7/04/2009

Nenhum mar (trecho)




Give it away

Red Hot Chili Pepers

Language is a virus...

W.S. Burroughs

1.

falando às estantes do sebo, às seis,

a porta de enrolar desce forçada

e arranha meu destino e meus ouvidos.

Lanço o corpo na rua em meio aos gases

e a fumaça do que penso me intoxica:

se até deus é abismo, eu tento em vão

não pensar em mais nada, e meus amigos,

as mãos nos bolsos, muitos sem emprego,


seguem sem esperança ou direção

(alguns nas dobras da burocracia).

Os tempos que virão nada de meu

terão, porque já dormem loteados

por mercados futuros e outros lances,

nem me seduz o bonde que me leva

a um futuro já colonizado,

mas sigo em frente mesmo sendo eu mesmo.


De pé no cruzamento da avenida

falando com o relógio digital,

Copacabana ruge e cospe cinza

e ele marca 39 graus.

São quase seis e quinze, os carros passam,

ele parece não me ouvir nem ver,

esfinge de metal e sem enigma.

Pergunto pra ninguém, feito um babaca:


pra onde foram todos os hidrantes

e certas pulsações da minha infância

que se perdeu nas dobras da cidade?

Não vou surfar de volta pro passado

porque é lá que não me reconheço,

de lá não sou quem parte pro futuro

pra me encontrar aqui desencontrado

à espera de zarpar, e nenhum mar.

4 comentários:

Aldemar Norek disse...

Oi, Anderson....
Não sei em que contexto o Chico B. disse isso aí. Mas de princípio parece uma frase de efeito, porque ele tem perseguido a escrita (falo de livros) sistematicamente há muito tempo, como uma outra forma de expressão e pensamento.

(tem também o fato de que toda a obra do Chico aponta para uma crise, crise confessa, na canção e na literatura - mas uma crise que produz "apesar de")

Pode ser que o aporte negativo leve a alguma coisa - tipo: tudo já foi dito, tudo já foi escrito - mas tenho aqui alguma dúvida sobre isso. Tem um texto muito interessante do Antônio Cícero sobre a pretensão da originalidade absoluta que nos assola - a acho que esta pretensão pode ser uma das heranças das vanguardas, que deixaram umas coisas boas e outras nem tanto. Cícero fala, com muita propriedade, que os temas básicos da aventura humana se repetem desde Homero: amor, solidão, ódio, ciúme, dor, perda, morte e por aí vai.

Acho que este sentimento de nada a dizer deve ter assolado também a Borges em algum momento, a Drummond, ao Cícero, a todo mundo, porque o peso dos "clássicos" é muito grande.

Talvez, penso, o problema é o 'como se olha' para estes gigantes e o 'como se olha' para o tempo presente. Se tudo o que eles dizem nos representa "em absoluto", talvez não haja nada mesmo o que escrever, já está dito. Mas não creio muito nisso, porque eles não viveram neste tempo de saturação, de acumulação de imagens numa superfície lisa e sem direção. Viveram e sofreram outras coisas, ainda que a condição humana tenha algo de comum em todos os tempos.

Os textos de Borges, p. ex., responderam a dois tipos de questões: umas gerais, atemporais, que nos valem e valerão sempre, ainda que mesmo assim possamos injetar dúvida no olhar dele;e umas específicas, que podem ser reinventadas, invertidas, questionadas e ao final, ultrapassadas, já que são humanas. É neste ponto que é preciso "matar" Borges, acho.

E é tudo uma relação com o mundo. Tem um texto do Deleuze que li que fala sobre isso de modo interessante. Vou transcrever aqui um pedaço:

" Não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são passagens de vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado. A doença não é processo, mas parada do processo, como no 'caso Nietzsche'. Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma saúde de ferro,...., mas ele goza aqui de uma frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis. Do que viu e ouviu o escritor regressa com os olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados. Que saúde bastaria para libertar a vida em toda parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros e no interior deles? A frágil saúde de Spinoza, enquanto dura, dá até o fim testemunho de uma nova visão à passagem da qual ela se abre."

E continua ainda de modo muito interessante, sobre esta relação com o mundo e com o real que é a escrita.

