6/28/2009

Vista sobre a cidade, sem horizonte

Você morreu um pouco, mas não choro
porque a agonia foi minha
e lenta
ainda desfolha, cínica, imagem
por imagem como um atirador
de facas mirando o espelho
até riscar na superfície
do corpo as palavras
mais duras
do real.
Antes não, do oitavo andar à frente
uma névoa, neblina espessa, bruma
tomando de assalto e sem pressa
o espaço todo enquanto
olhando ao fundo o rio de asfalto
desejava o salto até perder-me
no curso opaco dessa lama negra onde
as coisas permanentemente vão,
pra sempre vão
sem volta, desejos
desencontrados – confessar
que desisti, impossível ir
além da margem onde homens
e mulheres andam à deriva
porque pensam, olhos sobre imagens
nos espelhos, nuas, imagens
em camadas que nunca deixam
ver o que por baixo grita: você morreu
um pouco, me sento
a seu lado e converso
com a outra
parte.

3 comentários:

Daniel F disse...

Oi Aldemar,

gostei, principalmente pela indefinição sobre quem morre quando a cidade morre. me lembrou do GRamos, o relógio do hospital: "felizmente o homem do esparadrapo vive. Repito que ele vive e caio num marasmo agoniado. No silêncio as notas compridas enrolam-se como cobras, arrastam-se devagar nos cantos. Que fim levaram as pessoas que me cercavam? Agora só há bichos, formas rastejantes que se torcem com lentidão de lesmas." E:
"Começo a perceber um toque-toque surdo, tropel de cavalo cansado. Naturalmente é o sangue batendo-me nos ouvidos. Um coração quase inútil finda a tarefa maçadora. Toque-toque. Não é o sangue, é qualquer coisa que vem de fora, provavelmente do corredor".

Agora: em meio a isso tudo, porque simplesmente não parar? Pra mim é simples: pra não ficar maluco de uma vez por todas. Sempre tive essa sensação, se eu ficar parado eu piro de vez. E acho que isso é meio que comum a outras pessoas.

Aliás, não sei se te falei, estou de mudança pra Brasília.

Aldemar Norek disse...

Ok, Daniel. Que bom vc ter gostado.
Intrigante este texto do GR, que não li antes (onde fica?). Como desconheço o contexto, faz pensar no que passava em sua cabeça, ainda que pelas mais modernas teorias do mercado seja isso o que menos importa.

Sobre enlouquecer, ou não: estava ontem lendo (por alto) 'Mal estar e civilização' e num capítulo ele toca nisso, o sentido, a necessidade do sentido e a sua praticamente impossibilidade. Estou tentando me organizar pra ler 'direito' em breve, junto com o 'Luto e melancolia', que parece tocar (na diagonal)em temas comuns.

Sobre sua mudança pra Brasília, pensei já ter lhe dado os parabéns, pela mudança e pelo motivo da mudança. Se acabei não mandando esta mensagem, saiba que vibrei bastante daqui.

super abraço
aldemar

Daniel F disse...

Oi Aldemar,

é um conto que esta no livro Insonia. O motivo de eu ter me lembrador é pela indistinção entre "dentro" e "fora" em relação à experiência limite da quase-morte. Tem alguma coisa do espelho também, o Graciliano reclama que não tem um espelho pra ver a própria devastaçao, mas tem outros como espelho, um deles é o cara do esparadrapo. No seu caso, o atirador de facas. Me lembrei disso assim que li o seu poema, porque nele as vezes fica indefinido se quem morre é a cidade ou você, ou quem fala, o poeta etc. Em hipótese nenhuma, o "eu-lírico"...rs

Até que li bastante Freud, por conta de umas coisas aí. Não vejo muito como pegar psicanálise e sair aplicando por aí. Agora o mal-estar é um dos livros mais fortes que já li. e aquele mais ou menos próximo, moises e o monoteísmo, idem.

Entre outras coisas, do que me lembro, o mal estar é da civilização, não de fulano ou beltrano, porque tudo o que vive tem uma atraçao fatal por morrer
mas deseja viver.

Abraço,

Daniel