Quando você é vulgar: apenas negocia convenções, não domina os segredos, qualquer um pode dizer que árvore é o nome de uma cidade, que cidade é o nome de uma arma, que arma é um sentimento, que sentimento é o nome de um faraó. A língua epistolar é a conversa vulgar no desentendimento, mesmo que este ocasione encontros repentinos e imprevistos. É quando uma criança autista diz pra você: se o mundo gira, porque você não fica tonto?
4/27/2012
Seu Cu
Eu nunca pude lembrar de você.
Nem no instante em que te via
As imagens encaixavam.
Não sabia o que dizer
Quando perguntavam se você era bonita.
Porque você mesma, completa, inteira,
Não havia.
Seu nariz violenta a dimensão
Dos olhos, pincelados a esmo no oliva do rosto.
Os quadris puxam duas pernas
Pelas tribais entre serpentes,
Aparentando grande esforço.
Teu torso tem tal textura ao toque,
As coxas têm outra -
Seu aço cirúrgico fura a carne
Sugerindo ligações galvânicas
Com traçados que os relâmpagos não repetem direito
E o coração
É alado, tatuado no peito.
O resultado, que se pode ver nas fotos
Cada vez é diferente, de repente
Toma a frente um elemento
E rearranja de imediato todo o resto.
E assim ia a coisa
Até que um dia
Depois de abraços e sorrisos
Seus multilábios disseram, molhados:
"Olha,
Esse é meu cu."
Impedindo, deixando,
Contraindo, relaxando,
Fez sentir aquele pequeno trecho
Cada reflexo a manter unidos os gemidos de seus mil pedaços.
Do veludo eriçado da nuca em crepúsculo atrás das costas aos espasmos da mão na buceta, dos saltos de fôlego aos movimentos difíceis das pernas em decúbito, seu cu dava notícia, transmitia em ondas as mais sutis variações. Os fluxos nervosos de todo o seu corpo começam e terminam nessas bordas, e com o desabrochar das dobras pude sentir lá no fundo, pulsando como um centro de estrela, todo o amor que lhe faltava.
E ainda falta.
Mas hoje eu sei do que lembrar
Quando penso em você
Comprando pão na padaria
Rindo do espanto de quem fica te olhando
Pulando na pista que nem louca
Aos berros no meu ouvido
Dizendo ser minha amiga
Seus olhos rascunham um soslaio
Sua boca é um talho de cutelo
Onde os raios metálicos constelam sem jeito
O coração exangue desbotando sobre o peito
Mal-entendidos, polêmicas, revertérios
Serpentes nas pernas à deriva
É tudo uma grande zona.
Mas seu lindo cu
Sua malva sensitiva
É meu ponto de fuga
Que põe sua alma em perspectiva.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
8 comentários:
Escrever não é representar o narrável.
Escrever é tornar narrável o inenarrável.
Ser um escrevente não é ser um representante.
Ser um escrevente é ser um expressivo das forças desconhecidas.
Cartografar não é fazer escolhas pessoais.
Cartografar é perceber as linhas e seus movimentos, é perceber as forças que expressam os espasmos do tempo e criam as novas germinações.
Cartografar é perceber essas forças generosas que, inconscientemente, expressam esses espasmos e germinações para que os outros também os percebam.
Cartografar é ser afetado por essas forças e se tornar o pensamento de sua geologia.
Cartografar é, no limite, se integrar a essas forças como uma pequena parte delas.
concordo, Eliana.
Há o paradoxo de que essa escrita assertiva do seu comentário parece querer representar o ato de escrever,
como se fosse um gesto normativo, ao opor os não és aos és: ou os não deve ser assim aos deve ser assim. acho que é o paradoxo de toda definição, que pode recair numa espécie de "razão narrativa" que se pretende totalizante.
Não vejo uma saída pra esse paradoxo - então não estou fazendo essa observação como crítica. Não há nada de errado no paradoxo. Exceto quando ele aprisiona.
Uma possível saída pode ser fazer a afirmação entrar, ela também, no circuito da escrita e da criação. "Corromper" a filosofia e seus catálogos com a poesia. Criar quando se discorre sobre o criar.
Beijo.
Sim, Daniel, é um paradoxo libertador, algo como a proposição de Paulo Freire em relação à educação.
Acho que o Lois faz isso sempre, quando ele se "autoriza".
Pois é... como eu comentei com a Eliana, esse poema foi fruto da minha tentativa de me aproximar do que eu considero o 'estilo' da maioria dos poemas do LE... que então foi um intercessor para meu descentramento, um 'corrompimento' da representação que faço do estilo que tenha.
eu gostei.
essa coisa do estilo, tem um poema "aqui" que diz assim: "eu não tenho meu estilo. meu estilo é cheio de si".
Abraços
o cu de judas... acho que fica explicito demais... poderia ficar sem nomear... mas será?
Adoro essa coisa explicita, a coragem dela. Fica super sensual e inocente ao mesmo tempo.
Masé, pensei em dar outro título a ele, não por ser explícito ou não, mas pra gerar a surpresa quando a menção ao cu surgisse na fala da moça.
(Eu matutei bastante antes de chegar à versão final do poema - a primeira versão, inclusive, era mais uma estrutura que dizia o que escrever em que parte e como conectar uma parte na outra)
Mas não consegui achar nenhum outro título que tivesse essa inocência e essa coragem que a Eli comentou.
Postar um comentário