6/04/2010

Anotações de uma viagem a Estância - SE (nos 100 anos do meu avô Oscar, homenageado pela criação da primeira escola de ensino médio da cidade)


1. Homenagem na igreja

A credibilidade dos anjos foge aos saduceus:

Eles perguntam ao cordeiro
Qual dos 7 irmãos desposará a mulher amada no além-morte.

Mas o cordeiro tem ódio no sangue e é o ódio do leão
Que responde:

Raça de víboras, como vocês pensam escapar à ira?
Se os anjos usam controles remotos
E microfones sem fio pra soprar a dúvida em seus corações
Soberbos, ostensivos!
Como saberão?

2. Homenagem na Câmara de Vereadores

“Qual dos 7 vereadores desposará a obra destruída
No aquém-vida?”

Porque as paredes da escola,
Desabitada, retém a alegria das crianças
Vozes de anjos, na parede azul
Pra quem sabe ouvir, mas de volta ao momento solene:

“Quem abrirá a caixa-preta, o tiroteio
Simulado nos discursos, a caixa-preta
Da chuva e da ventania, a caixa-preta
Do passado que não passa, que não passa
Mesmo quando morto,
A caixa-preta dos olhares sinuosos, do tempo, do silêncio insinuante,
Caixa-preta da morte e da insistência
Na vida, o próprio mar é uma imensa caixa-preta
Quem a abrirá, quem sabe dizer a sua língua?”:

Esta terra, Estância, Esta mar: Estamira?
(Invoco meu anjo predileto), quem abrirá
A caixa-preta do afeto: a anti-retórica, uma senhora
Que tapa o microfone com as mãos
E fala de lado e se perde na caixa-preta de sua própria vida
Enquanto os vereadores se contorcem nas cadeiras
Simulam ouvir entre risadas, procuram a metáfora perfeita
E aplaudem.


3. Agora podemos falar de anjos

Esta manhã está cheia de anjos, de uma beleza quase invisível:

Vejo crianças de 60 anos preparando uma peça de teatro no quintal,
Vejo uma velha chorar pelo filho morto em desastre,
Aos treze anos de idade.
Vejo uma luz intensa e fria brotar do cinza de veludo das nuvens
Que amortecem os coqueiros

Vi sanguessugas na estátua mutilada de Tiradentes
Vi um corvo bebendo a translúcida e fria água de coco
E vomitando bílis sobre a memória, e mesmo estas visões
Não embaçam o que vejo dos anjos
Através das gotas da chuva no vidro do carro
Enquanto passamos por Estância.

E vejo a memória e agora a memória é uma senhora vestida de estilhaços
Com a pele recoberta por tatuagens, nomes de todos
Os que passaram e que passam, e vão passando
Tentando cravar os dentes na pele macia da Memória
Dentes que vão se dissolvendo, sumindo,
Mesmo no dia da homenagem em que o pão se transmuda em carne
Em que senhoras de 60 anos viram crianças de 13
Em que a luz é fria em pleno verão e quando os urubus
Finalmente
Vomitam bílis pelos olhos, mesmo nesse dia
A carne da memória é tenra demais pra estes dentes e
Demais ácida e quando eles a mordem, eles e não ela vão sendo digeridos:

E por isso vejo que essa é a natureza dos anjos,
Não quero só “dizer paisagens, porém sonhos
Nada de saudades, porém esperança e desejo,
E falarei da amada”, Mário Faustino,
Porque um beijo seria mais natural à beiramar.

Vocês viram a ressurreição
Da infância no jardim?
Vocês viram o ritmo impecável
Do cinza e do branco na manhã?

Mesmo os saduceus, com a medida certa de quintal e alegria
Viram anjos nesse dia.

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