11/03/2008

Um cão agoniza na rua, em frente à janela da sala coletiva da unversidade onde uso o computador. Até me esqueço da tagarelice em pequenos chiados que me cercam aqui, em meio a esta estética decadente de computadores velhos como vestígios arqueológicos precoces, usados por muitas mãos. Porque o cão tem os olhos amarelos, a língua esbranquiçada e a respiração funda de quem morre lentamente. Dolorosamente. Sua pele lacerada deve estar cheia de carrapatos, eles têm o dorso tatuado com listras negras que formam pequenos roteiros geográficos, pontilhados de flores amarelas. A pele do cão está grudada no asfalto. Sei que nas poucas vezes em que ele tentou se movimentar, o asfalto arrancou um bom pedaço de couro, e mais uma ferida se abriu na pele do cão. Eu sinto a dor deste cão porque seus nervos se misturaram aos nervos do asfalto e o asfalto está ligado a mim por meio dos raios de calor constantemente jogados na minha cabeça. Eu sinto a dor deste cão e por alguns momentos sinto que sou este cão. Da mesma forma que o asfalto, o sol também brinca de arrancar a dor da minha pele. Também vivo lentamente, ou morro lentamente o que dá no mesmo.

5 comentários:

Aldemar Norek disse...

Interessante que te lido e pensado sobre isto: a indiferença (que é a contracorrente do seu texto).
De como ninguém mais se escandaliza com nada hoje (e não é de um ponto de vista moral que estou falando), e de qual o papel da arte nesta loucura toda - porque a arte, tendo virado espetáculo, e se valendo da só da antiga estratégia (desgastada ao extremo) das vanguardas, a de gerar escândalo (sendo que agora nada mais é escândalo),não tem muito a dizer - ou seja , este tipo de arte, onde a contestação na verdade é uma adesão, uma conformidade. Aí fica tudo parecendo um mesmo painel, onde a "poesia de invenção" (afinal, que porra é essa?) é uma reedição dos "sonetistas" vazios (como nada é absoluto mesmo, convém lembrar Augusto dos Anjos escrevendo sonetos não-vazios na mesma época), onde a contestação de certas posturas morais e éticas (ou valores) na verdade serve ao sistema (das coisas como estão aí, onde somos todos objetos, e aí tanto faz), onde a cidade nõ tem nada a dizer a nenhum de seus habitantes (a não ser que eles se isolem em guetos), e por aí vai.

Outro dia, ano passado, fui tomar umas cervejas com uma rapaziada bem legal que conheci, de um grupo de rap, de uma das maiores favelas daqui, a Favela da Maré (um complexo de favelas), onde tem todas as facções do crime e das milícias, como um loteamento de poder. Sentamos na avenida principal da favela, e aí eles me falaram que ali rolava às vezes algum tiroteio, e pessoas morriam - e que isso não despertava mais escândalo em ninguém. Passada a fase crítica das balas voando (perdidas ou não) as pessoas voltavam a se sentar e continuavam a beber suas cervejas com vista para os corpos das pessoas mortas, a pouca distância. Um deles me falou: "É um mundo louco, cara!". Tem razão.
grande abraço, Daniel!

Daniel F disse...

Oi Aldemar,

acho que é por aí mesmo. mas se esse texto aí vai na contracorrente da indiferença, tem uma certa incapacidade de fazer qualquer coisa. a perspectiva não deixa de ser a de um espectador.
antes eu tinha posto um ps, porque pensei nesse texto como uma alegoria em primeiro lugar. e vai continuar sendo. só não sei ao certo o que por no ps. Na primeira vez, pus: ps: o nome deste cão é uberlândia. mas sinceramente to de saco cheio do saco cheio que essa cidade vem me causando. então, melhor mudar de assunto. pensei num ps que ia conversar mais explicitamente com o seu poema: o nome deste cão é pensamento, é metafísica, ou até este cão é o anjo da história, talvez num lance meio sobrecarregado pela referencia ao anjo da historia do benjamin.

Mas, sei lá. resolvi deixar em aberto. Mas aceito dicas.

Abraço!

Daniel.

Aldemar Norek disse...

bem, sobre a indiferença - antigamente não fazer nada (por não querer, não saber como, não achar que é a pessoa adequada, etc) era indiferença. O fenômeno é mais acentuado hoje: não se percebe o outro, ou ele não tem a menor importância - estamos abandonando o que nos torma humanos.

gostei muito do ps explicitando que o cão é o pensamento, ou a metafísica. Não sei se a referência direta tiraria a força da alegoria (tipo: A significa B), mas agum tipo de mençã é bacana.

O Gullar tem uma frase bacana: a nossa vida é inventada. Muitas vezes acho que é assim mesmo, e pra isso é preciso pensamento, metafísica, utopia - justo as coisas que morrem nestes tempos de banalidade.

Uberlândia não é o único cu do mundo. Em muitos sentidos o Rio tbm é. Como todos os lugares do planeta - globalizaram isso tbm.

abração

ps. bacana saber que sua alegoria dialoga, mesmo que tangenciando, com aquele outro poema.....

Eliana Pougy disse...

Também acho que tem a perspectiva do espectador... parafraseando o Kafka, a gente precisa aprender a "escrever" como um cão... isso é que é difícil. Mas o texto está demais, como sempre.

Daniel F disse...

Oi Eliana e Aldemar,

pois é. mas nesse momento, essa é a minha posição, a de um espectador incapaz de mudar as coisas mais importantes da vida. hoje estou até entendendo melhor a expressão sobre a boca do estômago, estou sentindo um buraco na barriga, como se meu estômago tivesse abocanhado esse cão aí. Chamei de cão porque um dos gatos daqui de casa pensava mesmo que era um cachorro, mas, enfim, usei a escrita pra falar e ao mesmo tempo esconder a dor. Quem não tem bicho acha que é frescura, mas quem tem sabe do que se trata.

Uma das coisas que mais detesto no cristianismo é o humanismo, essa idéia de que os animais não têm alma. E aquela passagem idiota do Adão dando nome aos bichos. Se eles não têm alma, nós também não temos, o que dá na mesma. Prefiro a cena dos animais rindo dos homens depois da Criação.

Mas falando sobre a questão literária, tem um conto do Kafka chamado relatório para uma academia que é uma das coisas mais impressionantes nesse sentido. é um macaco adestrado que aprendeu a linguagem verbal e explica o que e quem ele é pra uma platéia de cientistas.

Mas Kafka é Kafka, e o mundo em que a gente vive é kafkiano mesmo. Os outros escritores são apenas autores, mesmo os melhores.

Abraço!

Daniel.