1/20/2007

Cenas de uma cidade qualquer 3

<>Chega em casa sorrateiramente felinamente andando sobre as águas
do chuveiro.
Presto não, prestíssimo insinua um movimento à janela, na cortina
desfecha um sonho emparedado de apartamento.
Tudo começa no microlabirinto corredor e suas 4 portas menos 1, a da rua.
A luz do abajur bate obliquamente como o olhar de capitu ou helena,
sabe-se lá.
Deitado no sofá, na gruta do sossego (autoconsumir-se não é inebriante)
ouve o canto das sirenes, o canto das caixas de supermercado, o canto dos vendedores de gás, fogo, veneno, fogão de quatro bocas, o canto dos canos de descarga.
Entre as paredes frias, ao tato, tiranos estupradores, sanguessugas especuladores,
conclui-se cosmocidadão encerrado no recesso do lar.
Também, como cicatrizar as feridas que não teve
a salvo, ali dentro, da chuva e das bombas que caem lá fora?
A esposa olhando cansada vai dormir. Ele olhando para trás,
pisando em ovos, vai à cozinha e pega a garrafa de conhaque
qualquer, pega o fone de ouvido e liga o som
Tu és o MDC da Minha Vida, ela não sabe que ele guardou esta canção
no PC. Ainda bem. O jovem casal de sociólogos não toleraria
tal demonstração de sentimentalismo, é o que ele diz a ela
citando Pierre Bourdieu no café da manhã.

Um comentário:

Aldemar Norek disse...

Cara, eu adoro esta música/fase do Raul ("Tu és o MDC da minha vida"). Esta aproximação com o brega te muito a ver com a tal opção estética de trabalhar com o lixo, com a fala cotidiana, com os restolhos....