4/07/2012

A sanfona fumegante. Um testemunho.

Não acredito, de novo parabéns pra você vindo dos vizinhos. São mulheres cantando: vozes de coro de igreja encefálica, de lavadoras de roupa asfáltico-esquelética, de gralhas roxas. Eu fecho os olhos e é como se a luz continuasse por dentro das pálpebras. Elas têm sangue, as pálpebras, e no entanto nunca vi um vampiro que as mordesse. Não faço questão de dizer que sou feliz, como as velhas do apartamento vizinho. Seriam bruxas? Suas vozes dançam na névoa que eu mesmo criei pra me esquecer que isso tudo é real. Elas gostam de canções românticas e uma delas, em especial, parece acreditar que canta bem. As outras aplaudem. Quero mergulhar no blues. Não sei o que o sol vem fazer em Brasília, num sábado à tarde. Eu também gosto de canções românticas, mas outras. Do tipo que ninguém ouve. Eu queria casar bem cedo, Manuela – o som picotado porque o cd é pirata e a gravação é vagabunda.

Minha coluna vertebral sopra alguma coisa no meu crânio, meu cérebro é um balão, um anjo acaba de se achegar e tragar a fumaça que sai de minha orelha. As vozes das velhas cantando parabéns para você é um revestimento melancólico para o meu balão que voa por Brasília – literalmente, já que moro no terceiro andar. Isso é o que me faz pensar na palavra enfurecido. A fúria é alguma coisa queimando na cabeça, produzindo fumaça. Começo a me irritar com o som que não funciona, sopro fumaça pela orelha, os anjos devem usar isso pra poder cantar em algum lugar que não aqui e então, se não posso dizer que estou exatamente calmo, estou leve como quem voasse pro ar rarefeito onde a calma repousa.

Me chamem de e.t, sem noção, lugar-comum, gasparzinho o fantasma camarada.

2 comentários:

Mar Becker disse...

a cabeça, um sistema de calefação.
só que a espessura das meninges, veja bem:

nada da genética dos anjos.

gelatinosas, estão prestes a se fender, a formar abismos por onde vaza

creme de leite.

massa cinzenta.


É demais o poder que o teu texto tem de puxar o leitor pela mão e colocá-lo no meio da formação de uma aisthesis inaudita, vivíssima;

uma bolha de sabão mental cuja parede reflete gente BATENDO

PALMA!

Eu fiquei pra morrer. Me tira do quarto em que essa penca de gente está faz quinhentos anos, num parabéns bumerânguico, que vem e vai.

Excelente.
Mar

Mar Becker disse...

O interessante é que parece que aqui há saída: "sopro fumaça pela orelha", "estou leve como quem voasse",

mas tudo tão por um fio que (citando a poeta Lara Amaral, que gosto muito tbm) se torna "bomba de breve pavio".