Tudo bem, também implico com o "deleuzês" (devir, sintoma, etc.), mas não com o jargão em si, porque apenas quer exprimir conceitos - mas de fato alguns intelectuais de quinta, ou pseudo-intelecutais, enchem o nosso saco com a repetição maquinal deste palavreado e o esgota, como já aconteceu com Nietzsche, Heidegger, Lacan e outras vítimas. Mas a beleza deste texto faz a gente passar por cima disso, não?

Pensa aí, irmão. Foi apenas um toque.
Abração
aldemar

Anderson Dantas disse...

Belo texto e oportuno, Aldemar. É que quando você é o analisador/escritor/crítico e vê de fora, como um expectador, tudo parece mais leve. Mas quando seu próprio ser é tomado de um profundo e longo esgotamento, isso tem que se renovar à forcéps e/ou a marretadas. Uma noite é pouco para a nossa agonia, me auto citando em Schatten, Gravuras Nocturnas. Mas é sempre bom refletir com os amigos sensíveis e atentos. Abraços.

Aldemar Norek disse...

Mas esta é exatamente uma das qualidades da nossa humilde espelunca, nosso bangalô da periferia da poesia: a gente está aqui pra trocar, discutir, pensar junto, não é?
Tem mais um trecho deste pequeno ensaio do D. que vou ver se posto aqui como comentário, porque acho que fecha bem a idéia que ele esboça neste início....
Quanto a renovar, perceber e querer, sendo a marretadas ou não, é um princípio dos bons....Não é?
Grande abraço,
aldemar

Aldemar Norek disse...

Vai aí, Anderson, a parte que falei acima...
Abração!



“O que a literatura produz na língua já aparece melhor: como diz Proust, ela traça aí precisamente uma espécie de língua estrangeira, que não é uma outra língua, nem um dialeto regional redescoberto, mas um devir-outro da língua, uma minoração desta língua maior, um delírio que a arrasta, uma linha de feitiçaria que foge ao sistema dominante. Kafka faz o campeão de natação dizer: falo a mesma língua que você e, no entanto, não compreendo sequer uma palavra do que você diz. Criação sintática, estilo, tal é o devir da língua: não há criação de palavras, não há neologismos que valham fora dos efeitos de sintaxe nos quais se desenvolvem. Assim, a literatura apresenta já dois aspectos, quando opera uma decomposição ou uma destruição da língua materna, mas também quando opera a invenção de uma nova língua no interior da língua mediante a sintaxe. ‘A única maneira de defender a língua é atacá-la...Cada escritor é obrigado a fabricar para si a sua língua.’ (cf. André Dhôtel, Terres de Memoire, Ed. Universitaires). Dir-se-ia que a língua é tomada por um delírio que a faz precisamente sair de seus próprios sulcos. Quanto ao terceiro aspecto, provém do fato de que uma tal língua estrangeira [dentro da língua materna] não é escavada na própria língua sem que toda a linguagem por seu turno sofra uma reviravolta, seja levada a um limite, a um fora ou um avesso que consiste em Visões e Audições que já não pertencem a língua alguma. Essas visões não são fantasmas, mas verdadeiras ideias que o escritor vê e ouve nos interstícios da linguagem, nos desvios de linguagem. Não são interrupções do processo, mas paragens que dele fazem parte, como uma eternidade que só pode ser revelada no devir, uma paisagem que só aparece no movimento. Elas não estão fora da linguagem, elas são o seu fora. O escritor como vidente e ouvidor, finalidade da literatura: é a passagem da vida na linguagem que constitui as Ideias.”



“Para escrever, talvez seja preciso que a língua materna seja odiosa, mas de tal maneira que uma criação sintática nela trace uma língua estrangeira e que a linguagem inteira revele o seu fora, para além de toda sintaxe. Acontece de felicitarem um escritor, mas ele sabe que está bem longe de ter atingido o limite que se propõe e que não pára de furtar-se, longe de ter concluído o seu devir. Escrever é também tornar-se outra coisa que não escritor. Aos que lhe perguntam em que consiste a escrita, Virginia Woolf responde: ‘Quem fala de escrever? O escritor não fala disso, está preocupado com outra coisa.’ .”



“Considerando-se estes critérios, vê-se que, entre todos os que fazem livros com intenções literárias, mesmo entre os loucos, são muito poucos os que podem dizer-se escritores.”