Isso aqui é uma montagem entre dois relatos: o de Mário de Andrade
em sua viagem folclórica ao nordeste e o de Graciliano Ramos
sobre sua vinda ao Rio de Janeiro. Com uns dez anos de diferença (e também
a diferença de situação, já que MA fala sobre o convés e GR fala do porão),
mas os dois pegaram o mesmo navio, o Manaus. O mais curioso
é o encaixe entre os dois diários, quase perfeito. Quase não mexi
nos textos, apenas os separei com os dois pontos. Em cada "verso"
a primeira parte é do MA e a segunda é do GR. Isso poderia depois
ser misturado com o navio usado por Kafka pra chegar à Amérika, mais
precisamente ao Hotel occidental. E aí teríamos um trabalho de história,
com as devidas notas de rodapé sobre a tradição dos Navios dos Loucos.
Não é injustiça ser feliz e a tarde cai : havia luzes.
Os ventos varrem o Recôncavo : toldados por espesso nevoeiro.
Chispando água e mar : uma escuridão branca.
O céu cinzado é uma nuvem só : detive-me
e a lâmina espetaculosa da cidade : piscando os olhos
se aconchega numa palidez indiferente : tentando habituar a vista.
Eis que um sol antigeográfico tropicaliza : via-me no fundo de um poço.
A boca-da-noite, bate na chapa da cidade : enxergava estrelas altas.
S. Salvador se torce toda : rostos curiosos
gozando a luz que é dela : onde se aglomeravam polícias,
com muita mansidão : era como se fôssemos
ninguém-jamais-não-conseguirá : gado, e nos empurrassem,
esses rosas doirados : para dentro de um banheiro carrapaticida.
Esses azuis de Virgem Maria : não podíamos recuar -
esses amarelos de areia esturricada : obrigavam-nos ao mergulho.
Cor dos anos : simples rebanho, apenas.
Cor de séculos : rebanho gafento, necessitando creolina,
montados uns sobre os outros : Tentei sondar a bruma
por riba do farol de Amaralina : cheia de trevas luminosas.
Trepa no paredão do morro : idéia absurda.
Um magote de coqueiros brincalhões : que me parece razoável,
põe surdina, gritando : trevas luminosas!
Olha o navio!
Olha o navio!
2 comentários:
Trevas luminosas x luzes risíveis, e mais um fundo comum de como se vê as coisas, os poemas sim, dialogam.
Muito bom.
As frases são todas pinçadas? Que textura, a destas frases! Você tem os relatos em versão digital? Gostaria de ler.....
Ficou excelente a construção do poema, e penso que você deveria escrever a história do navio, mas com viés de ficção, até porque história é uma forma de ficção. Não?
Se disser que vai escrever, vou reservar desde já meu expemplar nas livrarias...
grande abraço!
Oi Aldemar,
não tenho as passagens digitalizadas, mas vou dar uma olhada por aqui nos livros e te mostro. O do MA tá naquele turista aprendiz, que não tenho em casa.
tenho vontade mesmo de escrever essa história, o problema é que ainda não sei bem onde encontrar algumas fontes: não sei onde são gaurdados, e se sao, coisas como diários de bordo etc. Nem sei o que acontece com os navios depois que eles deixam de operar. Eles vão pra um tipo de cemitério? O aço é fundido e reaproveitado, essas coisas?
Pois é, não há história sem ficcionalidade. Por conta do lance do enredo, que tem a ver também com a interpretação/seleção do que e como deve ser contado. Só não acho que história seja literatura, são primas. A rigor, a não ser a preguiça acadêmica, nada impediria que um historiador ousasse mais na hora de pensar sobre as formas possíveis de um relato.
Mas, enfim, isso é uma longa discussão...
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