9/30/2013

Deito-me na grama e meu corpo se enraíza na terra, puxado para dentro do lodo, sangue e carne misturam-se à seiva e ao verde vegetal e disso brota uma nova árvore, uma espécie impossível mas real repleta de inúmeras flores com pétalas variadas, desconexas – como ruínas dos manuais de botânica. Essas flores pendem dos seus galhos e brilham noturnamente – vista à distância essa árvore parece conter em si uma forma incoerente de planetário, um tipo nascente de harmonia para um cosmos que não está no passado e sim no futuro. Ela transpira um silêncio tranquilizador e uma ilusão de algo que adormece: muitos animais vêm repousar à sua sombra. De suas folhas e raízes se produzem chás calmantes e alucinógenos. Mas, com meu corpo fertilizando no lodo, essa árvore dói, suas raízes se agarram ao meu peito e não consigo me acomodar e perco o sono. As garras se espalham em meus pulmões e são agulhas e quase não consigo respirar. Se me movimento, a pele é rasgada: tenho o corpo mais riscado do que um mapa antigo e todo rasurado. Não sei como será quando essa árvore começar a dar frutos e eles caírem no solo: arderão como ácido, corroendo mais a minha pele? Ou aliviarão, como mãos que afagam, essa tarefa que não escolhi e para a qual não fui preparado?   


9/22/2013

Perpetuamente encoberto por nuvens corrosivas e densas: a dor e a luta criadora enviam sinais para captar em troca alguma ressonância que aplaque nossa condição ínfima: já que a proximidade do sol interdita a visão direta: o chão cavernoso de Vênus: o universo é um palácio de vozes desejantes:
espelhos em forma de conchas capturando ecos obscuros de nossa condição: sacerdotes bendizem, exorcizam, dizem que curiosidade é pecado: que os ecos denotam um serpentário e que a febre vem de veneno e não do perfume: ainda assim nós caímos, indefinidamente – curtindo a sedução de uma língua onde palavras sempre estão por nascer: e colhemos os frutos impossíveis que brotam daquele solo inóspito e nos tornamos a carne daquele solo: só lamentamos que não sejamos mais fortes para provar toda sua força corrosiva e renascer, perpetuamente:


que vontade louca e muito humana de se mandar dessa terra sem graça, com leis e com reis. 

9/14/2013

A clivagem é real: de um lado, o cotidiano, de outro você que tá vendo é quem me diz. Desde o começo, os observadores viram os cometas com sinal de mau agouro, porque eles simplesmente atravessam a geometria desejada por testemunho da racionalidade do mundo, como arranhões na consciência de deus. Só que é o seguinte: quando eu enlouquecer não será como essa situação patética de pessoas tentando se agarrar a qualquer pedaço de realidade, como se despencassem de um barranco e misturassem terra e sangue em suas unhas, despertando piedade de quem está acima, aparentemente seguro no chão. Não: vai ser de uma vez: não interessa mais se as portas estão abertas ou trancadas, não interessa mais saber se você foi rude com a vida ou a vida foi rude em você: se o mundo desmorona à sua volta, você deve desmoronar mais profundamente, até romper o chão e abrir uma cratera, se as pessoas enlouquecem, você deve procurar a loucura mais definitiva que faça, da loucura alheia, prova de sanidade, é deixar que as pedras que guardam estilhaços de sentimentos sejam polidas na água fria de um fluxo qualquer no éter cósmico até se tornarem pontiagudas e perigosas, que todos se mordam e arranquem pedaços de carne com seus dentes de granito, você deve assumir a sua condição e o seu destino acéfalo e chutar a parede até que as bocas que vomitam pequenas ofensas sangrem nos seus pés, você deve ser o primeiro a reconhecer que todos os muros gravitacionais são indestrutíveis e se afundar em gestos tão irrisórios de doido que bate a cabeça e que as manchas de sangue não transmitam qualquer mensagem, isso se ainda te resta alguma dignidade.

9/09/2013

Ventania vermelha por dentro
            Da alma, torvelinho
            Vazando as pálpebras
            O tempo lacrimeja orvalho
            À superfície vazia de rosto.

            Até pensaria ser um fantasma
            Não fosse a faca
            Estilo corvo
            Enfiada na carne.


9/04/2013

Alguns espelhos do tempo

O campo de visão se fecha, mas não no sentido habitual de quando fechamos os olhos, de cima para baixo e de baixo para cima, mas lateralmente. Os olhos são ampulhetas que funcionam numa lógica não gravitacional, a areia, a passagem do tempo, corre dos lados para o centro. A poeira vai além, chega até a mente e onde o corpo faz conexões com a alma. Apago-me. Não sei ao certo se ainda enxergo qualquer coisa quando começo a cair. Acordo com o queixo aberto, dentes molares arrebentados. Que despertador foi esse que usaram para me acordar, uma porrada como se estourassem bumbos por dentro do cérebro: é minha cabeça batendo no chão.

            Caio em mim como alguém que cai em si.  

*

No dia em que Napoleão nasceu eu acordei com uma pequena dose de mau humor. A luz atravessava Brasília como uma névoa translúcida – um clima de sonho. Eu era perseguido, em cada fantasma havia um coração alheio que era meu também e estranhos pulsavam em meu coração. Alguém planejava um atentado terrorista contra a biblioteca da universidade enquanto um jornalista ensinava como se precaver contra a meningite: poder é perversão de senadores dendrofílicos. Nunca me esquecerei desse dia em que Napoleão nasceu, acontece sempre, sempre retorna – era uma terça-feira. O calendário às vezes me deixa doido da vida.  Se Napoleão Bonaparte era um louco que acreditava ser Napoleão Bonaparte, eu é um poeta que acredita ser um louco desejando ser um poeta louco à deriva pelo calendário enquanto se escreve isso, numa terça-feira, dia de nascimento do Napoleão Bonaparte na sua loucura, leitor.