1/30/2007

Cenas de uma cidade qualquer 5

<> O carinha recebe o alarme no interfone: estão aqui o crachá e a carta de aceite, tem que descer para pegar. Algumas portas serão abertas. Outras ficam à espera de novas escaladas. Ele rastejou no campo minado da guerra das citações, produtividade e qualidade total, usando um capacete rústico da Revolução dos Liberais Paulistas. Gestão flexível da humanidade (genuflexão, no dicionário de Adelino Magalhães). Na pizzaria ele pede o sabor sucesso literário, confiando no crédito (do crachá) na praça. Ele acha que nunca se trata de texto, sempre tem outra coisa em jogo (ou seja “euzinho aqui”, o eu lá dele, o chumbinho que manipula os dados) - pelo menos depois de ter contratado a agente literária, que apareceu na sorveteria usando um cinturão roxo, e disse a ela enfático e engasgado: aqui o barco bêbado é uma nota de rodapé literária na coluna social. Depois disse: como vamos anunciar minha obra? E ela entendeu que ele falava do barco bêbado. Depois disse: você tem contatos no jornalismo linha-de-frente? E ela entendeu que ele falava do barco bêbado. Depois o carinha disse: pode não parecer, mas sou profissional. E ela entendeu que ele falava do barco bêbado. Poeta bancando o esperto fica ainda mais estúpido. E ele explicou, não é nada disso, não sou um romântico, escrevo por falta de fazer, quero ganhar dinheiro com isso porque sou burro no resto, o ser humano é um inválido no cosmo, grito a favor da humildade (o poeta vem do humus). E ela pediu para ele falar no barco bêbado. Quanto custaria o tal barco? Ele perguntou se em reais ou dólares. Ela explicou, não, estava pensando no custo da insônia. Ele acusou, agora ela falava de modo não empresarial. Ela explicou: como vendemos sua poesia se as pessoas não acreditarem que você é poeta? Ele piou fino o milagre da mercadoria antipática. Em casa pôs a mão no peito chagásico e chorou apaixonado até as tripas encostado na parede, o infeliz enxugou as lágrimas no talão de cheques.
Na primeira entrevista já sabia o que ia dizer, o problema do Brasil é escritores demais, formiga sem antena vira canibal no império dos simuladores de talento, astutos que revelam suas frustrações por culpa da vaidade, a pessoa lê um livro e quer fazer igual, o autêntico poeta vive num campo minado, ninguém diferencia o verdadeiro do falso poeta, o público não sabe o que está perdendo, eu sou o salva-vidas da humanidade todinha, o cabo da raça. Aplausos. Desce o pano.
O carinha acorda no meio do sonho por causa do alarme: é a sua vez, a senha está acesa e soa três apitos sobre o balcão. Olha de lado para o guichê Atendimento Exclusivo. A musa MBA faz pano, o poeta dorme no piano. Ele se joga de pára-quedas do alto de um prédio de 3 andares.

4 comentários:

Haemocytometer Metzengerstein disse...

Qualquer semelhança com minha experiência na sala so Jorge Viveiros de Castro não é coincidência, mas é mera :)

Daniel F disse...

que experiencia? conta aí Lois

Daniel F disse...

esquece minha pergunta, é que às vezes sou meio lento...rs

Masé Lemos disse...

daniel, estou lendo o seu mito modernista!

e depois me conta sobre o ruffatto e literatura e vilencia

vc leu um artigo da heloisa buarque sobre o assunto?
marginais e intelectuias, está no portal literal

bjs