso fosse uma espécie de instinto de defesa. Fazendo coisas que o pensamento burguês chamaria de mal-educadas e que o mesmo pensamento burguês vê como idiossincrasias de artista. Esse parece ser o caso mais corriqueiro. Outro estilo ainda dá naquele espetáculo lamentável de quando o escritor vê que uma coisa, uma pegada, uma frase de efeito funciona e começa a agir como um animal de circo, uma foca viciada em aplausos – novamente os animais. O que é quase a mesma coisa de quando se trata do círculo de autoelogiadores – e como bastam 2 pessoas pra se fazer a presença de Deus, imaginem a força de mútuos e interesseiros elogios... Esses últimos exemplos reforçam a sensação da lucidez dos que optam pelo sarcasmo: porque parece que o elogio turva a percepção. A não ser que o próprio sarcasmo faça parte do showzinho lamentável... O que fazer, porém, se quem escreve quer ser lido?
Estarei exagerando ao tomar esses exemplos para falar de blogueiros, poetas de facebook e orkut? Olha aí os entraves do reconhecimento. Mas, não vou deixar de pensar a questão por conta disso. E vou até citar um caso pessoal – que aliás, não impressionou apenas a mim. Não quero relembrar uma história deprimente: mas apenas notar a impressão que causou o fato de textos com zero comentário no blog em que publico (e não somente meus) terem recebidos 10, às vezes 20 comentários com elogios retumbantes, quando apareceram em outro blog, como se fossem de outro autor. Você sabe, conversamos na época, a internet é antes de tudo uma rede social, tudo é uma questão de link e reciprocidade, simpatia. Mesmo assim, rolou aquilo que um psicanalista chamaria de ferida narcísica. A ambigüidade de, de repente, começar a acreditar no próprio valor – mesmo que os elogiadores em questão fossem em outros momentos considerados mais capivaras do que consistentes e ao mesmo tempo se sentir invadido, roubado, saqueado, por uma capivara de bom gosto. É tudo muito sórdido, como vocês estão vendo.
E o botão de curtir no facebook? É toda uma outra história, outra fenomenologia se assim preferirem. A minha experiência é parecida com a do blog: escassos fulano curtiu, mas suficientes para fazerem aquela pequena explosão: eu tenho futuro. Ou, no caso contrário, para eu desconfiar de um texto de que gostei muito, ninguém curtiu – então deve ser uma merda. Ora, ora: mas então o que fazer com o sem número de merdas, não de minha autoria é claro, que vejo outros curtindo por aí. É tudo uma curtição sem fim, somos mais curtidos que couro de boi. Meu orgulho talvez seja o responsável por eu concluir isso: mas, acho que o ninguém curtiu talvez seja a salvação. O perigo, poetas internautas, pode ser quando curtem. Se ninguém curte, se o blog tem zero comments e você continua escrevendo: bem, é uma forma de manter a espontaneidade. Observando figuras que freqüentam as mesmas redes sociais que eu, e dentre as quais está o Sr Daniel Faria, noto que: às vezes, o fulano curtiu não é a meta, é um subproduto, a chamada cereja do bolo, às vezes é o motor da história. Em todo caso, é de uma vulgaridade a toda prova (no segundo caso, vulgaridade a que se soma a demagogia – o que, além de melancolia, dá ânsia de vômito). Uma vez me chamaram de gênio e o próprio fato de eu ter escrito isso é um sinal de perda de pureza e integridade.