2/03/2009

Sobre navios (rumo ao Hotel occidental)

Isso aqui é uma montagem entre dois relatos: o de Mário de Andrade
em sua viagem folclórica ao nordeste e o de Graciliano Ramos
sobre sua vinda ao Rio de Janeiro. Com uns dez anos de diferença (e também
a diferença de situação, já que MA fala sobre o convés e GR fala do porão),
mas os dois pegaram o mesmo navio, o Manaus. O mais curioso
é o encaixe entre os dois diários, quase perfeito. Quase não mexi
nos textos, apenas os separei com os dois pontos. Em cada "verso"
a primeira parte é do MA e a segunda é do GR. Isso poderia depois
ser misturado com o navio usado por Kafka pra chegar à Amérika, mais
precisamente ao Hotel occidental. E aí teríamos um trabalho de história,
com as devidas notas de rodapé sobre a tradição dos Navios dos Loucos.






Não é injustiça ser feliz e a tarde cai : havia luzes.

Os ventos varrem o Recôncavo : toldados por espesso nevoeiro.

Chispando água e mar : uma escuridão branca.

O céu cinzado é uma nuvem só : detive-me

e a lâmina espetaculosa da cidade : piscando os olhos

se aconchega numa palidez indiferente : tentando habituar a vista.

Eis que um sol antigeográfico tropicaliza : via-me no fundo de um poço.

A boca-da-noite, bate na chapa da cidade : enxergava estrelas altas.

S. Salvador se torce toda : rostos curiosos

gozando a luz que é dela : onde se aglomeravam polícias,

com muita mansidão : era como se fôssemos

ninguém-jamais-não-conseguirá : gado, e nos empurrassem,

esses rosas doirados : para dentro de um banheiro carrapaticida.

Esses azuis de Virgem Maria : não podíamos recuar -

esses amarelos de areia esturricada : obrigavam-nos ao mergulho.

Cor dos anos : simples rebanho, apenas.

Cor de séculos : rebanho gafento, necessitando creolina,

montados uns sobre os outros : Tentei sondar a bruma

por riba do farol de Amaralina : cheia de trevas luminosas.

Trepa no paredão do morro : idéia absurda.

Um magote de coqueiros brincalhões : que me parece razoável,

põe surdina, gritando : trevas luminosas!



Olha o navio!
Olha o navio!

2 comentários:

Aldemar Norek disse...

Trevas luminosas x luzes risíveis, e mais um fundo comum de como se vê as coisas, os poemas sim, dialogam.

Muito bom.

As frases são todas pinçadas? Que textura, a destas frases! Você tem os relatos em versão digital? Gostaria de ler.....

Ficou excelente a construção do poema, e penso que você deveria escrever a história do navio, mas com viés de ficção, até porque história é uma forma de ficção. Não?

Se disser que vai escrever, vou reservar desde já meu expemplar nas livrarias...

grande abraço!

Daniel F disse...

Oi Aldemar,

não tenho as passagens digitalizadas, mas vou dar uma olhada por aqui nos livros e te mostro. O do MA tá naquele turista aprendiz, que não tenho em casa.

tenho vontade mesmo de escrever essa história, o problema é que ainda não sei bem onde encontrar algumas fontes: não sei onde são gaurdados, e se sao, coisas como diários de bordo etc. Nem sei o que acontece com os navios depois que eles deixam de operar. Eles vão pra um tipo de cemitério? O aço é fundido e reaproveitado, essas coisas?

Pois é, não há história sem ficcionalidade. Por conta do lance do enredo, que tem a ver também com a interpretação/seleção do que e como deve ser contado. Só não acho que história seja literatura, são primas. A rigor, a não ser a preguiça acadêmica, nada impediria que um historiador ousasse mais na hora de pensar sobre as formas possíveis de um relato.

Mas, enfim, isso é uma longa discussão...